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2 de outubro de 2019

HERANÇA SAGRADA (TAZA, SON OF COCHISE) – WESTERN DE DOUGLAS SIRK


Douglas Sirk;
o autêntico Taza

Seguindo a invectiva proferida pelo General Philip Sheridan que dizia que ‘o único índio bom é um índio morto’, Hollywood em raras ocasiões tratou o índio com dignidade. Pior ainda se eles fossem Apaches. E justamente o chefe Apache Cochise é quem foi mostrado em muitos filmes como índio bom (e ainda vivo) aceitando os termos impostos pelos homens brancos. Quando se fala em Cochise vem logo à mente a figura épica de Jeff Chandler que o havia interpretado em “Flechas de Fogo” (Broken Arrow), de 1950 e em “O Levante dos Apaches/A Revolta dos Apaches” (The Battle at Apache Pass), de 1952. Chandler encarnaria Cochise ainda mais uma vez, embora em uma quase ponta, no western “Herança Sagrada” dirigido por Douglas Sirk. Reverenciado como um dos grandes diretores de melodrama do cinema norte-americano dos anos 50, o alemão Douglas Sirk dirigiu um único faroeste que foi justamente “Herança Sagrada” que ele próprio considerava seu melhor filme. A Universal Pictures tinha sob contrato o jovem Rock Hudson e vinha apostando todas suas fichas para transformá-lo em astro escalando-o em westerns, comédias e capa-e-espadas. Mas foi pelas mãos de Douglas Sirk, que dirigiu Rock Hudson em nada menos que em oito filmes em cinco anos, que o ator atingiu a condição de astro, sendo inclusive requisitado por George Stevens para compor par romântico com Elizabeth Taylor na superprodução “Assim Caminha a Humanidade”. Hudson avisou o estúdio que esta seria a última vez que interpretaria um nativo, o que já havia feito em “Winchester 73” e que não condizia com o status que começava a adquirir em sua carreira.



Rock Hudson, Rex Reason e
Jeff Chandler; 
Rock Hudson
Apache pacifista - Cochise (Jeff Chandler) antes de falecer passa a condição de chefe a seu filho Taza e o incumbe de prosseguir nas tratativas de paz feitas com Washington através do General Crook (Robert Burton). Quem não aceita a escolha de Cochise é Naiche (Rex Reason), também seu filho, que entende que os Apaches devem seguir as ordens de Gerônimo (Ian MacDonald) outro chefe Apache descontente com a vida na Reserva de San Carlos. Privados das terras de seus ancestrais ao aceitar o tratado imposto pelos políticos de Washington que os confina em local árido, os Apaches liderados por Gerônimo promovem ataques aos homens brancos e à Cavalaria. Taza não transige em obedecer à promessa feita a seu pai pois confia nos ‘túnicas azuis’, especialmente no Capitão Burnett (Gregg Palmer), comandante da Reserva de San Carlos. Burnett faz de Taza o líder de uma milícia armada formada por Apaches e incumbida de manter a ordem na Reserva. Naiche une-se a Gerônimo e atacam uma unidade da Cavalaria emboscando o Capitão Burnett e o General Crook. Quando estes pareciam prestes a ser exterminados, Taza e seus liderados defendem as tropas e dominam os Apaches comandados por Gerônimo e Naiche. Este morre em combate, Taza restabelece a aliança ameaçada mas decide abdicar do posto que lhe foi conferido, despindo a farda que vinha usando e preferindo voltar a ser somente um Apache.

Gregg Palmer, Robert Burton e
Rock Hudson, este também abaixo
Discurso conformista - A Universal cortou sequências filmadas de “Herança Sagrada” que mostravam Taza já casado com Oona (Barbara Rush) e sendo pai de uma criança, o que certamente possibilitaria uma continuação da história em outro filme, e, segundo o ideário vigente em Hollywood, com Taza recomendando a seu filho a que fosse, como ele, um defensor da paz com os homens brancos. Sem essas sequências este faroeste de Douglas Sirk ficou com a duração de apenas 79 minutos, quase a metragem de um western B. Mas mesmo tão curto, o diretor alemão realizou um belo filme, independentemente da intenção de ser historicamente evasivo na questão do quanto os Apaches perderam com o Tratado de Paz assinado pelo guerreiro Cochise. E ainda refazendo a História como quando Taza tenta convencer a um guerreiro e pergunta a ele: “Você não cansou de lutar e fugir dos soldados, de roubar e matar, de sentir fome e frio?” E Taza conclui dizendo: “Na Reserva você terá cobertores quentes e alimentos”. Esse discurso conformista e distante da realidade reflete o posicionamento do filho de Cochise neste roteiro que isenta de qualquer responsabilidade a política do homem branco com sua mão armada, a Cavalaria. Tal fato, por si só poderia comprometer o western o que não acontece porque quando um filme é bom ele supera até mesmo inconsistências desse tipo. E assim como John Ford já havia feito em “Sangue de Heróis” (Fort Apache), o índio é mostrado de forma simpática, tanto que Taza luta contra seus irmãos de sangue para honrar o tratado que significaria o início do maior genocídio que a Humanidade conheceu. Ou seja, Taza subverte a frase de Sheridan e passa a ser índio bom (e vivo) porque endossa as ações do homem branco.

Rock Hudson

Rex Reason
Lanças e flechas atirados no público - Rodado em 1953 para ser lançado no processo 3.ª Dimensão, “Herança Sagrada” só chegou aos cinemas em 1954 quando a 3D já estava ultrapassada, dando lugar a outro processo, o Cinemascope, que visava defender o cinema do inimigo chamado Televisão. E o que não falta neste western são lanças, flechas e pedras sendo lançados em direção à câmera para assustar o espectador, efeitos típicos do 3D. Porém, se algo tivesse que assustar o público seria a violência de algumas sequências, violência inusitada naqueles tempos. Uma mulher branca sendo alvejada em pleno peito por uma flecha Apache é cena de raro e chocante realismo. Há ainda o assassinato frio e traiçoeiro dos traficantes de armas, igualmente brutal. As sequências de combate são excelentes, valorizadas pelo trabalho dos dublês e este faroeste é muito bonito porque praticamente todo rodado em locações em diversas regiões de Utah. A batalha final foi filmada no Jardim do Diabo, no Parque Nacional de Arches, em Utah e o cinegrafista Russell Metty foi o responsável pelas belas tomadas de “Herança Sagrada”.

Barbara Rush e Morris Ankrum
Costume Apache - Quase uma imposição hollywoodiana em westerns, temos também a presença de uma linda mulher para gerar romance na história. Ela é Barbara Rush interpretando Oona, filha de Grey Eagle (Morris Ankrum), um inimigo de Taza. Grey Eagle quer que sua filha se case com Naiche que, assim como ele, não aceita a paz oferecida por Washington e menos ainda viver na reserva. Ao lado de Gerônimo são eles os vilões de “Herança Sagrada” e é Naiche quem disputa Oona com o irmão. A subtrama amorosa um tanto frágil não rouba o interesse da história bem conduzida por Douglas Sirk e aproveita para mostrar um costume Apache que é o  de ter o pai da jovem pretendida a prerrogativa de ceder sua mão a quem lhe der os melhores presentes, ignorando a vontade da filha.

Barbara Rush e Rock Hudson; Barbara Rush

Rock Hudson
Índios brancos - Em alguns momentos são mostrados na tela índios de verdade e o contraste com os atores principais é visível. Mais que isso, quase cômico. Passam razoavelmente por índios apenas Morris Ankrum e Eugene Iglesias, este portorriquenho de nascimento. E claro, Jeff Chandler, novaiorquino filho de judeus com um tipo físico invulgar e fisionomia que lhe permitia interpretar variados tipos étnicos, entre eles índios. Mas o cinema norte-americano não tinha esses pudores e o público aceitava bem ver Rock Hudson e Barbara Rush (e uma legião de outros atores e atrizes) com a pele escurecida por cremes. Afora ser um ‘índio forçado’, Rock Hudson tem bom desempenho, mesmo deixando perceber um certo incômodo por mais uma vez passar por nativo. Não demoraria muito para Hudson comprovar que era bom ator saindo-se bem em dramas e em comédias.

O Pôster indicando 3.ª Dimensão
Único western de Douglas Sirk - Uma pena que Douglas Sirk não tenha realizado mais westerns porque certamente o gênero é quem ganharia, a exemplo de Delbert Mann, outro cineasta que incursionou pelo melodrama mas sem o êxito do alemão. A Universal, estúdio no qual Sirk trabalhou bastante, foi um dos que mais faroestes médios produziu com Audie Murphy como seu principal astro no gênero. Douglas Sirk certamente teria feito westerns próximos aos de Budd Boetticher quanto à densidade psicológica e à ação de boa qualidade como a demonstrada em “Herança Sagrada”. Acontece que Randolph Scott andava bastante ocupado...


Jeff Chandler e Rock Hudson; Barbara Burck;
Barbara Rush e Rock Hudson ladeando o cinegrafista Russell Metty

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