UMA REVISTA ELETRÔNICA QUE FOCALIZA O GÊNERO WESTERN

23 de janeiro de 2019

LONESOME DOVE (OS PISTOLEIROS DO OESTE) – UMA OBRA-PRIMA DE SUBLIMES SEIS HORAS DE DURAÇÃO


Larry McMurtry
Peter Bogdanovich,
Berry Gordy Jr.,
William D. Wittliff,
Simon Wincer

O normal em Hollywood é produtores adquirirem direitos de obras literárias de sucesso, depois roteirizar e filmar esses livros. Com “Lonesome Dove” ocorreu o inverso. Em 1971 Peter Bogdanovich e o texano Larry McMurtry escreveram um roteiro para um western intitulado “Streets of Laredo”, tendo em mente John Wayne, James Stewart e Henry Fonda nos papeis principais. John Wayne mostrou a sinopse a John Ford que lhe disse: “Pule fora disso”. Mesmo Bogdanovich sendo uma das raras pessoas com quem Ford conversava e dava entrevistas, tendo até aceitado fazer sob as ordens de Peter o documentário “Directed by John Ford”, nesse mesmo ano de 1971. Duke pulou fora de fato e desestimulados os autores de “Streets of Laredo” abandonaram o projeto. McMurtry era um escritor já bastante conhecido que teve filmadas adaptações de livros seus como “O Indomado” (Hud) e “A Última Sessão de Cinema” (The Last Picture Show), este dirigido por Peter Bogdanovich. McMurtry continuou escrevendo que era o que gostava de fazer e certo dia viu passar um ônibus que na lateral tinha a inscrição ‘Lonesome Dove Baptist Church’. Aquele nome o inspirou, ele foi para casa e teve a ideia de reescrever “Streets of Laredo”, acrescentando prólogo e epílogo à história que ganhou o novo nome de “Lonesome Dove”. Lançado o livro, em 1986, transformou-se em imediato êxito de vendas e ganhou o mais importante prêmio literário norte-americano, o Pulitzer de ficção. Esperava-se que os estúdios disputassem os direitos cinematográficos da obra mas estranhamente foi a Motown Records que adquiriu os direitos. A Motown, gravadora famosa por ter em seu cast grandes artistas negros como Diana Ross, Jackson Five, Marvin Gaye, Stevie Wonder e muitos outros, já havia produzido alguns filmes que nem crítica e nem público haviam gostado. E western não era bem o território do conglomerado artístico de Berry Gordy Jr., dono da Motown. Mesmo assim decidiu investir nessa minissérie contratando Robert Duvall, James Garner e Charles Bronson para compor o trio de atores principais. Garner recusou o trabalho assim como Jon Voigt contatado para substituir Garner. Duvall e Bronson aceitaram, mas o astro de “Desejo de Matar” não pode participar porque as filmagens coincidiam com a produção de “O Mensageiro da Morte” que Bronson estrelou, ele que tinha contrato com a Cannon Productions. Bronson foi substituído pelo pouco conhecido Robert Urich enquanto para o lugar de James Garner foi chamado Tommy Lee Jones. A decisão de escolher o australiano Simon Wincer para dirigir foi muito discutida pois seus trabalhos anteriores na Austrália e nos Estados Unidos, embora bons, não eram suficientes para um projeto como aquele, inclusive com filmagens em tantas locações diferentes. Aprovado com restrições o nome de Wincer, o roteiro de “Lonesome Dove foi finalizado pelo próprio McMurtry em parceria com o também texano William D. Wittliff, autor da história de “Barbarosa”, western estrelado por Willie Nelson. A rede CBS exibiria a minissérie, o que ocorreu nos dias 5, 6, 7 e 8 de fevereiro de 1989, com extraordinário sucesso.

A longa jornada - Os quatro episódios de “Lonesome Dove”  tiveram os títulos “A Partida” (Leaving), “Na Trilha” (On the Trail), “As Planícies” (The Plains) e “O Retorno” (Return). Inicia-se apresentando Augustus ‘Gus’ McCrae (Robert Duvall) e Woodrow F. Call, dois ex-Texas Rangers lendários pela bravura e por terem, nos seus dias de Rangers, liquidado muitos bandidos. Tornam-se rancheiros criadores de gado no Texas, próximo da pequena Lonesome Dove e cansados da monotonia da vida que levavam decidem atravessar o país e se fixar em Montana, a 3.500 kms de distância. Os cowboys que empregam aceitam participar da longa jornada e a eles se junta Jack Spoon (Robert Urich), também ex-Texas Ranger e há dez anos vivendo como nômade jogador. Lorena (Diane Lane) é a prostituta de Lonesome Dove e por ela McCrae nutre amizade e carinho, ainda que nunca tenha esquecido Clara Allen (Anjelica Huston) que agora vive em Ogallala, no Nebraska. A extenuante marcha segue atravessando Arkansas, Oklahoma, Kansas, Colorado, Nebraska, Wyoming até atingir Montana. Antes disso Gus reencontra Clara, ainda casada e cujo esposo está em estado terminal. Pelo caminho os cowboys se defrontam com bandidos, caçadores de pele, renegados, homens sem escrúpulos mesmo pertencendo ao Exército e, como não poderia deixar de ser, índios. Numa incursão por território indígena Gus e o vaqueiro Pea Eye (Timothy Scott) são atacados por índios e Gus é ferido gravemente não conseguindo se recuperar da infecção. Em seu último contato com Call, Gus pede a ele que prometa enterrá-lo num local onde manteve um idílico encontro com Clara no Texas. Para isso Call faz sozinho a viagem de retorno levando o caixão com o amigo morto dentro e finalmente o enterrando. Os vaqueiros empregados de Call-Gus se instalam em Montana, onde constroem um rancho iniciando vida nova naquele local.



Robert Duvall com Diane Lane
e com Anjelica Huston
Força e visão épicas - Enquanto filmava interpretando Gus McCrae, Robert Duvall disse a amigos: “Estamos trabalhando em um clássico, creio que será o ‘The Godfather’ dos faroestes”. O consagrado ator, então com 57 anos, sabia o que dizia pois as sequências de “Lonesme Dove” continham visão e força épicas incomuns da vida dos cowboys. Mesmo no primeiro episódio, onde ocorre a apresentação dos personagens, as imagens admiráveis como se fossem telas de Frederick Remington emolduradas pela música de Basil Poledouris formam uma sucessão quase ininterrupta de momentos inesquecíveis. Cada nova presença na tela, especialmente as de Danny Glover e Anjelica Huston são tocantes e mais que todos brilha Robert Duvall. Ele é o cowboy mulherengo, irreverente, de língua afiada, que cavalga com notável equilíbrio (Duvall dispensou dublê, assim como Tommy Lee Jones) e de cuja pontaria certeira os bandidos não escapam. Faz valer sua experiência como Texas Ranger lembrado por seu destemor, sempre em parceria com o igualmente temerário Woodrow F. Call. Se as imagens mais grandiosas são as da condução do gado sofrendo com as intempéries e os perigos naturais, não menos estupendas são as sequências de ação dirigidas com talento por Simon Wincer.


Tommy Lee e Duvall; a morte de
Danny Glover; Gavan O'Herlihy
Sequências brutais - “Lonesome Dove” é uma marcha heroica, porém quando a epopeia se detém para os protagonistas mostrarem bravura e destreza, o filme ganha em emoção. Entre os confrontos mais memoráveis está aquele em que Gus McCrae sozinho liquida todo o grupo de renegados de Blue Duck (Frederic Forrest). Primeiro com seu rifle numa planície e posteriormente no ataque ao acampamento dos bandidos que haviam sequestrado Lorena. Não ocorre o embate entre Gus e Blue Duck mas o fim deste atirando-se para a morte pela janela de um prédio é espetacular. A perseguição dos índios a Gus e a Pea Eye seguida do encurralamento dos dois lembra bastante a sequência parecida de “Rastros de Ódio” (The Searchers), apenas que excepcionalmente mais realista. Realismo Simon Wincer usou à exaustão, por vezes de modo chocante como a execução e enforcamento de dois fazendeiros cujos corpos pendurados são queimados. Ou o enforcamento dos quatro ladrões de gado. O mesmo vale para a morte do negro Joshua Deets (Danny Glover), trespassado por uma lança ao ter nos braços uma criança nativa cega, num momento triste de um western por vezes doloroso em seu esforço para parecer real. Nenhuma sequência porém é mais vibrante que aquela quando o adolescente Newt Dobbs (Ricky Schroder) é agredido por um violento batedor do Exército. Isso provoca a ira de Woodrow que a galope parte para cima do covarde batedor, derruba-o do cavalo, surra-o impiedosamente e se prepara para arrancar-lhe uma das orelhas quando é laçado por Gus que impede nova crueldade. Tommy Lee Jones, que se mantém nos dois primeiros episódios à sombra de Duvall, a partir dessa sequência se agiganta e sua interpretação se iguala à de Duvall. Recordando que John Wayne e James Stewart foram os primeiros nomes pensados para esses personagens percebe-se que jamais, até pelo peso dos anos, fariam o que Duvall e Tommy Lee fizeram.

Robert Duvall  e Timothy Scott; Duvall e Ron Weyand

Robert Duvall e Tommy Lee Jones
O velho cowboy apaixonado - Alguns outros personagens ganham importância durante a trajetória e dramas se sucedem sempre com a morte agindo impiedosamente, seja pelas mãos de homens maus, a maioria, seja acidentalmente e por doenças. Uma das subtramas é o tratamento que Woodrow F. Call dispensa ao órfão Newt, que tudo indica ser seu filho ainda que relute em reconhecer a paternidade. Mas a preocupação e a proteção de Call indicam o amor que ele tem pelo jovem que ele sabe ser seu filho. O triângulo formado por Gus-Lorena-Clara produzem sequências líricas com o velho homem do Oeste oscilando entre as duas mulheres e afinal escrevendo no leito de morte para ambas. A sequência da morte de Gus é esplêndida com ele e Call, até o último momento sendo irônicos e ao mesmo tempo demonstrando a força da amizade que os une.

Robert Duvall e Anjelica Huston; Duvall e Diane Lane

Tommy Lee Jones; Danny Glover
Soberbas interpretações - “Lonesome Dove” recebeu muitos prêmios, o principal deles o ‘Television Critics Association Awards’, como o melhor programa de televisão do ano. Curiosamente, Duvall, Tommy Lee, Anjelica Huston, Danny Glover e Diane Lane concorreram todos a Emmys de interpretação mas nenhum deles foi contemplado. Duvall como ‘Gus’ McCrae teve um dos grandes momentos de sua carreira que são inúmeros. Tommy Lee Jones como o Capitão Call comprovou ser um excelente ator, muito melhor do que se imaginava. Anjelica Huston, Danny Glover, Timothy Scott têm momentos de pura emoção. Do elenco principal Diane Lane fica um pouco abaixo dos citados. Frederic Forrest faz o que pode para lembrar que o papel seria de Charles Bronson mas por vezes transforma o mestiço em uma caricatura. Simon Wincer saiu-se admiravelmente não apenas nas sequências de ação mas também nas dramáticas dirigindo o numeroso elenco.

A mais ‘cult’ das minisséries - As mais de seis horas de duração da minissérie foram filmadas em três meses e meio, com início dos trabalhos em 21 de março de 1988. A audiência nos quatro dias de exibição atingiu índices recordes, o que foi surpreendente por ser um faroeste, gênero que de há muito perdera público. Diante do sucesso de audiência e crítica, os produtores decidiram reduzir a metragem da minissérie transformando-a em filme de longa-metragem com 190 minutos de duração para lançamento nos cinemas. Embora muito do original tenha-se perdido e as referências a episódios excluídos confundam um pouco o espectador, a grandeza de “Lonesome Dove” foi mantida. Estranhamente, porém, a carreira nos cinemas do filme de Simon Wincer não foi o que se esperava, ficando longe do êxito alcançado na televisão. Quando concorreu ao Prêmio Emmy (o Oscar da televisão), para o qual teve 19 indicações, obteve apenas prêmios técnicos, exceto por Simon Wincer que abiscoitou o de Melhor Diretor de Minissérie. O prêmio principal de Melhor Minissérie foi dado a “War and Remembrance”, estrelada por Robert Mitchum série da qual ninguém mais se recorda. Por outro lado “Lonesome Dove” transformou-se em ‘cult’, sendo até hoje o DVD-western mais vendido nos Estados Unidos. No Brasil, infelizmente, foi lançado apenas o DVD reduzido de 190 minutos com o título “Os Pistoleiros do Oeste”, inadequado para uma história que versa sobre cowboys que eventualmente enfrentam bandidos e não pistoleiros que, por sinal, não foram nem nos tempos de Texas Rangers.

Locação em Brackettville
Locações percorridas pela grande equipe - “Lonesome Dove” afigurou-se como uma produção de vulto não só pelo elenco principal e pelo alto investimento feito pela Motown Records na aquisição dos direitos do livro de Larry McMurtry que cobrou de 500 mil dólares. As muitas locações para dar autenticidade à produção também implicaram em muitos gastos para transporte da enorme equipe composta por nada menos que 30 cowboys de verdade e mais os muitos stuntmen e as centenas de cavalos e cabeças de gado. No Novo México a equipe filmou em oito locais diferentes, alguns bastante distantes dos outros. No Texas a equipe percorreu Austin, Bastrop, Del Rio e Brackettville, utilizando inclusive o cenário da fortificação construída para “O Álamo” (The Alamo), o épico de John Wayne rodado em 1960.

Acima Sam Shepard, James Garner
e Sissi Spacek;
abaixo Ricky Schroder e John Voight
Prólogo e sequências - Minisséries não costumam ter continuações, mas isso ocorreu com “Lonesome Dove”. Como Larry McMurtry escreveu outros livros como prólogo e desfecho de “Lonesome Dove”, estes foram utilizados em outras minisséries. Em 1993 foi produzida, em quatro capítulos, “Return to Lonesome Dove”, com Jon Voight (Woodrow F. Call), Barbara Hershey (Clara Allen) e Ricky Schroder (Newt Dobbs). Em 1995 foi a vez de James Garner interpretar W.F. Call em “Laredo, o Último Desafio” (Streets of Laredo), com Sissy Spacek (Lorena), Sam Shepard (Pea Eye) e Wes Studi, minissérie em 5 episódios. Em 2008 foi produzido o prólogo em forma de minissérie com o título “Comanche Moon”, em três episódios de duas horas cada um, com Steve Zahn (Gus), Val Kilmer e Karl Urban (W.F. Call).  Artisticamente a diferença entre estas minisséries e “Lonesome Dove” ficou tão distante quanto o Texas e Montana. Uma curiosidade foi a série “Lonesome Dove: The Outlaw Years” produzida no Canadá e estrelada por Scott Bairstow como Newt Call, o personagem vivido por Ricky Schroder, agora adulto e usando o sobrenome do pai. A série durou apenas uma temporada (1995/96), com um total de 21 episódios de 50 minutos de duração aproximadamente.

O álbum de "Lonesome Dove"
Western influente - Após o sucesso de “Lonesome Dove”, o western experimentou um quase renascimento encorajando Kevin Costner a produzir, dirigir e estrelar “Dança com Lobos” (Dances with Wolves) e Clint Eastwood a retornar ao western com “Os Imperdoáveis” (Unforgiven), ambos faroestes ganhadores de Oscar de Melhor Filme. A influência de “Lonesome Dove” em ambas as obras é notória, ainda que as histórias sejam diferentes. O aspecto épico de “Dança com Lobos” e a crueza de “Os Imperdoáveis” demonstram isso. E a música de Basil Paledouris que fez escola no gênero western, a partir de então. Augustus McCrae (Robert Duvall) e o Capitão Woodrow F. Call (Tommy Lee Jones) foram alvos de inúmeras pinturas e esculturas que hoje ornamentam muitas casas onde a minissérie nunca deixou de ser reverenciada. O produtor e roteirista Bill Wittliff organizou uma exposição gratuita em 2018 onde o público pode ver os trajes utilizados em “Lonesome Dove”, bem como muitas das armas vistas no filme. Elas são tantas que colecionadores ou apaixonados por armas assistiram muitas vezes à minissérie para relacionar quais eram elas. As muitas armas utilizadas nesta produção serão objeto de uma próxima postagem neste blog.

Filosofia de cowboy - “Lonesome Dove” encerra uma filosofia na frase ‘Uva Uvam Vivendo varia Fit’ gravada numa placa do rancho ‘Hat Creek’ de Gus McCrae e W.F. Call. A frase original correta em Latim é ‘Uva Uvam Videndo Varia Fit’ e certamente a incorreção foi proposital para demonstrar que o autor da inscrição, provavelmente Gus, não dominava tão perfeitamente o Latim. Uma tradução aproximada da frase seria: uma uva muda de cor ao ver outra; uma uva provoca o amadurecimento de outra uva, o que claramente pode ser aplicados aos seres humanos, especialmente aos cowboys menos experientes em contato com outros veteranos como o próprio Gus. Ou de modo mais geral, o comportamento de uma pessoa influencia o de outra. Filosofia e filosofices a parte, “Lonesome Dove” ou “Os Pistoleiros do Oeste” é um filme magistral produzido em forma de minissérie e que perde um pouco de sua grandeza quando assistido na versão mais curta. Impossível comparar mesmo os grandes filmes que tratam de cowboys e gado, mesmo os melhores como “Rio Vermelho” (Red River), com “Lonesome Dove”, uma obra-prima, um marco cinematográfico produzido em forma de minissérie, um dos melhores filmes de todos os tempos do gênero western.

Muitos quadros retratando "Lonesome Dove" ornamentam paredes nos
Estados Unidos, assim como esculturas do Capitão F.W. Call e de 'Gus' McCrae

Roupas com motivos de "Lonesome Dove" são muito vendidas até hoje