UMA REVISTA ELETRÔNICA QUE FOCALIZA O GÊNERO WESTERN

29 de dezembro de 2018

OURO É O QUE VALE (WATERHOLE # 3) – JAMES COBURN TENTANDO SER ENGRAÇADO



Blake Edwards
Realizar um western-comédia sem descambar para a paródia sempre foi difícil e a maior parte das tentativas resultou em fracasso artístico. “Dívida de Sangue” (Cat Ballou) é um dos raros exemplos em que propostas como essas deram bom resultado, agradando inclusive ao público. Blake Edwards era nos anos 60 um dos expoentes das comédias produzidas em Hollywood e emprestou seu nome a uma produção que tencionava fazer o público rir. A escolha de James Coburn como ator central já indicava, no entanto, que o projeto poderia dar errado. Coburn era excelente ator e criou um tipo marcante que após se destacar em inúmeros filmes como coadjuvante passou à condição de astro principal, insuperável em seu estilo ‘cool’. Mas Coburn não era engraçado e isso fica mais que evidente em “Ouro é o que Vale” (Waterhole # 3), western-comédia de 1967 que foi dirigido por William A. Graham, que passou quase toda longa carreira dirigindo séries e filmes para a televisão. Blake Edwards participou como roteirista e ator dos westerns “Expiação” (Panhandle) e “Debandada” (Stampede), respectivamente de 1948 e 1949, antes de passar a escrever, produzir e dirigir as comédias que o tornaram famoso. Somente em 1971 Edwards dirigiria seu primeiro faroeste que foi “Os Dois Indomáveis” (The Wild Rovers). Caso tivesse assumido a direção de “Ouro é o que Vale”, que não foi escrito por ele, talvez resultasse em um western-comédia com alguma graça, o que acabou não acontecendo.


James Coburn e Carroll O'Connor
A disputa pelo ouro roubado - Lewton Cole (James Coburn) é um jogador à espera de uma oportunidade melhor para ganhar dinheiro. Quando surge essa possibilidade Cole não hesita em matar um oponente para descobrir onde estão escondidos 45 quilos de ouro em barras roubados do Exército. Um pequeno mapa indica o local e para chegar lá Cole precisa de um bom cavalo e o melhor que existe na cidade de Integrity pertence ao xerife John Copperud (Carroll O’Connor). Já procurado pela justiça pelo crime praticado, Cole rouba o cavalo do xerife, deixa-o nu dentro da cela da delegacia e ainda estupra Billee (Margaret Blye) a bela filha do xerife. Copperud precisa prender Cole para refazer sua imagem e para se reeleger xerife de Integrity, saindo na captura do desafeto. Encontra Cole mas acaba seduzido pela possibilidade de dividir o tesouro encontrado pelo assassino, escondido num poço d’água natural, o ‘waterhole’ do título original. Outros bandidos disputam o ouro e o Exército também se empenha em recuperá-lo, mas ao final Cole fica com o ouro e vai desfrutar da boa vida no México após ultrapassar a fronteira.

Margaret Blye e Carroll O'Connor.
Carroll O'Connor e Bruce Dern
Código particular - Chamar Lewton Cole de amoral seria eufemismo. Entre suas atitudes infames ele concorda em duelar com o líder da quadrilha que roubou o ouro (Roy Jenson), desrespeitando porém as clássicas leis de um duelo, ocasião em que assassina covardemente o adversário. Para ficar com o cavalo do xerife Copperud, não se satisfaz em prendê-lo em sua própria cela mas o humilha deixando-o totalmente despido juntamente com o apalermado auxiliar (Bruce Dern). Encontrando a apetitosa Billee não hesita em possuí-la, ainda que a resistência oferecida pela moça tenha sido relativamente pequena. Cole corrompe o corruptível xerife porque naquele momento esta é sua melhor opção. Outro bandido (Timothy Carey) sucumbe à sua fria covardia e quantas mentiras forem necessário, quantas vezes Cole mentirá. A pobre Billee que por ele se apaixonou e a quem volta a se entregar na esperança de ficar com seu violador é desprezada. Mal imagina a moça que para ele ‘ouro é o que vale’ e só pelo ouro se interessa para valer. Tudo o mais Cole usa como usa um cavalo. Esse é o código todo particular das leis do Oeste para Lewton Cole.

Margaret Blye
A irrelevância da mulher - Um enredo que poderia ser interessante se desenvolvido dramaticamente é comprometido pela opção pelo western-comédia, ainda que em “Ouro é o que Vale” todos se esforcem para parecerem engraçados. Apenas Carroll O’Connor chegue perto disso.  A balada-tema “Code of the West” cantada por Roger Miller indica a subversão dos códigos tradicionais inclusive os de honra, mas com a intenção de fazer graça o filme é excessivamente agressivo ao mostrar o desprezo pela mulher. O pai da moça estuprada nem se importa com o fato, encarado como natural já que mulheres, segundo ele, servem para atender aos instintos masculinos. Repulsivo é o mínimo que se pode dizer desse desnecessário e deslocado, mesmo em 1967, enfoque. James Coburn e Carroll O’Connor deveriam formar uma dupla tão desajustada quanto desonesta, porém a parceria não funciona. Não por culpa de O’Connor, mas porque o cinismo, a frieza e o despudor de Coburn operam em sentido contrário.

James Coburn e Carroll O'Connor
O persistente baladeiro - À parte a absoluta falta de graça, a narrativa não prende a atenção embora trate da clássica disputa por ouro. E a surpresa da mensagem final demonstra que o crime pode sim compensar e, aí sim, ninguém melhor que James Coburn para sarcasticamente expressar a impudência. Procurando copiar o que deu certo em “Cat Ballou”, um baladeiro, cansativamente, se torna narrador não escondendo que isso foi necessário para que o faroeste não perdesse o rumo. O cantor Roger Miller não aparece no filme, ao contrário de Nat ‘King’ Cole e Stubby Kaye, cujas presenças alegram ainda mais o western-comédia estrelado por Lee Marvin. O excelente elenco de apoio de “Ouro é o que Vale” contou com James Whitmore, Claude Akins, Bruce Dern, Roy Jenson e Timothy Carey não tem oportunidade de brilhar. A veterana Joan Blondell é a cortesão de Integrity e o destaque do cast fica para Margaret Blye.

James Whitmore, Timothy Carey e Claude Akins

Imagens é o que vale... - Uma curiosidade é Robert Burks ter sido o Diretor de Fotografia, ele que era o cinegrafista preferido de Alfred Hitchcock. Este não foi o primeiro western de Burks pois é dele a ótima fotografia (3D) de “Caminhos Ásperos” (Hondo), de 1953, mas após tantos filmes trabalhando com Hitch é inesperado o retorno ao Velho Oeste. E a cinematografia acaba sendo o ponto alto de “Ouro é o que Vale”. O fracasso deste faroeste em nada abalou a carreira de James Coburn que entre outros grandes filmes interpretaria o melhor Pat Garrett que o cinema já viu. Pelas mãos de Sam Peckinpah, o que é outra conversa...
À direita James Coburn.

16 de dezembro de 2018

AS QUATRO CONFISSÕES (THE OUTRAGE) – UM WESTERN PARA PAUL NEWMAN ESQUECER


Acima Akira Kurosawa e Martin Ritt;
no centro Toshiro Mifune e Paul Newman;
abaixo Claire Bloom e Rod Steiger

Paul Newman passou a década de 50 tentando se livrar da imagem de imitador de Marlon Brando, ambos oriundos do Actors Studio, de Nova York, escola formadora de uma geração de excepcionais atores. Nos anos 60 Brando amargou uma queda de qualidade em seus filmes enquanto Newman acertava em quase todos seus personagens, ultrapassando Brando em número de fãs e salário. É conhecida a associação de Paul Newman com o diretor Martin Ritt, que o havia dirigido em “O Mercador de Almas”, “Paris Vive à Noite” e “O Indomado”, todos rendendo elogios às atuações de Newman que foi indicado ao Oscar de Melhor Ator por “O Indomado”, este de 1963. Quando Ritt se propôs a realizar uma versão-western de “Rashomon”, o filme que tornou Akira Kurosawa conhecido no Ocidente, o diretor pensou em Marlon Brando para interpretar o personagem central. Nesta versão um bandido mexicano chamado ‘Juan Carrasco’. Brando que já havia interpretado um mexicano em “Viva Zapata!” declinou da oferta e Ritt ofereceu o papel a Paul Newman que vinha mesmo procurando diversificar os personagens que interpretava. ‘Juan carrasco’ viria a calhar e Newman poderia mostrar ser capaz de fazer um mexicano melhor do que Brando faria. Essa versão, com roteiro de Michael Kanin, diferia bastante daquela que Kanin escrevera para a encenação de “Rashomon” na Broadway, em 1959, interpretada por Rod Steiger como o bandido e Claire Bloom como a esposa estuprada, ela que era casada com Steiger na vida real. A nova versão de Michael Kanin dirigida por Martin Ritt foi ambientada no deserto do Arizona, transformando-se em um faroeste, o segundo que Hollywood baseava em filmes de Akira Kurosawa. Antes houvera “Sete Homens e um Destino” (The Magnificent Seven), em 1960, e simultaneamente ao western de Ritt, o italiano Sergio Leone filmava em Almería (Espanha) sua versão de “Yojimbo” com o título de “Per un Pugno di Dollari”, o bem sucedido “Por um Punhado de Dólares”.


Acima William Shatner, Howard Da Silva e
Edward G. Robinson; abaixo Laurence Harvey
Quatro versões para uma morte - Um padre (William Shatner), um garimpeiro (Howard Da Silva) e um velho escroque (Edward G. Robinson) se encontram numa estação em Silver Gulch à espera de um trem e comentam o recente enforcamento de Juan Carrasco (Paul Newman). Carrasco é um conhecido bandido mexicano acusado de haver matado o ex-Coronel Confederado Wakefield (Laurence Harvey) e estuprado sua esposa Nina (Claire Bloom). Durante a conversa são narrados os relatos dos crimes, relatos feitos pelo próprio Juan Carrasco e recontado pelo padre; por Nina; pelo Coronel morto através de depoimento de um velho índio que encontrara o sulista ainda com vida; e finalmente pelo garimpeiro que chegara ao local do crime e encontrara Wakefield morto. Uma narrativa difere em vários aspectos da outra e o único fato concreto é que Carrasco foi sentenciado pela morte do Coronel. Justa ou injustamente é a dúvida que o filme levanta.

Acima Paul Newman; Newman e Harvey
Narrativa nebulosa - A verdade é algo subjetivo que depende do ponto de vista de quem a expressa, gerando inevitavelmente contradições quando há divergências de opiniões sobre ela. É isso que Ryünosuke Akutagawa propôs em suas duas histórias reunidas no roteiro original de “Rashomon” de Akira Kurosawa. Refilmado com o título “The Outrage” (As Quatro Confissões) manteve-se a nada convencional narrativa em flashbacks do filme de Kurosawa. O faroeste de Ritt mantém certo interesse quando do relato feito por Carrasco, o qual parece bastante verossímil. A mudança brusca se dá quando Nina relata sua versão dos acontecimentos, mais nebulosa e dramática pois expressa o difícil relacionamento da mulher com seu marido. A história contada pelo velho índio faz com que a atenção do espectador seja reduzida e afinal o depoimento do garimpeiro pouco acrescenta ao interesse pela ‘verdade’. Nessa parte final o roteiro deixa de ter o brilho dos diálogos iniciais e a direção de Martin Ritt se perde totalmente com a tragédia convertendo-se numa comédia e mais ainda, com um sentimentalismo inadequado.

Paul Newman e Claire Bloom; Claire Bloom.
Erotismo dramático - Um filme que inicialmente se propõe a discutir seriamente a ‘verdade’ termina de forma melancólica mal servindo, que seja, para uma provocativa brincadeira com o espectador. Claire Bloom e Laurence Harvey estão bastante expressivos em seus personagens, ele que como poucos é capaz de criar um tipo arrogante, no caso aqui o aristocrático ex-Coronel. As nuances de Claire são perfeitas, especialmente quando sob seu ponto de vista o esnobe Coronel Wakefield não é mais que um covarde que passava mal antes de partir para as batalhas da Guerra Civil. E ele também a desnuda revelando ser ela uma mulher oportunista e fútil. Os melhores momentos do filme são quando Nina se mostra satisfeita por ter sido possuída por Carrasco e mais ainda porque diante do marido a quem despreza e que está amarrado e amordaçado mas com os olhos bem abertos testemunhando a cena erótica. Sequência e diálogos fortes e raros no genero. Porém o grande equívoco deste filme foi justamente aquilo que parecia ser o maior trunfo para atrair o público: seu astro principal Paul Newman.

Laurence Harvey; Claire Bloom e Paul Newman

Paul Newman
Paul Newman grotesco - Mal recebido pela crítica quando de seu lançamento, “As Quatro Confissões” é um daqueles filmes, como o caso de “O Cálice Sagrado”, que Paul Newman certamente gostaria de omitir de sua filmografia, o mesmo valendo para Ritt. Newman conta que passou duas semanas no México para adquirir a maneira de falar dos mexicanos. Nem precisava ter perdido esse tempo pois melhor seria assistir a alguns filmes de Anthony Quinn, de cuja voz e rudeza naturais Newman muito se aproximou na composição de seu exagerado Carrasco. Ter sido realizado em preto e branco foi uma sorte para Newman que não precisou usar lentes para tornar seus olhos castanhos, embora tenha tentado esconder com lentes os olhos azuis masculinos mais famosos do cinema. Newman não se adaptou mas o preto e branco amenizou o problema. Mas havia ainda o bigode, o cavanhaque e a franja escura complementados com um grotesco aumento do nariz do ator para formar a mais bizarra imagem que Newman levou à tela em sua carreira. Somado a isso a mal concebida mudança de comportamento de seu personagem ao longo do filme.

Acima Howard Da Silva e Edward G.
Robinson; abaixo William Shatner e
Edward G. Robinson
Comparação impossível - James Wong Howe foi o responsável pela fotografia, como sempre excelente do notável cinegrafista. Sem preciosismo de angulações e travellings desnecessários Howe é preciso ao filmar as expressões e enquadrar o triângulo mantido mesmo com o personagem de Harvey à distância amarrado a uma árvore. Boas as sequências de luta, ainda que a última delas descambe para a galhofa. O reduzido elenco traz ainda William Shatner antes da fama como o ‘Capitão Kirk’ de “Jornada nas Estrelas” e os veteranos Edward G. Robinson e Howard Da Silva. Robinson num personagem filosofal e antipático que se torna por vezes irritante; e é sempre bom rever o ótimo Da Silva de tantos e excelentes filmes até sumir das telas por mais de uma década após ter sido ‘blacklistado’ pelas bruxas de Hollywood. Dois anos após “As Quatro Confissões”, Martin Ritt e Paul Newman se reencontrariam no admirável western “Hombre”, um dos grandes filmes de Ritt e das melhores interpretações de Newman como o mestiço taciturno. É recomendável que se assista primeiro a “As Quatro Confissões” e depois “Rashomon” de Kurosawa para que o filme de Ritt não pareça ainda mais fraco do que é.

Claire Bloom; Paul Newman