UMA REVISTA ELETRÔNICA QUE FOCALIZA O GÊNERO WESTERN

24 de outubro de 2012

OS ABUTRES TÊM FOME (Two Mules for Sister Sara) – A FREIRA GUERRILHEIRA



O diretor Budd Boetticher, autor da
história "Two Mules for Sister Sara".
Em 1970 Budd Boetticher já havia adquirido o prestígio merecido como diretor de westerns, mas mesmo assim não conseguiu dirigir “Os Abutres têm Fome”, filme baseado na história “Two Mules for Sister Sara” que o próprio Boetticher escrevera. O produtor Martin Rackin e a Universal Pictures entenderam que Don Siegel seria o diretor ideal para consolidar o nome de Clint Eastwood no cinema norte-americano, isto depois do sucesso da ‘Trilogia dos Dólares’ na Europa. Para interpretar a freira da história o primeiro nome cogitado foi o de Elizabeth Taylor. Mesmo colecionando sucessivos fracassos, Liz pediu um milhão e meio de dólares para vestir o hábito da Irmã Sara. A Universal até aceitou pagar, mas as seguradoras pediram muito dinheiro para cobrir os crônicos problemas de saúde da atriz que atrapalhavam seus filmagens. O seguro elevaria demais o custo da produção. Shirley MacLaine foi então chamada e pediu um milhão de dólares, salário aceito sem discussões até porque a história pedia uma atriz muito mais engraçada que Elizabeth Taylor que nunca foi comediante.


Lee Marvin e Clint Eastwood no fracassado
"Os Aventureiros do Ouro".
Western sob medida para Clint - Aos 35 anos de idade, a carreira de Shirley MacLaine chegara ao auge em 1969 com “Charity Meu Amor”. Antes ela demonstrara seu grande talento em êxitos como “Se Meu Apartamento Falasse”, “Infâmia”, “Irma La Douce” e “Can-Can”. Clint Eastwood, por seu lado vinha de um grande sucesso que foi “Meu Nome é Coogan” (em que foi dirigido pela primeira vez por Don Siegel) e de um fracasso chamado “Aventureiros do Ouro”. Nada melhor então que reunir a dupla Eastwood-Siegel e fazer um western com Clint relembrando seu personagem ‘Sem Nome’ dos filmes com Sergio Leone. Quem não gostou nada foi Budd Boetticher que, além de ser preterido para dirigir um western baseado em história de sua autoria, ainda viu seu texto sofrer profundas alterações. O roteirista Albert Maltz, a pedido do produtor Rackin, expandiu bastante a parte do personagem Hogan (Clint Eastwood), igualando-o em importância ao de Sister Sara (Shirley MacLaine). Mas se “Os Abutres têm Fome” deveria ser um western de Clint Eastwood, acabou sendo mesmo um filme de Shirley MacLaine, que por sinal já atuara em “O Irresistível Forasteiro” em 1957, estrelado por Glenn Ford.

Freira provocante-mente casta - Shirley MacLaine é uma das grandes comediantes da história do cinema norte-americano e não foi difícil para ela transformar Sister Sara num personagem mais engraçado que sério. O roteiro queria assim. Ainda que não seja uma freira de verdade, fato só revelado ao final do filme, Shirley MacLaine faz de Sister Sara a mais provocante irmã do cinema. Mais até que a suave Deborah Kerr, por quem Robert Mitchum se apaixonou no limitado pela Igreja Católica “O Céu por Testemunha”. E Sister Sara carregou muito do espírito aventureiro da missionária Rose (Katharine Hepburn) de “Uma Aventura na África”. Curiosamente estes dois últimos filmes foram dirigidos por John Huston, talvez a aposta ideal para mexer com a líbido do cowboy Clint Eastwood. Se em sua fase com Leone Clint pouco falava, não tinha nome, nem passado, nem futuro e muito menos sentimento, em “Os Abutres têm Fome” seu personagem é humanizado e passam por sua cabeça os desejos naturais dos homens. Mesmo diante de uma casta freira cujo corpo parece nunca ter visto a luz do sol.

Amor e dinheiro em Chihuahua - Em “Os Abutres têm Fome” Clint Eastwood é Hogan, mercenário que salva uma mulher de um estupro prestes a ser consumado. O corpo alvo e apetitoso da vítima bem que poderia mais tarde ser dele, Hogan, após exterminar os três violadores. Quando a moça se recompõe, o que surge, para desgostosa surpresa de Hogan, é uma freira. Bonita, é certo, mas freira. Irmã Sara não é só bonita, mas também engajada na luta dos mexicanos contra as forças de Napoleão III que através do Imperador Maximiliano tentavam colonizar o México. E Hogan gosta disso. O soldado da fortuna Hogan se interessa ainda mais quando a freira lembra que há muito dinheiro em jogo. Hogan coloca sua experiência a serviço de Sara e de uma centena de juaristas. Hogan lidera o ataque a uma fortificação das tropas francesas em Chihuahua onde se apoderam de um tesouro que vai servir tanto à causa patriótica mexicana como ao mercenarismo de Hogan. Depois de conter seus desejos pecaminosos em relação à freira durante quase todo o filme, Hogan afinal descobre que Sara é uma prostituta. Como um dia bem lembrou Billy Wilder, “ninguém é perfeito” e ao final Hogan parte de Chihuahua cheio de dinheiro e comboiando duas mulas. Uma delas montada por sua desejada Sara e a outra carregando muitos vestidos, chapéus e sapatos que nenhuma freira jamais sonharia usar.

Bons diálogos, ação fraca - O assunto revoluções mexicanas já havia rendido muitos faroestes como o clássico “Vera Cruz” e a obra-prima “Meu Ódio Será Sua Herança”. E vale lembrar “Sete Homens e um Destino”, faroeste não propriamente sobre as revoluções na terra de Emiliano Zapata e de Pancho Villa. “Os Abutres têm Fome” é um western menor pois lhe faltou justamente o que sobrava nos filmes de Aldrich (humor), Peckinpah (emoção) e Sturges (coesão). Shirley MacLaine praticamente carrega o filme de Don Siegel sozinha pois a sisudez de Clint Eastwood em nada ajuda os bons diálogos do roteiro. É exemplar um diálogo para mostrar essas diferenças, quando Sara diz: “Somos humanas, por certo e quando bate aquela vontade... nós rezamos para ela passar.” E Hogan pergunta: “No seu caso, irmã, você precisa rezar muito?”. As sequências de ação de “Os Abutres têm Fome” são sempre previsíveis e o ataque ao quartel do General LeClair (Alberto Morín) parece ter sido feito com cenas de arquivo de tantos outros filmes do gênero. Sem falar na mal disfarçada miniaturização do trem despencando num vale. Se o espectador aceitar que uma notória prostituta torna-se guerrilheira e foge das patrulhas francesas pelo deserto vestida com um pesado hábito de freira, então “Os Abutres têm Fome” é perfeitamente coerente em seu roteiro.

Famosa cena de "Domínio de Bárbaros", de
John Ford com fotografia de Gabriel Figueroa.
Figueroa e Morricone - Além dos dois atores principais, outros dois nomes famosos participaram da produção de “Os Abutres têm Fome”. O cinegrafista Gabriel Figueroa, responsável pela fotografia dos melhores dramas da época de ouro do cinema mexicano e preferido de Emílio Fernández e Luís Buñuel. O grande compositor italiano Ennio Morricone compôs a trilha sonora, desta vez menos criativa que em tantos outros westerns. Morricone tornou a fazer uso insistente de instrumentos musicais indianos, como havia feito dois anos antes na inovadora trilha composta para “O Grande Silêncio”, de Sergio Corbucci. Em meados dos anos 60 o Ocidente, através de George Harrison, descobriu a música do indiano Ravi Shankar, mas ninguém fez melhor uso de tablas e cítaras que Morricone. A fotografia de Figueroa é bonita sem chegar a ser especial como fazia com a iluminação de seus filmes em preto e branco mexicanos ou em sua colaboração com John Ford em “Domínio de Bárbaros”. Inteiramente filmado no México, "Os Abutres têm Fome" chegou a sofrer interrupção nas filmagens quando muitos dos técnicos norte-americanos contraíram a doença chamada 'Vingança de Montezuma' que provoca febre alta, vômitos e fortes diarréias. Shirley Maclaine foi uma das vítimas, enquanto o vírus parece não ter gostado do sangue de Clint Eastwood. O custo final do faroeste foi de três milhões de dólares, rendendo no primeiro ano de exibição módicos cinco milhões de dólares.

Don Siegel, Clint e Shirley devidamente protegida.
O triângulo Clint-Shirley-Don - A vida de Shirley MacLaine em “Os Abutres têm Fome” não foi nada fácil pois além de acometida pela 'Montezuma Revenge' sua pele muito sensível sofreu bastante com o calor inclemente. Don Siegel se cansou logo das reclamações da atriz e providenciou um guarda-sol para proteger Shirley quando ela estava fora das cenas. Mas o diretor teve que se render ao talento da estrela do filme, cujo nome nos créditos veio antes do nome de Clint Eastwood. Se Shirley brigou muito com o diretor, com Clint ela teve muito bom relacionamento e percebe-se a química entre os dois nas imagens. Don Siegel e Clint reafirmaram a amizade começada em “Meu Nome é Coogan” e a interpretação do ator foi, segundo o próprio Clint, a melhor de sua carreira até então. A sequência em que Sara extrai uma flecha do corpo de Hogan é um grande momento dramático do filme e deve, sem dúvida, ter sido descrita minuciosamente por Budd Boetticher em seu livro. Clint e Don Siegel seriam muito melhor sucedidos no filme seguinte, “O Estranho que Nós Amamos”, primoroso drama passado durante a Guerra Civil no qual Clint Eastwood abandonou a persona do ‘Estranho Sem Nome’ e mostrou ao mundo que era de fato um excelente ator nas mãos e Don Siegel.


Sara retirando a flecha de Hogan e ajudando o pistoleiro a acertar o alvo.


Os amigões Don e Clint; Shirley cuidando das queimaduras.

4 comentários:

  1. Parece inacreditável, mas a dupla MacLaine-Eastwood funciona muito bem.

    O Falcão Maltês

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  2. José Fernandes de Campos26 de outubro de 2012 às 18:22

    Boa noite a todos os assiduos a este maravilhoso blog. Esta semana o Darci escreveu sobre Don Siegel e em especial sobre OS AQBUTRES TEM FOME/TWO MULES FOR SISTER SARA. O filme é um western spagueti sob a tutela de um americano. Como eu falei no meu TOP TEN quem sabe fazer western é americano. Neste filme vemos todos os vicios de interpretação de Clint Eastwood quando ele esteve sob a tutela de Sergio Leone: olhos fechados, o riso sardonico e o habitual charuto. Mas o filme é bom. A quimica dele com Shirley é muito boa. As cenas de ação e os momentos "comicos" também são apreciaveis. Mas, mais uma vez tenho que falar que a trilha envolve o cinéfilo por completo. A Abertura é digna de constar como uma das melhores do genero. Os cortes, o rugido e o close no puma são demais. O contraste dos metais com as cordas são magnificas. Sugiro que vocês assistam a OBRA PRIMA de SIEGEL: THE BEGUILED/O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS. Um filme que ficou, aqui no Rio uma semana em cartaz, não foi idolatrado pela critica (o unico que falou bem foi Valerio Andrade em O GLOBO) e para a minha surpresa anos depois foi dado pelos mesmos como um filmaço. Assistam que vocês não se arrependeram. O cast feminino (a sua Totalidade) é invejável. Geraldine Page dá um show e o que falar da candura de Elizabeth Hartman, grande atriz que de repente sumiu. Um abraço a todos e até derepente.

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    1. Eu vi as duas versões (a do Clint de1970, e a do Colin Farrel de 2017) a primeira versão dá de 10/0. Desculpe Colin — mas a Sofia Coppola estragou tudo.

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