As produções de certos filmes se transformam em verdadeiras odisséias, como foi o caso de “Meu Ódio Será Sua Herança”. Do início do roteiro, passando pela tumultuada filmagem em locações nas cidades mexicanas de Torreón, Parras e Durango, até a chegada às telas dos cinemas, o western de Sam Peckinpah mexeu com os nervos de todos os envolvidos na produção. Porém muito mais que as dúzias de caixas de vodka e de tequila que Peckinpah consumiu nos quase dois anos dedicados a “The Wild Bunch”, o que mais deu dor de cabeça ao diretor foram os resultados de bilheteria alcançados pelo filme quando de seu lançamento. Segundo os dados divulgados pela Warner Bros. “Meu Ódio Será Sua Herança” teria sido um fracasso. Mas será isso verdade?
A temida Pauline Kael, crítica de cinema da revista "The New Yorker". |
POUCO ENTUSIASMO INICIAL - “Meu Ódio Será Sua Herança” teve exibições especiais, chamadas de ‘previews’ em maio de 1969, quase um ano depois de terminadas as filmagens. Após essas exibições tiveram início as histórias que diziam que espectadores abandonavam a sala de exibição e alguns até vomitavam horrorizados com o que viam na tela. O filme tinha nessas exibições prévias 150 minutos de duração e Peckinpah foi forçado a excluir algumas cenas, reduzindo “The Wild Bunch” em seis minutos. Em 28 de junho de 1969 o filme foi finalmente lançado comercialmente em apenas um cinema em Los Angeles e outro em Nova York, sendo imediatamente saudado por boa parte da crítica como um marco cinematográfico. Assim pensavam os críticos das revistas ‘Time’, ‘Life’ e da prestigiosa ‘The New Yorker’ (Pauline Kael) e do jornal 'The New York Times'. Não faltou, porém, quem dissesse que o filme era “o maior banho de sangue que o cinema já havia mostrado”, criticando acerbamente a violência exibida no filme. Isso deve ter ajudado a afugentar os espectadores quando em seguida “The Wild Bunch” foi lançado no Texas com intensa campanha publicitária que, à época custou 200 mil dólares (hoje um milhão e duzentos e cinqüenta mil dólares). Ao lançar o filme no Texas, a Warner Bros. procurava imitar o que era feito com os faroestes estrelados por John Wayne que eram primeiramente lançados naquele Estado onde faziam sucesso que repercutia nos outros Estados norte-americanos. Mesmo com o prenúncio de más bilheterias, o filme de Peckinpah foi lançado em 440 cinemas de todo o país. Depois de duas semanas de exibição com pouco entusiasmo do público, a Warner Bros. determinou que as cópias de “Meu Ódio Será Sua Herança” fossem recolhidas pelos distribuidores.
O crítico e cineasta inglês Alex Cox e o big boss da Warner, Steve Ross. |
EXIBIÇÃO COM ‘INTERMEZZO’ - É importante lembrar que os lucros da Warner Bros. haviam caído de dez milhões de dólares em 1967 (hoje 62 milhões de dólares), para meros 300 mil dólares em 1968 (dois milhões de dólares corrigidos hoje), o que provocou a venda do estúdio em 1969. Steve Ross, o novo dono implantou uma política administrativa diferente da anterior, política que não demorou a ser sentida e sobrou exatamente para Sam Peckinpah. Os distribuidores ingleses que viram “Meu Ódio Será Sua Herança” na semana inicial de lançamento em Nova York, exigiram que na Inglaterra o filme fosse igualmente exibido como ‘road-show’, o que quer dizer em poucos cinemas mas com tratamento de superprodução. E assim, em Londres, “The Wild Bunch” teve direito a cópia em 70 mm, som stereo (raro na época) e até mesmo um intermezzo entre a primeira e segunda parte do filme. A crítica inglesa liderada por Alex Cox reconheceu o novo western de Peckinpah como o melhor filme do ano. Mesmo assim a Warner Bros. não sabia o que fazer com aquele elefante branco que não dava lucro.
Nota do editor - Os valores em dólares que aparecerem neste texto do próximo parágrafo em diante estarão atualizados devidamente corrigidos pela inflação.
Grandes sucessos de 1969: "Bravura Indômita", "Butch Cassidy", "Bob & Ted & Carol & Alice", "Perdidos na Noite", "Sem Destino" e "Se Meu Fusca Falasse". |
OS GRANDES SUCESSOS DE 1969 - Ocorreram muitas mudanças na produção de filmes a partir de 1969 e um dos motivos dessas mudanças foi o road movie “Sem Destino” da Columbia, dirigido por Dennis Hopper, que custou dois milhões e meio e rendeu 375 milhões. Outro filme da Columbia de produção relativamente barata e que deu muito lucro foi “Bob & Ted & Carol & Alice”, que custou 12,5 milhões e rendeu 188 milhões. “Meu Ódio Será Sua Herança” havia custado, segundo informações iniciais da Warner Bros., 40 milhões e a baixa arrecadação obtida até então era um indicativo claro que os executivos da Warner Bros. estavam com uma bomba nas mãos. Era preciso desativar essa bomba antes que ela explodisse e causasse danos ainda maiores para o estúdio. Enquanto isso outros estúdios nadavam em lucros de filmes como “Butch Cassidy e Sundance Kid”, que custou à 20th Century-Fox os mesmos 40 milhões que o filme de Peckinpah, mas rendeu a fortuna de 605 milhões. A Paramount gastou 22 milhões para produzir “Bravura Indômita” e faturou 126 milhões nesse que foi o último grande sucesso de bilheteria de John Wayne no cinema. Outros filmes que deram boas bilheterias em 1969 foram “Perdidos na Noite” (MGM), que custou 22,5 milhões e rendeu 280 milhões; “Se Meu Fusca Falasse” (Walt Disney), que custou 12,5 milhões e foi um estouro nas bilheterias onde alcançou 320 milhões. Todos os estúdios ganhavam dinheiro, menos a Warner, mais uma razão para fazer o western de Peckinpah pelo menos se pagar.
Acima Phil Feldman e abaixo uma das muitas cenas cortadas. |
TESOURA ÁGIL - Phil Feldman, produtor ligado à Warner foi o homem que possibilitou a Sam Peckinpah torrar os 40 milhões de dólares no México com “Meu Ódio Será Sua Herança”. Sam e Feldman eram grandes amigos. Sam confiava em Feldman e este admirava profundamente o trabalho de Sam. E foi Feldman o escolhido pela Warner Bros. para transformar “The Wild Bunch”, que tinha 144 minutos de duração, num filme mais comercial. Feldman comandou o trabalho da reedição, conseguindo cortar doze minutos do western, o que deixou satisfeitos os executivos do estúdio e, claro, endoideceu ainda mais “Crazy Sam”. Ao saber da trama Peckinpah perguntou a Feldman o que estava acontecendo e o ‘amigo’ lhe garantiu que ninguém mexeria em “The Wild Bunch”. A Warner Bros. não fez o chamado ‘recall’ do filme, autorizando que os distribuidores em cada grande cidade procedessem aos cortes a partir de uma orientação do estúdio. As mais de 500 cópias do filme sofreram então mutilações de todo tipo, nem sempre obedecendo os cortes ‘autorizados’ por Feldman que deveriam excluir a sequência da batalha entre as tropas de Mapache (Emílio Fernández) e as de Pancho Villa, os flash-backs lembrados por Pike Bishop (William Holden) e parte da cena passada na aldeia onde viveu Angel (Jaime Sánchez). Segundo Peckinpah esses cortes deixaram o filme incompreensível mas para a Warner Bros. ele ficou muito melhor, graças às tesouras de todo território norte-americano comandadas por Feldman, o amigo de Peckinpah. Essas mesmas cópias vieram a circular indistintamente por outros países, levando diferentes espectadores a ver um filme com diferentes edições.
George Lucas e John Milius (à esquerda); Martin Scorsese (à direita), entusiasmados admiradores de "Meu Ódio Será Sua Herança". |
“MELHOR QUE RASTROS DE ÓDIO" - Lançado com nova metragem em todo o país e no Canadá com resultados distantes dos esperados, “Meu Ódio Será Sua Herança” havia contabilizado em seu primeiro ano de exibição apenas 47 milhões. Isso significa que matematicamente o filme não deu prejuízo e sim um pequeno lucro de sete milhões. Mas na Matemática do estúdio deveriam ser ainda incluídos nas despesas com “Meu Ódio Será Sua Herança” os gastos com distribuição, e a ‘mutilação’ das novas cópias, além de outros custos adicionais, somando um total de outros discutíveis 36 milhões. Além do produtor Phil Feldman, também Peckinpah e William Holden tinham, por contrato, direito a porcentagens do lucro líquido do filme. Como a Warner Bros. mostrava os imensos números vermelhos na rentabilidade daquele faroeste, nenhum dos três conseguiu um centavo além dos salários recebidos. Pouco visto nos cinemas, “Meu Ódio Será Sua Herança” adquiriu o status de obra-prima numa espécie de boca-a-boca promovido por gente como Martin Scorsese, John Millius e George Lucas. O diretor de “Guerra nas Estrelas” era um dos mais entusiasmados com o filme de Peckinpah, afirmando em entrevistas que aquele era “o melhor filme da história do cinema, melhor até que Rastros de Ódio”.
Sam e Bill Holden |
DIVIDENDOS A LONGUÍSSIMO PRAZO - Opiniões como essas obrigaram o relançamento mundial de “Meu Ódio Será Sua Herança’ ocorrido em 1976. Mais 52 milhões foram então contabilizados, mas segundo a complexa matemática da Warner Bros. “The Wild Bunch” continuava no vermelho. Dada a importância do western de Peckinpah, ocorreram outros relançamentos, até a morte do diretor, em 1984. Para azar de Sam, somente seus herdeiros é que passaram a receber dividendos referentes aos direitos de Peckinpah como diretor do filme, o mesmo acontecendo com Bill Holden, falecido em 1981. O produtor Feldman, que faleceu em 1991, teve mais sorte e recebeu alguns milhares de dólares liberados pelos contadores da Warner Bros.
"The Wild Bunch" no Espaço Unibanco em São Paulo em 1996; abaixo o Dome. |
A CAMPANHA DE SCORSESE - Já nos anos 90, Martin Scorsese encabeçou um movimento pela restauração de “Meu Ódio Será Sua Herança”, com sua metragem original de 144 minutos e 38 segundos, em cópia remasterizada e com som Dolby. Em 1995 cinéfilos do mundo todo puderam assistir “The Wild Bunch” no cinema novamente, com a chamada ‘director’s cut’ ainda melhorada tecnicamente. Em Los Angeles o relançamento ocorreu no Cinerama Dome. Outras 15 cidades norte-americanas (entre elas Nova York, São Francisco, Chicago e Boston) foram selecionadas para homenagear o filme de Peckinpah com novas exibições. Aqui em São Paulo essa cópia de “Meu Ódio Será Sua Herança”, foi exibida em 1996 durante um festival comemorativo ao cinquentenário da Warner Bros. e o cinema escolhido foi o Espaço Unibanco, na Rua Augusta. Durante uma semana o público pode apreciar um filme de cada gênero produzido pela Warner Bros., que sempre esteve entre os três maiores estúdios produtores de filmes. E foi no Espaço Unibanco Augusta que pude, finalmente, assistir à versão completa de “Meu Ódio Será Sua Herança” num cinema de verdade. Esse western extraordinário cresce consideravelmente quando assistido em tela grande e confesso que foi um momento de grande emoção. Até então conhecia-se o filme de Peckinpah em versões de 123, 132, 138 e 141 minutos e dependo da sorte o espectador conhecia uma versão mais ou menos próxima da original.
INFLUÊNCIA DE TODA UMA GERAÇÃO - Essas exibições mais recentes de “Meu Ódio Será Sua Herança” renderam mais um mihão de dólares. Lançado em VHS e mais tarde em DVD e em Blue-Ray, “The Wild Bunch” nunca saiu de catálogo, constando das coleções de qualquer cinéfilo de verdade. Kip Dellinger, que era gerente de negócios de Sam Peckinpah em 1972, afirmou em 1995 que pelas suas contas “Meu Ódio Será Sua Herança” rendera por volta de 165 milhões dólares, o que faz com que esse faroeste não seja exatamente um fracasso. Após todas as trapalhadas e piruetas que o estúdio conseguiu arquitetar, não há dúvida que, mesmo não sendo um sucesso de bilheteria, o filme deu lucro para a Warner Bros. Talvez um lucro pequeno, incompatível mesmo com a grandeza desse faroeste que é não só um dos grandes filmes do gênero mas de toda a história do cinema. E se ‘Crazy Sam’ Peckinpah não viveu para saborear plenamente a glória de “The Wild Bunch”, ele bem sabia que havia feito um filme incomum, que causou impacto em toda uma geração de cineastas. Certamente isso ele sabia.