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Lima Barreto e Anselmo Duarte |
Lima Barreto, o cineasta, era também
escritor e um de seus livros foi “Quelé do Pajeú”, que Lima tencionou levar ao
cinema. Excêntrico e de temperamento difícil, o que se refletiu em dificuldades
de produção em todos seus projetos inclusive no bem sucedido artística e
comercialmente “O Cangaceiro”, Lima Barreto viu fracassar a tentativa de
transformar “Quelé do Pajeú” em filme. Escreveu o roteiro e com ele debaixo do
braço saiu em busca de financiamento, mas aos 63 anos de idade e cada vez mais
irascível, viu todas as portas se fecharem. O roteiro de Lima Barreto chegou às
mãos de Anselmo Duarte que leu e imediatamente se interessou em filmá-lo,
impondo a condição de fazer algumas alterações na história, com o que a
princípio Lima concordou. O terceiro filme de Anselmo Duarte, “Veredas da
Salvação” (1965) não havia repetido o êxito comercial de “O Pagador de
Promessas”, mas mesmo assim Anselmo conseguiu apoio financeiro de pessoas
físicas e jurídicas. Além do Instituto Nacional do Cinema (INC), nada menos que
sete bancos decidiram investir no projeto, assim como gente conhecida como o
colunista social Ibrahim Sued e o crítico carioca Carlos Fonseca. Com um bilhão
de cruzeiros para seu novo projeto, Anselmo Duarte não teve dificuldades em contratar
Tarcísio Meira, já então mais famoso galã da televisão e a atriz
Izabel Cristina (que mudou o nome para Guy Loup) igualmente conhecida, além de Jece Valadão e Rossana Ghessa para
os principais papéis. Lima Barreto pretendia filmar “Quelé do Pajeú” no sertão
pernambucano buscando maior autenticidade, mas Anselmo levou a equipe para a
sua cidade natal, Salto de Itú, uma espécie de Alabama Hills cabocla, onde o
filme foi quase inteiramente rodado.
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Tarcísio Meira e Elizângela Vergueiro; Tarcísio com Rossana Ghessa. |
Juramento
de vingança - O nome de Lima Barreto consta nos créditos como autor da
história e co-roteirista, mas Lima deu várias entrevistas mostrando-se
inconformado com as alterações feitas por Anselmo Duarte que teriam desvirtuado
seu texto original. No filme Quelé do Pajeú é o apelido dado pelo Capitão
Virgulino Ferreira, o Lampião (Luiz Alberto Meirelles), ao vaqueiro Clementino
Celidônio (Tarcísio Meira) que certo dia retorna para casa e se depara com uma tragédia.
Um forasteiro com uma cicatriz na testa e sem o dedo mindinho da mão direita
após agredir a mãe de Clementino (Anita Isbano) violenta sua irmã Marizolina
(Elisângela Vergueiro). Quelé jura vingança e sai à procura do desconhecido e
entre as pessoas que encontra nessa busca está Maria Rita (Izabel Cristina) e o
bando de Lampião. Mais tarde Quelé conhece a jovem Maria do Carmo (Rossana
Ghessa) que por ele se apaixona e que passa a acompanhá-lo. Finalmente Quelé se
depara, na cidade de Imbé, com Cesídio da Costa (Jece Valadão), o homem que
desgraçara sua família, justamente no dia em que Cesídio vai se casar. Quelé
faz o noivo seu prisioneiro e o obriga a acompanhá-lo até seu sítio em Pajeú
das Flores, bem como um padre (Sergio Hingst) a quem ordena que case Cesídio
com Marizolina que engravidara após o estupro sofrido. Em Imbé Quelé havia
matado um cabo ao se defender da polícia local e é perseguido por uma patrulha.
A milícia cerca seu sítio mas Quelé, ajudado por Cesídio, defende-se trocando
tiros com a força policial. Cesídio morre no tiroteio e Quelé está prestes a
ser morto quando surge um bando de cangaceiros comandado por Lampião dizimando
a milícia. Sabedor que será procurado pela Justiça, Quelé se torna mais um
cabra do bando de Lampião, vendo Maria do Carmo, grávida de seu filho, ser
morta por um tiro disparado pelos ‘macacos’ de uma volante.
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Jece Valadão; Luiz Alberto Meireles e Jorge Karam. |
O
nordestern de Anselmo Duarte - Em suas pesquisas sobre o cangaço,
Lima Barreto descobriu que existiu um pernambucano chamado Clementino Furtado,
apelidado de Quelé, e que após ter participado do bando de Lampião, tornou-se
policial. Atingindo o posto de sargento, Quelé foi um dos mais tenazes
perseguidores de cangaceiros, comandando uma volante conhecida como ‘Coluna
Pente Fino’, responsável pelo extermínio de dezenas de cangaceiros. Sargento
Quelé, que era lembrado como ‘a valentia em pessoa’ veio a falecer de morte
natural em 1955 e inspirou Lima Barreto a criar o personagem protagonizado por
Tarcísio Meira. No mesmo ano em que foi produzido “Quelé do Pajeú’, Glauber
Rocha filmou seu “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, ambos
autênticos nordesterns, ou seja, faroestes ambientados no sertão nordestino mas
com diferentes pretensões estéticas. Glauber, que viajava bastante, conhecia a
nova linguagem dos westerns produzidos na Europa, cujos expoentes eram Sergio
Leone e Sergio Corbucci. Anselmo Duarte, por seu lado, tinha “O Cangaceiro” e o
ciclo que se desenvolveu posteriormente sobre o cangaço, como modelos para seu
novo filme. Glauber era uma espécie de unanimidade para a crítica, sendo seu
novo filme com o personagem Antônio das Mortes saudado como obra de gênio. Sem
a mesma repercussão na imprensa, Anselmo Duarte com “Quelé do Pajeú” realizou
um dos melhores exemplares do gênero nordestern.
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Rossana Ghessa, Sergio Hingst, Jece Valadão e Tarcísio Meira; Luiz Alberto Meireles; |
Desafio
à ditadura militar - Tecnicamente muito bem produzido,
sendo o primeiro filme nacional em 70 mm e som estereofônico, “Quelé do Pajeú”
reafirma o inegável talento de seu diretor. Anselmo imprimiu ritmo quase
perfeito à odisseia de Quelé na consecução de sua vingança, alternando cenas de
ação, romance e sensualidade sem deixar de observar os aspectos religiosos,
mesmo o fanatismo tão comum ao homem simples. A história ganha nuances que
desafiam os costumes tidos como normais a exemplo da inusitada vingança de
Quelé ao obrigar Cesídio, retirado do altar de uma igreja em seu casamento,
para se casar com sua irmã, o que é visto com naturalidade por todos. Mesmo
Cesídio tem direito a explicar que nada demais fez a não ser cumprir seu dever
de macho e ninguém melhor que Jece Valadão para usar essa tese. Sem qualquer
compromisso com a defesa da ordem legal, cangaceiros são mostrados
simpaticamente, dividindo com o povo o produto dos saques praticados, ainda que
por vezes pratiquem alguns excessos abusando de suas vítimas. Nunca mostrados
como bandidos, mas sim como gente alegre, valente e justa, os cabras liderados
pelo Capitão Virgulino Ferreira vencem sempre as forças policiais organizadas
fazendo de “Quelé do Pajeú” um filme desafiador no mais grave momento da
ditadura militar no Brasil. Ao final, vendo sua mulher grávida ser morta pelas
forças do governo, Quelé segue sua vida ao lado dos cangaceiros em busca de
justiça social. Ainda bem que os rigorosos censores cochilaram e o filme de
Anselmo Duarte foi exibido normalmente, por algum tempo...
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Tarcísio Meira e Jece Valadão |
Sequências
antológicas - O maior defeito de “Quelé do Pajeú”, por sinal comum em
nosso cinema, é transformar pessoas simples em filósofos capazes de expressar
frases de grande profundidade. Quelé fala só o suficiente e no linguajar típico
de sua gente, mas outros personagens como Maria do Carmo, Cesídio, Maria Rita e
até o guarda do quarteirão (Simplício) são cansativos com suas falas recheadas
de alcance psicológico quando não metafísico. Queixosa com a quase mudez de
Quelé, Maria do Carmo lhe diz: “Já não
basta o silêncio do deserto que parece sem vida...”. Se Anselmo Duarte não
soube evitar esse tipo de armadilha, por outro lado apresenta em seu filme
sequências que merecem fazer parte de qualquer antologia do nosso cinema. Maria
do Carmo rejeitada por Quelé monta o cavalo e se excita durante a cavalgada até
atingir o orgasmo numa sequência de extraordinária beleza e sensualidade. A
luta entre Quelé e Cesídio, inicialmente com facão e punhal, depois com pedaços
de madeira e terminando com punhos é excepcionalmente bem coreografada e sem o
uso de dublês, em outro momento supremo deste filme. Quelé demonstrando sua
coragem e Lampião aceitando o desafio e arriscando a vida “...seja o que Deus quiser...” para reafirmar sua macheza é também
uma sequência admirável.
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Rossana Ghessa |
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Geraldo Vandré e Izabel Cristina |
Trilha
sonora inferior - A trilha sonora musical de “Quelé do
Pajeú” foi composta por Marconi Campos, Hilton Acioli e Théo de Barros, sendo
executada pelo Trio Marayá, formado por Marconi, Hilton e Behring Leiros, todos
maranhenses. Esses músicos acompanharam Geraldo Vandré nas apresentações das
canções “Disparada” e “Ventania”, que Vandré levou aos festivais da TV Record.
Porém as canções utilizadas no filme não possuem a força destas citadas ou de
outras compostas por Vandré, deixando o espectador durante o filme todo à
espera de uma canção mais vigorosa, o que não ocorre, não propiciando, assim, maior
força dramática às imagens capturadas pelo cinegrafista José Rosa. Uma pena
mesmo, ainda mais porque consta que Geraldo Vandré tenha participado como ator
sem que possa ser identificado com maior certeza. Essa e muitas outras dúvidas
cercam “Quelé do Pajeú”, dúvidas que infelizmente não podem ser esclarecidas
visto que a maior parte dos participantes desta produção já faleceu. A atriz
Isabel Cristina, ou Guy Loup, que há anos reside na França, seria uma fonte
fidedigna, assim como o próprio Vandré e Rossana Ghessa.
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Tarcísio Meira; Simplício e Izabel Cristina. |
Tarcísio
Meira como sertanejo - Aos 34 anos Tarcísio Meira
protagonizou brilhantemente o personagem principal deixando longe sua imagem de
galã para interpretar o sofrido Quelé. Jece Valadão igualmente excelente não
precisando se esforçar muito para compor mais um canalha na extensa galeria de
tipos que viveu no cinema, se bem que seu personagem Cesídio termina por se
redimir e lutar ao lado de Quelé. A linda Rossana Ghessa, italiana de
nascimento, era uma resposta do cinema brasileiro a Claudia Cardinalle e sai-se
bem como Maria do Carmo, personagem completamente diferente das tantas que se
acostumou a interpretar mas com igual poder de sedução. E sensualidade é o que
não falta também à bonita Izabel Cristina, em papel menor. Elizângela, aos 14
anos é Marizolina, ela que teve seu auge como mulher sensual nas novelas
nacionais. Sergio Hingst, eficiente como de hábito completa o elenco central
que tem um Lampião alourado e sem os óculos característicos. Jorge Karam é um
dos cangaceiros e Simplício (Francisco Flaviano de Almeida) tem participação
pequena mas cansativa o suficiente superatuando desnecessariamente. Anselmo
Duarte era muito bom na direção de atores mas acabou deixando Simplício se
exceder. Regina Duarte paris, a filha de Anselmo Duarte faz uma ponta como a
noiva de Cesídio.
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Rossana Ghessa, Elizângela Vergueiro, Jorge Karam e Sergio Hingst |
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Tarcísio Meira; Tarcísio e Rossana Ghessa. |
Filme
descoberto 40 anos depois - Uma vinheta do Canal Brasil diz
assim: “O que seria do Brasil sem... o Canal Brasil”. De fato, haveria uma
lacuna impossível de ser preenchida pois entre as dezenas e dezenas de
produções nacionais rodadas sob os auspícios da Lei Rouanet, o Canal Brasil nos
presenteia com um filme como “Quelé do Pajeú” e outros clássicos do nosso
cinema. Nossa produção cinematográfica sempre lutou por espaço nas salas
exibidoras, como foi o caso deste filme de Anselmo Duarte que permaneceu por
seis semanas em cartaz no Cine Windsor. Já a imensa maioria das dezenas (ou
centenas) de filmes que o Brasil produz neste novo século são exibidos apenas
nas madrugadas do Canal Brasil. A incúria dos donos da nossa cultura permitiu
que “Quelé do Pajeú” fosse dado como desaparecido por 40 anos pois não se sabia
da existência de uma única cópia sequer. E disso se aproveitou bem Anselmo
Duarte que gostava de dizer que seu melhor filme era exatamente “Quelé do
Pajeú”, aquele que ninguém mais podia assistir. E uma lenda se criou em torno
dessa obra até que um certo Paulo Wenceslau Duarte, descobriu na Europa uma
cópia em muito bom estado. Essa cópia foi a exibida na Itália pois contém
legendas em Italiano e, ainda bem, foi resgatada e apresentada como presente de
Natal em 2016 pelo Canal Brasil. Anselmo Duarte estava certo ao falar bem de
“Quelé do Pajeú”, um grande filme, sem dúvida, mas aquém da poética
simplicidade de sua obra-prima “O Pagador de Promessas”.