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5 de junho de 2016

A LANÇA PARTIDA (BROKEN LANCE) – SPENCER TRACY COMO UM TIRÂNICO PATRIARCA


Phillip Yordan (acima) e
Edward Dmytryk
Phillip Yordan foi um dos mais fecundos roteiristas de Hollywood, com nada menos que 67 trabalhos numa carreira que durou mais de cinco décadas. Fãs de westerns lembram bem do nome de Yordan que roteirizou clássicos como “Johnny Guitar”, “Estigma da Crueldade” (The Bravados) e “Quadrilha Maldita” (Day of the Outlaw), além de outros faroestes de menor expressão. E foi com um western que Phillip Yordan recebeu o Oscar de 1955 ao escrever uma história para “A Lança Partida” (Broken Lance), exibido em 1954. Yordan já havia roteirizado o livro “I’ll Never Go Home Again”, de Jerome Weidman para “Sangue do meu Sangue”, excelente drama noir de 1949 estrelado por Edward G. Robinson e Susan Hayward. Pois Yordan gostou tanto da tragédia familiar escrita por Weidman que fez nova adaptação ambientando-a desta vez no Oeste, alterando um pouco a trama mas mantendo o eixo da história que fala da disputa entre pais e filhos pelo império construído pelo velho genitor. E Yordan voltaria ao tema no ano seguinte no igualmente clássico “Um Certo Capitão Lockhart” (The Man from Laramie), cuja história também faz lembrar “Rei Lear”, de William Shakespeare. Em todos esses filmes, ao invés das três irmãs, são irmãos que se desentendem com o pai e litigam pelo espólio, como em  “A Lança Partida”, western dirigido por Edward Dmytryk.


Spencer Tracy; Earl Holliman,
Hugh O'Brian e Richard Widmark
Revolta contra um pai tirano - Matthew Devereaux (Spencer Tracy) é o maior criador de gado de uma região situada no sudeste do Arizona. O velho Matt ficou viúvo da primeira esposa, com quem teve os filhos Ben (Richard Widmark), Mike (Hugh O’Brian) e Denny (Earl Holliman). Matt se casou pela segunda vez com uma jovem índia, filha de um chefe Comanche, e com ela teve o filho Joe (Robert Wagner). Matt trata de forma tirana os filhos do primeiro casamento, enquanto gosta mais do filho mestiço, o que revolta os preteridos Ben, Mike e Denny. Algumas dezenas de reses morrem envenenadas devido à água do rio que passa pela propriedade dos Devereaux ter sido contaminada por uma mina instalada pelo governo, rio acima. Matt e seus filhos se dirigem à mina, invadem o local destruindo instalações. O Governo aciona Matthew que se torna réu e prestes a ser condenado. O advogado do barão de gado propõe que Joe assuma a culpa pelo incidente, além de pagar uma indenização pelos danos causados à mina. A trama é aceita por Joe que é condenado a três anos de prisão, livrando assim seu pai de iminente sentença. Enquanto Joe cumpre pena, o império Devereaux desmorona devido a um ataque cardíaco sofrido por Matt em desavenças com seus três filhos mais velhos. Com a morte do pai o trio se torna dono do que restou uma vez que por ser índia a ‘Señora’ Devereaux (Katy Jurado) não pode legalmente ser proprietária de terras. Após cumprir pena Joe retorna à casa grande da fazenda, que está abandonada, sendo recebido por Two Moons (Eduard Franz), velho índio capataz de Matt. Os irmãos procuram persuadir Joe a deixar o Arizona rumando para o Oregon e para isso tentam suborná-lo com dez mil dólares. Joe não aceita e é perseguido por Ben que tenciona matá-lo, sendo, no entanto, morto por Two Moons, o que marca a destruição da família Devereaux.

Spencer Tracy e Katy Jurado;
Robert Wagner e Jean Peters
Preconceito e discriminação - O prêmio Oscar de Melhor Roteiro concedido a Phillip Yordan é uma das muitas demonstrações que a Academia de Cinema de Hollywood nem sempre é séria. Mesmo consideradas as alterações contidas no script de “A Lança Partida”, de autoria de Richard Wilson, o espectador fica com a impressão de estar assistindo a uma versão de “Sangue do meu Sangue”. A desunião familiar neste faroeste dirigido por Edward Dmytryk tem origem também na ambição e no tratamento despótico do tirânico barão de gado. Este último fato, porém, é justificado em parte, pela entrada na família da ‘princesa’ Comanche e do filho mestiço. Matthew Devereaux entendia que seu poder era ilimitado, permitindo a ele não só praticar a própria justiça, como desafiar a sociedade local casando-se com uma índia. Influente, Matt possibilita que seu amigo Horace (E.G. Marshall) tenha bem sucedida carreira política, chegando a Senador e a Governador. Matt exige ainda que todos chamem sua esposa de ‘Señora’ Devereaux e não vê inconveniente em Ben, seu filho mestiço, se casar com Barbara (Jean Peters), filha do governador, o que não agrada ao político Horace. Casamentos entre brancos e índios contrariam as normas impostas pelos brancos dominadores, o que Matt Devereaux não leva em conta. Essas questões que tratam de preconceito e discriminação propiciam à trama uma dramaticidade ainda maior. O problema é que Edward Dmytrk não estava em seus melhores dias.

Philip Ober e Spencer Tracy;
Russell Simpson
Abatimento moral - O desfecho trágico do drama familiar é previsível desde o início do filme que é narrado em longo flashback. Dos três filhos de Matthew Devereaux com a primeira mulher, apenas Ben tem confrontos mais intensos com o pai, a quem questiona pela preferência pelo meio irmão mestiço. Além disso o velho patriarca insiste em aumentar o abismo familiar com o excessivo respeito à esposa índia, a quem chama de ‘Madame’. Trataria ele assim a finada esposa? O velho Matt consegue criar situação insustentável agravada ainda mais porque os filhos mais velhos há muito se tornaram adultos e a intempestiva investida contra a mina era tudo que o trio de irmãos precisava para uma radical mudança de cenário. A ação contra a mina resulta em processo judicial no qual mais uma vez Matt quer fazer valer seu poder, ignorando que agora não luta contra meros adversários, criadores pioneiros como ele. A mina é explorada pelo governo e a Justiça pende para o lado desta. A sequência de tribunal é dos melhores momentos do filme, com Van Cleve (Philip Ober), o arguto advogado da mina, enredando impiedosamente o insolente barão de gado que, atônito, descobre que seu poder tem limites. Matt se vê moralmente abatido por ser forçado a transferir a culpa de seu ato justamente ao filho Joe, com a consequente condenação deste.

Katy Jurado grisalha;
Robert Wagner e Jean Peters
Filme sem energia e inspiração - Mesmo com a história de Phillip Yordan enriquecida por personagens e situações não presentes no original, “A Lança Partida” não tem força suficiente para envolver o espectador. O filme carece de maior intensidade dramática e mesmo uma sequência vital como quando Matt chicoteia o filho mais velho ao tentar se impor através da violência -  e desaba vítima de um ataque cardíaco - é gritante pela falta de inspiração. Logo em seguida o semiinválido barão de gado parte numa tresloucada cavalgada por caminhos escarpados para morrer de modo até tranquilo sobre o cavalo, cena decididamente patética. O romance proibido entre o filho mestiço de Matt e a filha do governador melhor ficaria num daqueles romances juvenis da 20th Century-Fox, aqui certamente culpa do anódino par amoroso composto por Robert Wagner e Jean Peters. Por outro lado, Spencer Tracy e Richard Widmark são atores talentosos mas cujos embates neste filme não produzem a necessária e esperada energia. Mas nenhum personagem é mais fraco que o da ‘Señora’ Devereaux, submissa ao estranhamente sempre amoroso marido e muda diante dos conflitos que se sucedem. Após ter interpretado dois anos antes, de forma inesquecível a sedutora e forte, ‘Helena Ramirez’ em “Matar ou Morrer” (High Noon), eis que a esplêndida Katy Jurado vira uma índia com um fraquíssimo desempenho, incondizente com sua capacidade interpretativa.

Spencer Tracy; Hugh O'Brian e Richard Widmark

Spencer Tracy e Katy Jurado; Spencer
 Tracy. Earl Holliman e Hugh O'Brian
Mestiço inconvincente - Spencer Tracy é o grande nome do elenco, vivendo personagem apropriadíssimo, no entanto, sem o costumeiro brilho. Na muito boa sequência do tribunal, o clássico sarcasmo de Tracy é sobrepujado pela ótima presença de Philip Ober. Esta sequência desperta a vontade de rever Spencer Tracy em sua excepcional atuação, também dentro de um tribunal, em “O Vento Será Sua Herança” como o advogado que defende a Teoria da Evolução das Espécies. No elenco estão ainda Hugh O’Brian e Earl Holliman, ambos com participações irrelevantes. Robert Wagner entra para a extensa galeria de atores (e atrizes) que interpretam inconvincentemente mestiços, como que se o rosto escurecido pela maquiagem pudesse operar milagres. Eduard Franz também vira índio, completando o trio étnico de intérpretes não índios com Katy Jurado. Wagner, apenas seis anos mais novo que a atriz mexicana passa por filho desta que, no filme, após três anos, aparece envelhecida, enquanto esse tempo de prisão parece ter feito bem a Robert Wagner, jovial como sempre. Spencer Tracy aos 54 anos de idade interpreta o pai de Richard Widmark, então com 40 anos. “A Lança Partida” não poderia ter final mais indicado que Robert Wagner como filho mestiço, renunciando à vingança contra a morte do pai e quebrando a lança, num gesto tão simbólico quanto piegas para justificar o título do filme. Mais uma vez vale citar “Sangue do meu Sangue”, muito mais feliz inclusive nos títulos nacional e original (House of Strangers).

Spencer Tracy e Katy Jurado
Desapontamento - O canadense Edward Dmytryk ainda tentava fazer esquecer sua fama de delator depois de seu testemunho no Comitê de Atividades Anti-Americanas criado pelo McCarthismo quando filmou “A Lança Partida”. Diretor de excelentes dramas como “Rancor” (1947) e “A Nave da Revolta” (1954), Dmytryk esperaria ainda cinco anos para realizar um respeitado faroeste, o que veio a acontecer em 1959 com “Minha Vontade é Lei” (Warlock). O eficiente Joseph MacDonald foi o responsável pela bonita cinematografia deste western, filme que desaponta e que deixa a impressão que poderia ter sido muito melhor.


Spencer Tracy e o pôster de "A Lança Partida"

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