Uma das frases mais comuns quando se trata de comentar um spaghetti-western é a que diz ‘...este é um faroeste italiano muito bom entre os não dirigidos por Sergio Leone...’. É certo que Leone realizou grandes filmes mas esse tipo de comparação é muitas vezes injusta, como no caso de “O Dia da Desforra”, um extraordinário western dirigido por Sergio Solima e que não merece aquele tipo de comparação e sim ser classificado como um dos grandes faroestes,spaghetti ou não, contando os realizados na terra de John Ford. Solima procurou incutir nos faroestes que dirigiu aspectos político-sociais e neste o resultado foi perfeito com aquela que provavelmente tenha sido a melhor atuação de Lee Van Cleef no cinema. O ator norte-americano interpreta Jonathan Corbett, personagem que sofre uma mudança de comportamento diante das injustiças sociais que observa e que o faz se defrontar contra quem detém o poder e sempre manipula a lei e interesses comerciais. Sergio Solima havia estreado na direção de filmes aos 41 anos, em 1962, dirigindo sucessivamente um drama romântico e três filmes de espionagem, tão em voga após o impacto dos primeiros ‘James Bond’ estrelados por Sean Connery. Lançado em 1967, “O Dia da Desforra” foi o primeiro western de Solima que em seguida realizou o excelente “Quando os Brutos se Defrontam” (Faccia a Faccia), 1967 e ainda “Corre Homem, Corre” (Corri Uomo, Corri), 1968, abandonando então o gênero que começava a dar sinais de esgotamento. Nenhum dos dois faroestes que se seguiram a “O Dia da Desforra” se ombream com este que pode ser considerado um dos pontos altos entre todos os spaghett-westerns.
Baseado em história de Franco Solinas e Fernndo Morandi, “O Dia da Desforra” teve roteiro escrito por Solima em parceria com Sergio Donati, este mais conhecido por sua colaboração com Sergio Leone no excelente “Por uns Dólares a Mais” (Per Qualche Dollari in Più), 1965. em “Era uma Vez no Oeste” (C’Era una Volta Il West), 1968 e em “Quando Explode a Vingança” (Giù a la Testa), 1971. Em “O Dia da Desforra” o respeitado caçador de foras-da-lei Jonathan Corbett (Lee Van Cleef) aceita uma indicação para concorrer ao Senado com o apoio do abastado Brokston (Walter Barnes), desde que, após eleito, trabalhe politicamente pelo projeto de construção de uma ferrovia ligando o Sul dos Estados Unidos ao México através do Texas, projeto de Brokston cujo interesse é ganhar dinheiro em grande escala. Enquanto não transcorre a eleição, Brokston pede a Corbett que capture um mexicano chamado ‘Cuchillo’ (Tomas Milian), argumentando que o mexicano teria estuprado e matado uma garota de 12 anos e que a captura impulsionaria ainda mais sua campanha para o Senado. Corbett é nomeado delegado e sai no encalço de Cuchillo chegando a detê-lo por diversas vezes, porém o mexicano sempre consegue escapar. Por fim Corbett descobre que Cuchillo era acusado injustamente e que Brokston o queria morto porque o mexicano fora testemunha do verdadeiro assassino da garota, seu próprio genro. Corbett volta-se contra Brokston que acaba morto por Corbett, com Cuchillo partindo livre.
Lee Van Cleef e Tomas Milian |
Realizar um filme que contenha ação e desenvolva uma história de cunho político-social mantendo o interesse do espectador não é tarefa das mais simples. Porém “O Dia da Desforra”, do início ao fim prende a atenção com a sucessão de episódios da caçada implacável que Jonathan Corbett executa perseguindo o mexicano Manuel ‘Cuchillo’ Sanchez. Corbett carrega a fama de homem que jamais falha em seu trabalho, isto até ter Cuchillo como alvo de sua busca. O mexicano com sua esperteza engana Corbett por nada menos que cinco vezes sempre que é capturado e cada vez que escapa o faz de forma mais jocosa que empolgante, debochando seguidamente do seu perseguidor. Cuchillo consegue fugir de um acampamento de mexicanos com o próprio cavalo de Corbett quando este ‘captura’ o mexicano que não é Cuchillo, mas sim o barbeiro que está sendo barbeado por Cuchillo. Pouco tempo depois, acreditando ter finalmente capturado Cuchillo, a quem jamais havia visto o rosto, um xerife o desilude ao dizer que o mexicano que ele teve que matar por ter reagido à captura era sim procurado pela Justiça, mas não era Cuchillo Sanchez. A seguir Corbett descobre Cuchillo numa caravana de mórmons, encontra o mexicano ao lado de uma jovem mórmon e mais uma vez o perseguidor é enganado e ainda acaba ferido a bala pela jovem mórmon que acreditava estar salvando Cuchillo de um bandido que queria matá-lo. Mais tarde Cuchillo se safa de um grupo que trabalha num rancho para uma viúva não sem antes ver Corbett dizimar os sete homens do grupo abrindo assim caminho para nova fuga do audaz mexicano que não esquece de agradecer seu perseguidor. A mais engraçada e inteligente escapada de Cuchillo é quando depois de ser mais uma vez capturado e ter as mãos amarradas, ele faz Corbett acreditar que fora picado por uma cobra quando de fato o mexicano força com os pés a ponta de um cacto que atinge as costas de seu perseguidor. Corbett acreditando que a ‘picada’ poderia ser venenosa e mortal liberta as mãos de Cuchillo para que este extraía o veneno. Nesse momento Corbett se distrai, tem suas armas tomadas e vê o mexicano partir rindo e atirando-lhe o espinho com o qual o enganara. Já no México e após uma briga numa taberna, Cuchillo e Corbett são presos pela guarda mexicana e colocados na mesma cela. Cuchillo passa a gritar desesperadamente dizendo que Corbett quer matá-lo e, ao ser passado para e cela vizinha, pega uma faca que sabia estar ali escondida e com ela desmancha a parede de barro da cadeia, retira a grade e desaparece mais uma vez para desgosto de Corbett.
Cuchillo capturado por Corbett, mas por pouco tempo... |
Assim narradas essas sequências, “O Dia da Desforra” pode parecer um western-comédia, mas todas essas situações aumentam a dramaticidade da busca de Corbett e dão ao filme uma crescente tensão. Cada episódio é revestido de uma atmosfera insólita e pouco a pouco Cuchillo torna-se personagem tão central quanto seu perseguidor. Sergio Solima pediu a Tomas Milian que assistisse a “Os Sete Samurais” (Shichinin no Samurai), 1954, porque desejava que sua interpretação fosse próxima da atuação de Toshiro Mifune nesse clássico japonês. Com seus trejeitos e caretas Milian consegue quase roubar o filme de Lee Van Cleef, só não o conseguindo porque diferentemente de quase todas suas participações em filmes, seja na América ou na Europa, Van Cleef não fazia mais que usar seu tipo característico: olhar amedrontador de cascavel, armas espalhadas pelo corpo, a calma traiçoeira manifestada pelo constante cachimbo na boca. Após a primeira sequência, quando Lee Van Cleef é mostrado como se fosse o bounty-hunter de sempre numa apresentação inventivamente coreografada, o Corbett que Lee interpreta demonstra já uma integridade incomum para ele que perpetuou sua criação sergioleonesca como Coronel Douglas Mortimer. O principal vilão do filme, Brokston, mede as palavras ao conversar com Corbett porque a honradez deste o incomoda. À medida que melhor conhece Cuchillo e reflete sobre o verdadeiro interesse de Brokston, para quem o progresso é apenas um detalhe, Corbett sofre uma lenta metamorfose emergindo nele um senso de humanidade típica dos heróis verdadeiros. Antes de “O Dia da Desforra”, somente ajoelhado aos pés de Gregory Peck e implorando para não ser morto em “Estigma da Crueldade” (The Bravados), 1958, Van Cleef teve oportunidade de mostrar que sabia sim atuar. O Cuchillo de Tomas Milian entrou para a galeria das melhores criações dos westerns, fugindo do estereótipo do mexicano covarde e pouco inteligente. Coincidentemente, quase ao mesmo tempo o cinema pode ver a redenção de um idealista mexicano na pele de Jesus Raza (Jack Palance) em “Os Profissionais” (The Professionals), 1966 e de Tomas Milian como Cuchillo. Melhor não lembrar do excessivamente maquiado Emiliano Zapata vivido por Marlon Brando.
Lee Van Cleef em "Estigma da Crueldade" e Jack Palance em "Os Profissionais" |
Sergio Solima com “O Dia da Desforra” pinta um quadro que define muitos tipos de sociedades contemporâneas à produção e que seis décadas depois mantém a atualidade. Brokston representa o poder do dinheiro que compra a lei, que faz acordos que lhe tragam lucros (casa sua filha por interesse) e elege políticos com ele comprometidos. No México o Capitão Segura ao saber que uma milícia formada ilegalmente sairá atrás de Cuchillo toma uma importante decisão, a de ir dormir. Somente religiosos (mórmons e os frades de um monastério) tratam Cuchillo com respeito, o que Cobertt demora um pouco para fazer. Solima perdoa ainda o rico mexicano Don Segura, que fornece homens a Brokston para “virar o mundo de cabeça para baixo, dia e noite, até achar o assassino”, referindo-se à captura de Cuchillo. Ao final Don Segura permite que Corbett e Cuchillo partam em paz. Os comentários denunciando as desigualdades sociais são entremeadas pelos momentos de caçada ao mexicano narrados acima e pelos magníficos confrontos, muitos deles entre faca e revólver. A destreza de Cuchillo com a faca faz lembrar o duelo entre James Coburn e Robert Wilke em “Sete Homens e um Destino” (The Magnificent Seven), 1960. E o responsável por esses momentos em “O Dia da Desforra” não poderia ser outro senão Benito Stefanelli. O final é inesquecível com não um, mas dois duelos: aquele entre Cuchillo e o genro de Brokston Chet Miller (Angel del Pozo), faca contra revólver. E o mais esperado entre Corbett e o arrogante barão Von Schulemberg (Gérard Herter), guarda-costas alemão de Brokston.
Walter Barnes, Gérard Berger e Fernando Sancho |
As grandes atuações de Van Cleef e Milian são secundadas pelo ótimo Walter Barnes e pela presença de Nieves Navarro, a bela dama dos westerns-spaghetti, como a viúva dominadora que escolhe os homens que a interessem. Fernando Sancho é o capitão da policia mexicana a serviço dos poderosos. O restante do elenco é quase um ‘who’s who’ dos homens maus dos westerns-spaghetti com destaque para Benito Stefanelli, Nello Pazzafini, Romano Puppo (dublê de Lee van Cleef), e Antonio Molino Rojo, entre outros. Uma das mais exóticas figuras dos faroestes é o Barão Von Schulemberg vivido pelo alemão Gérard Berger, vencedor de dúzias de duelos graças à sua teoria de olhar os olhos do oponente e entendendo que rapidez no saque vale mais que a pontaria certeira. Ao som de ‘Pour Élise’, de Beethoven, adaptada por Ennio Morricone, Von Schulemberg saca seu revólver mais rápido que Corbett ferindo-o no ombro e este dispara dois tiros certeiros e mortais pondo fim ao petulante e afetado Barão. Ennio Morricone compôs a trilha musical de “O Dia da Desforra”, considerada um de seus melhores trabalhos e a curiosidade é que o título original deste western, “La Resa dei Conti” é também o nome do principal tema musical de “Por uns Dólares a Mais”. O tema de abertura de “O Dia da Desforra” é “Corri Uomo, Corri”, interpretada´pela cantora Christy. “Corri Uomo, Corri” (Run Man, Run) é o título de uma continuação de “O Dia da Desforra”, dirigida por Solima com Tomas Milian repetindo Cuchillo, desta vez sem a presença de Lee Van Cleef. Morricone mais uma vez faz uso do coral I Cantori Moderni, com destaque para Edda del Orso. Este grande western deve ser assistido na sua versão integral de 110 minutos, evitando-se versões menores e 85 e 90 minutos que excluíram sequências inteiras prejudicando a compreensão deste excepcional western de Sergio Solima.
A bela Nieves Navarro; Benito Stefanelli (no alto) e Romano Puppo (abaixo) |
Diferentes pôsteres de "O Dia da Desforra" |