Leone acima com Clint Eastwood e Romano Puppo; abaixo entre Clint, Eli Wallach e uma script-girl. |
O prestígio de Sergio Leone cresceu
proporcionalmente ao sucesso de seus dois primeiros faroestes e era inevitável
que ele iniciasse seu terceiro projeto, justamente o filme que fecharia a serie
que passou a ser conhecida como ‘Trilogia dos Dólares’. O produtor Alberto
Grimaldi colocou mais dinheiro à disposição de Leone, desta vez um milhão e
duzentos mil dólares, dos quais 250 mil foram para convencer Clint Eastwood a
repetir o personagem que lhe deu fama mundial. Sergio Leone e Luciano
Vincenzoni escreveram uma história à qual intitularam “Dois Magníficos
Trapaceiros”. Leone queria imprimir ao seu novo filme um tom mais cômico em
relação aos dois anteriores estrelados por Clint Eastwood. Para isso entregou o
roteiro à dupla Agenore Incrocci e Furio Scarpelli (Age-Scarpelli), exímios
piadistas e especialistas em textos engraçados. Sergio Leone jamais havia se
esquecido da interpretação de Eli Wallach como o bandido ‘Calvera’ em “Sete
Homens e um Destino” (The Magnificent Seven) e a partir dele criou o segundo
personagem da nova história – ‘Tuco’. Havia ainda um terceiro e menos
importante personagem chamado ‘Sentenza’ que foi oferecido a Charles Bronson.
Este, mais uma vez recusou o convite do diretor italiano, desta vez devido a
compromisso assumido com a produção de “Os Doze Condenados”. Foi então requisitado
Lee Van Cleef que conquistara o público europeu com sua criação como ‘Coronel
Douglas Mortimer’ em “Por uns Dólares a Mais” (Per Qualche Dollaro in Più”. A
contratação de Van Cleef implicou em algumas alterações no roteiro e no título
que passou a ser “Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo”. Sabia-se que ideias
extravagantes, delirantes mesmo, brotavam a cada momento da cabeça de Leone,
mas esse título esdrúxulo, que sequer lembrava a palavra dólares, indicava que seu
novo filme (“Três Homens em Conflito” no
Brasil) seria um western incomum.
The Good, The Ugly, The Bad, conforme o título norte-americano. |
Três
homens e um tesouro - Com o país em plena Guerra Civil, um
misterioso caçador de recompensas conhecido por Blondie (Clint Eastwood) une-se
a Tuco (Eli Wallach), um incorrigível patife mexicano procurado por todo Sul do
país. A tática da dupla para burlar a lei e receber recompensas consiste em
Blondie capturar Tuco, entregá-lo à Justiça e livrar o bandido da forca no
último instante, com um tiro certeiro na corda à qual está pendurado. Blondie é
‘O Bom’ e Tuco é ‘O Feio’. Acreditando que a parceria esteja rendendo pouco (dois a
três mil dólares), Blondie trai Tuco afastando-se dele. Após alguns conturbados
encontros a dupla se depara, em pleno deserto, com uma diligência em disparada.
O veículo carrega os corpos inertes de três oficiais de uma Companhia do
Exército Confederado, enquanto um quarto oficial chamado Bill Carson sussurra,
antes de falecer, algumas palavras sobre uma fortuna enterrada em uma cova de
um cemitério. A Tuco o moribundo diz que Sad Hill é o nome do cemitério; a
Blondie o agonizante informa o nome inscrito na lápide da cova. De posse dessas
meias informações, Tuco e Blondie rumam para Sad Hill porém desconhecem que há
uma terceira pessoa de posse da informação sobre o tesouro. Ele é o pistoleiro
de aluguel Sentenza (Lee Van Cleef), apelidado na história como ‘O Mau’. Sentenza vem, paralelamente,
acompanhando as ações da dupla Tuco-Blondie. Dificuldades de toda ordem se
sucedem até chegarem os três a Sad Hill onde travam uma estranha disputa da
qual apenas um deverá sair vencedor. Seria o Bom, o Mau ou o Feio?
Sentenza como sargento de um campo de prisioneiros; abaixo o capitão (Aldo Giuffrè) que creditava as vitórias militares à garrafa. |
Pequenos
e grandes crimes - A história simples de “Três Homens
em Conflito” foi imaginada para possibilitar, de forma episódica, dramática e
bem humorada, um virtuoso exercício cinematográfico de Sergio Leone. Sobressaem
os protagonistas através do uso insistente dos close-ups em contraponto às belíssimas
panorâmicas expondo um trio de homens que mal merecem ser assim chamados tal a
vileza de seus atos. São eles desprovidos de caráter, capazes de trair, roubar
e matar com a mesma frieza com que acendem um toco de charuto ou um cachimbo.
Tuco, esmurra seu irmão, um monge que salva vidas alheias na missão onde vive;
Sentenza extermina pai e filho diante de uma desesperada mãe; Blondie vive de
ludibriar a justiça, matando quando necessário. Leone criou esses três tipos
abjetos para demonstrar que seus crimes são quase que insignificantes diante do
pano de fundo de “Três Homens em Conflito”: o horror da guerra. No caso a
fratricida Guerra Civil norte-americana que banhou de sangue o país, mas o
campo de concentração onde ocorrem espancamentos ao som de melancólica música
tocada por prisioneiros remete a outras guerras. O ébrio Capitão do Exército da
União diz que vencerá a guerra o lado cujo general estiver mais embriagado pois
a bebida estimula o heroísmo. O General Ulysses
S. Grant levou o Norte à vitória jamais abandonando a garrafa que lhe dava a
necessária coragem para vencer.
Lee Van Cleef |
Código
de homens impiedosos - O que guia os três personagens
centrais é a cobiça, tendo ambos, em maior ou menor proporção a brutalidade, a
traição e a dissimulação. Tuco é o personagem central do filme. Seu anedótico
nome completo é Tuco Benedicto Pacífico Juan Maria Rodriguez. A ironia de Leone
se manifesta desde logo com o ‘Pacífico’ impróprio para o bandido que tem uma
invulgar folha corrida de crimes, ainda que nunca deixe de ser sorridente ou de
invocar a Deus a cada morte que assiste ou executa. Um vilão como esse parece
simpático pois há um lapso de humanidade na sua perversidade. Apesar de ser
quem é, Tuco é apenas o ‘Feio’ da história na interminável luta do gato contra o
rato que trava com o ‘Bom’ Blondie. Representativo da maldade maior é
‘Sentenza’, chamado na versão em Inglês de ‘Angel Eyes’, pistoleiro de aluguel que
orienta espancamentos mortais e surra mulheres quando preciso. A presença do
personagem Tuco atenua a ininterrupta série de mortes (ele mesmo autor de
algumas delas) que ocorrem no filme até que este ganhe um aspecto épico com o
episódio da batalha pela Ponte de Branston. E é justamente quando Tuco se torna
menos engraçado, quando numa única batalha a morte, em grande escala, é
permitida. Concluído o episódio resta desvendar o mistério da cova com o
tesouro.
O pragmático Tuco. |
A
inspiração de Leone - Sergio Leone frisou à exaustão sua
admiração pelo western norte-americano, citando sempre os cineastas que mais
estimava, entre eles Budd Boetticher, John Sturges e John Ford. Por mais que
estes respeitados diretores tenham influenciado Leone, não foi neles que o regista romano se inspirou para chegar a
um filme como “Três Homens em Conflito”. Quem mais próximo chegou de algo tão
picaresco como “Três Homens em Conflito” foi Robert Aldrich com “Vera Cruz”,
filme em que se faz presente o aventureirismo burlesco em meio a uma revolução.
Leone comprova que não há limites para sua criatividade pois é capaz de
conceber uma forma renovada e vigorosa de um gênero cujos mestres aparentemente
já haviam dito tudo e de maneira muitas vezes irretocável. O entusiasmo do
cineasta italiano teve origem em sua paixão pelo faroeste, mas a inspiração,
esta nasceu de sua ilimitada capacidade de fecundar ideias brilhantes e o
destemor em concebê-las cinematicamente. A antológica sequência do confronto a
três num cenário repleto de incontáveis sepulturas, arena própria do sublime
desvario de Leone é exemplar em sua criatividade.
Uma das fantásticas tomadas do deserto com o corpo de Blondie em primeiro plano; note-se abaixo, no canto, uma das muitas moscas. |
Poções mágicas de um bruxo romano - “Três Homens em Conflito” é um filme admirável quanto à
direção de arte de Carlo Simi com a macabra atmosfera das cidades destruídas ou
o tosco forte destituído de qualquer fantasioso acabamento. Soma-se a isso o
singular trabalho de maquiagem, ainda que facilitado pelo calor e mormaço
típicos de Almería. E quanto obedientes são as moscas presentes durante as
filmagens de Leone! Estão em toda parte, até mesmo no rosto dos atores que
sequer as percebem! Mas é a alucinada criatividade de Sergio Leone que faz de
cada sequência uma experiência nova para o espectador, isto num gênero tão
antigo quanto o próprio cinema e no qual parece não haver lugar para nada novo.
E se o diretor surpreende com encenações inusitadas de confrontos,
enforcamentos ou espancamentos, suas tomadas de ângulos de câmara preenchendo a
tela larga são ao mesmo tempo ousadas, harmoniosas em composição perfeita.
Tendo custado quase a metade do que foi gasto para se filmar “Sete Homens e um
Destino” (The Magnificent Seven), produzido ao custo de dois milhões e duzentos
mil dólares, pode se considerado até modesto o orçamento de “Três Homens em Conflito” que contém cenas de
batalha envolvendo 1.500 figurantes. Ainda que o custo de produção na Espanha
fosse infinitamente menor, as impressionantes sequências filmadas por Leone em
“Três Homens em Conflito” fazem do diretor um verdadeiro bruxo cujas poções produziriam
outros efeitos nos filmes seguintes.
Eastwood lembrando Peter O'Toole. |
Wallach,
feio, mau e ótimo - Há em “Três Homens em Conflito”
sequências de maior delicadeza, emolduradas pela música de Ennio Morricone, uma
delas verdadeiramente tocante com a expressão do soldado que pesaroso para de
tocar seu violino enquanto Tuco sofre nas mãos do Cabo Wallace (Mario Brega).
Tuco procura com os dedos na boca ensanguentada perceber quantos dentes perdera
e com isso Leone rouba um pouco da singeleza desse momento brilhante de seu
filme. E o mesmo Tuco, e sempre ele, será o responsável pelos pontos altos do
filme assim como pelos poucos excessos, entre eles a caricata sombrinha que usa
para cavalgar ao sol enquanto Blondie desfalece sob a canícula. Mas é de Eli
Wallach a grande interpretação do western de Leone, mesmo porque Eastwood e Van
Cleef interpretam personagens introspectivos e gélidos em seus raciocínios e
atos. Se as sequências da caminhada de Tuco e Blondie pelo deserto fazem
lembrar o épico de David Lean, Clint Eastwood está bastante parecido com o
imortal Lawrence of Araby, de Peter O’Toole. Os muitos coadjuvantes aparecem em
sequências episódicas, destacando-se o sempre excelente Luigi Pistilli e Aldo
Giuffré como o enlouquecido capitão da União. Atenção para a presença da cubana
Chelo Alonso como a mulher que vê o marido ser assassinado por Sentenza.
Antonio Molino Rojo, Aldo Giuffrè, Chelo Alonso e Luigi Pistilli. |
O
langor da triste história - Muito se disse a respeito da
importância da música de Ennio Morricone nos filmes de Sergio Leone, que
deveria dividir a grandiosidade das imagens com o compositor. Morricone compôs
para muitos outros diretores mas parece que reservava o melhor de sua
criatividade quando compunha para Leone e se isso acontecia era porque os
filmes do regista romano eram
especiais. Para “Três Homens em Conflito” o maestro-compositor criou temas para
cada um dos três personagens principais, mas foi aquele feito para ‘Il Buono’
que se tornou o mais representativo, icônico como se costuma dizer. O tema
principal incrivelmente forte marcado pesada e tensamente é um dos mais
perfeitos de toda obra do compositor. A suíte composta para “Três Homens em
Conflito” é memorável merecendo ser ouvida independentemente do filme, com
atenção especial para o tema “A Soldier Story”. Essa langorosa canção poderia ter
dado a tônica ao filme, expressando a desesperança própria de um épico que tem
a guerra como cenário. “The Ectasy of Gold” é outro grande momento musical com
destaque para a maravilhosa voz de Edda Dell’Orso.
A tocante sequência da música encobrindo a violência. |
Criatividade
inesgotável - Lançado em 1966 com três horas de duração na Itália, “Três Homens
em Conflito” sofreu uma série de cortes quando lançado no mercado
internacional, tendo sua metragem reduzida para 162 minutos. Há edições
lançadas em DVD com duração de meros 148 minutos, o que exige atenção do
espectador. Os DVDs remasterizados e em Blu-Ray contém ou a versão integral ou
as cenas excluídas como bônus. Àqueles que colocavam em dúvida a qualidade do
trabalho de Sergio Leone começaram a se render pouco a pouco e a última parte
da ‘Trilogia dos Dólares’ em curto espaço de tempo foi saudada como um dos
grandes westerns do cinema. Filme importantíssimo no contexto histórico do
gênero, “Três Homens em Conflito” surpreende, entusiasma e causa admiração, mas
não chega a emocionar, justamente por predominar o aspecto cômico sobre o
trágico. A lição foi aprendida por Leone e em seu western seguinte, assim como
nos anteriores, restringiu os momentos de comicidade aos atores de participação
sem maior importância. “Três Homens em Conflito” é uma bem-humorada explosão da
inesgotável criatividade de Sergio Leone.