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Elmore Leonard |
“Butch
Cassidy” custou seis milhões de dólares quando foi produzido em 1969 e nada
menos que 400 mil dólares foram gastos apenas com a aquisição dos direitos
sobre a história escrita por William Goldman. Bons roteiros são valiosos e
disputados pelos estúdios porque é quase impossível se fazer um ótimo filme sem
ter um bom roteiro em mãos. E isso vale para todos os gêneros de filmes como os
westerns que sempre contaram com excelentes autores e suas magníficas
histórias. Elmore Leonard, falecido em 2013 aos 87 anos de idade, foi um dos
autores que enriqueceram o gênero com histórias originais da qualidade de
“Resgate de Bandoleiros” (The Tall T), “Galante e Sanguinário” (3:10 to Yuma),
“Quando os Bravos se Encontram” (Valdez is Coming) e especialmente “Hombre”,
escrito em 1961. A Editora Rocco lançou uma série de livros dedicada ao
faroeste, projeto esse que mereceu uma oportuna análise do escritor Fernando
Monteiro com o título 'Westerns Pré-Socráticos'. Também tradutor, Monteiro foi o responsável pela tradução de
“Hombre”, um dos volumes da série editada pela Rocco. WESTERNCINEMANIA reproduz
o texto brilhante de Fernando Monteiro, texto imprescindível aos fãs de
faroestes.
WESTERNS PRÉ-SOCRÁTICOS
Certa
vez, um amigo (leitor de Vico, Joyce e Gadda, entre outros) descobriu, na minha
estante – meio escondidos –, aqueles bons westerns que eu importava dos EUA, em
edições de bolso com toda a pinta de leitura popular, de segunda.
O
meu amigo PhD não ficou menos que chocado. Ele, que chegava a apreciar os
filmes do genial John Ford e do misógino mestre Howard Hawks, não conseguia
entender como a estima do gênero cinematográfico podia se estender aos
“romances do Oeste” (mesmo que alguns deles houvessem gerado obras-primas
cinematográficas). E eu improvisei, na hora, uma explicação para distraí-lo: faroestes (de qualidade) me ajudavam a
entender os filósofos pré-socráticos. Surpreso, meu amigo não entendeu, mas
desistiu de aprofundar a questão.
Alguns
anos mais tarde, quando afinal selecionei Parmênides (Sobre a Natureza) para ler, foi a minha vez de ficar surpreso: as
distinções do sábio de Eléia – mundo aparente, mundo da verdade etc – estavam
na base da tabula rasa de pioneiros, pistoleiros e xerifes
angustiados em meio a um mundo selvagem onde é impossível sonhar com a ordem, a
moral e a lei, sem se questionar sobre o absoluto capaz de nos situar fora da
Desordem. Entre o fogo e a noite, o caos e a pluralidade das coisas, o homem do
Oeste é o “fisicista” que Parmênides tenta recolocar em perspectiva filosófica
para além da materialidade, num deserto físico e moral (a pradaria) onde há que
decidir sobre a liberdade, seus limites, o tipo de sociedade desejável sobre o
nada e outros questionamentos embutidos, em essência, na ação de um gunfighter como Shane, por exemplo,
quando ele “reordena” o rincão de brutos do Wyoming, ao preço da própria
expulsão daquele “paraíso” sem lugar para os heróis perigosamente armados com pistola
e hábitos de individualistas solitários.
Tudo
isso (chocante?) é necessário para dizer que os melhores westerns finalmente
estão chegando ao Brasil. Com intervalo de meses, a Editora Rocco lançou oito,
em duas fornadas – todos assinados por Elmore Leonard –, além do ensaio Publique-se a lenda: a história do western,
do brasileiro A. C. Gomes de Mattos. A coleção se chama "Faroeste" (e
deveria intitular Coleção de Westerns de Leonard),
em comemoração aos cem anos do gênero, no cinema. Para isso, a
editora carioca deu sóbrio tratamento gráfico aos livros bem traduzidos, no
simpático formato 14x21, tudo no lugar, ou quase, se não fosse pela falta,
gritante, de outros autores além do bom Elmore, autor da pequena obra-prima que é Hombre (o número um do
conjunto).
Uma
primeira “coleção” brasileira do gênero teria que incluir títulos como Shane, de Jack Shaefer (“Os Brutos Também Amam”,
de 1953), The Searchers, de Alan Le May (“Rastros
de Ódio”, de 1956), e outras novelas admiráveis, a partir das quais foram
desenvolvidos os roteiros de filmes estimados pela crítica e pelo público. Na
"Faroeste"
é de se esperar que o arco largo dessa rubrica venha a incluir mestres do
calibre de A. B. Guthrie, Charles Portis, Walter Van Tilburg Clark, Robert
Krepps, Will Levington Comfort, Mari Sandoz, Charles Locke, Benjamin Capps,
Elmer Kelton e outros nomes ainda desconhecidos no Brasil.
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Os premiados livros de A.B. Guthrie que viraram filmes. |
Aqui,
os leitores só tiveram acesso a torpes livrinhos de bolso, escritos na Espanha
e traduzidos para editoras que os vendiam em bancas, assinados por “J.
Mallorqui”, “Marcial Lafuente Estefania” e pseudos semelhantes. Ninguém pôde
conhecer, em tradução, a saga escrita por A. B. Guthrie, por exemplo, em dois
volumes – The Way West e The Big Sky –, que Hawks levou para a
tela, e é literatura de primeira ordem, distinguida com o Prêmio Saddleman
(1978). Há outras lacunas, ou exemplos de apatia editorial inexplicável na
área, sem esquecer que o próprio Elmore Leonard, com todo o seu sucesso no
“policial”, só agora se vê retirado do fundo da gaveta (apesar do êxito do
filme homônimo, produzido e dirigido por Martin Ritt, em 1967).
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O pioneiro 'The Virginian' e seu autor, Owen Wister. |
A
lacuna dos bons faroestes, nas estantes brasileiras, tem mais de cem anos, uma
vez que data de 1902 a
publicação da novela inaugural do gênero: The
Virginian, de Owen Wister. Antes, o western fora apenas anunciado naqueles
folhetos e historietas de cowboys que
circularam – como a nossa “literatura de cordel” – de Leste a Oeste, na América
de Búffalo Bill. O livro de Wister começou a vender, aos milhares, tão logo
apareceu como narrativa um tanto ingênua, porém completa e cheia da observação
“documentária” pioneira. Isso atraiu a atenção de Dustin Farnum e outros atores
de teatro que iriam levá-la para os palcos populares, antes do cinema se
interessar pelo romance que viria a pôr, na
trilha aventureira, o também “clássico” Zane Grey, autor de sessenta e três
faroestes escritos a partir de 1904.
Wister
nasceu em Ohio (1872), formou-se em Harward e estudou música em Paris. Advogado
profissional, costumava passar férias no Wyoming e, lá, apaixonou-se pelo mundo
dos vaqueiros, índios e pistoleiros que constitui, literariamente, o
“regionalismo” norte-americano mais autêntico. Depois dele e de Grey, William
McLeod Raine – o terceiro nome entre os “maiorais” da fase ingênua – viria de
Londres (onde nasceu em 1871), bem longe da pradaria, para escrever sobre a
vastidão misteriosa.
O
fundo maniqueísta primitivo e a candidez “matuta” dessas primeiras obras
seguiram exploradas por B. M. Bower (cujo nome verdadeiro era Bertha Sinclair,
a primeira autora do filão), Peter B. Kyne, Clarence Mulford e Frederick Faust,
mais conhecido como Max Brand. Alguma complexidade psicológica, além do
alargamento antropológico daquela visão documental de Wister, só viriam com os
livros de Frederick Glidden (ou Luke Short) e Ernest Haycox, até chegar a idade
da razão, extra-folk, de escritores
maduros, que talvez assimilaram até do cinema uma “cultura western” consciente
de si mesma, como mitologia moderna.
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Autores de histórias de faroestes: Zane Grey, Peter B. Kyne, Max Brand, Clarence Mulford e Ernest Haycox. |
Exatamente
como na tela, a ficção da fronteira só atravessa para os territórios mais
complexos – e ganha estatura – quando passa por mãos, refinadas, de autores
trabalhando num desvio de cento e oitenta graus da “horse opera” típica,
costumeiramente associada a Gene Autry, Roy Rogers e outros. Uma novela densa
como Hombre tem pouco a ver com Destry Rides Again, de Max Brand, ou com
os livros de far-west idealizado do
alemão Karl May e do norueguês Kjell Hallbing.
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Uma das muitas edições de 'Hombre' e a edição da Editora Rocco, com tradução de Fernando Monteiro. |
Hombre figura
entre os 25 melhores westerns de
todos os tempos – na lista da WWA (Western
Writers of America) – e é, sem dúvida, a mais vigorosa das obras do Leonard
capaz de abordar diferenças raciais e culturais que lançam a sua aventura do
Oeste pelos caminhos ásperos até do tema sartreano (“o inferno são os outros”).
True Grit, de Charles Portis, alcança aquele respiro largo do melhor
Mark Twain, sendo o seu humor menos direto e temperado pela visão
retrospectiva; Watch for me on the
mountain, de Forrest Carter foi chamado de “espantoso romance”, por Budd
Schulberg, e The Searchers, de Alan Le May, tornou-se paradigmático como o belo Shane.
Podemos
ir mais longe, e dizer até que a “conquista do Oeste” – curto período de menos
de meio século – ofereceu a escritores, a diretores de cinema (de Anthony Mann
a Fritz Lang), algo como um platô comparável ao fornecido, a Homero, pelas
façanhas de alguns guerreiros brutais, naquelas refregas gregas. Cantando os
seus feitos, o poeta dos heróis assentou o marco épico inicial da nossa
literatura (se houvesse cinema naquela época remota, hoje veríamos Tróia como
uma espécie de Tombstone do Peloponeso). Viajando por lá, nos anos 40, Henry
Miller escreveu, em Colussus of Marussi,
que, a toda hora, esperava ver “índios siouxes, não sabia porquê, saltando acima das pedras
colossais da Micenas arcaica”.
Não
é de espantar: afinal, há “pré-socráticos” na essência da mitologia americana,
talvez a última capaz de ainda nos inspirar para a frente, go to West, no espaço silencioso das últimas fronteiras. No
Pindorama de cancaceiros (armoriais ou não) que somos, este artigo saúda a
coleção de westerns que, certamente, não será lida por Ariano Suassuna...
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O espanhol José Mallorqui e sua série 'Coyote' que fez sucesso no Brasil. |
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Livros de Marcial Lafuente, que aparece na foto à direita. Os livros de
Lafuente vendiam bastante no Brasil e na dedicatória da foto ele escreveu:
"A minha gratidão aos leitores do Brasil". |
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Alguns das centenas de títulos de pequenos livros com histórias de faroeste lançados no Brasil desde os anos 50. |
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Paul Newman e Fernando Monteiro, ator e tradutor de "Hombre". |