30 de maio de 2015

TRÊS HOMENS EM CONFLITO (IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO), LEONE REDEFINE O GÊNERO WESTERN


Leone acima com Clint Eastwood e
Romano Puppo; abaixo entre Clint,
Eli Wallach e uma script-girl.
O prestígio de Sergio Leone cresceu proporcionalmente ao sucesso de seus dois primeiros faroestes e era inevitável que ele iniciasse seu terceiro projeto, justamente o filme que fecharia a serie que passou a ser conhecida como ‘Trilogia dos Dólares’. O produtor Alberto Grimaldi colocou mais dinheiro à disposição de Leone, desta vez um milhão e duzentos mil dólares, dos quais 250 mil foram para convencer Clint Eastwood a repetir o personagem que lhe deu fama mundial. Sergio Leone e Luciano Vincenzoni escreveram uma história à qual intitularam “Dois Magníficos Trapaceiros”. Leone queria imprimir ao seu novo filme um tom mais cômico em relação aos dois anteriores estrelados por Clint Eastwood. Para isso entregou o roteiro à dupla Agenore Incrocci e Furio Scarpelli (Age-Scarpelli), exímios piadistas e especialistas em textos engraçados. Sergio Leone jamais havia se esquecido da interpretação de Eli Wallach como o bandido ‘Calvera’ em “Sete Homens e um Destino” (The Magnificent Seven) e a partir dele criou o segundo personagem da nova história – ‘Tuco’. Havia ainda um terceiro e menos importante personagem chamado ‘Sentenza’ que foi oferecido a Charles Bronson. Este, mais uma vez recusou o convite do diretor italiano, desta vez devido a compromisso assumido com a produção de “Os Doze Condenados”. Foi então requisitado Lee Van Cleef que conquistara o público europeu com sua criação como ‘Coronel Douglas Mortimer’ em “Por uns Dólares a Mais” (Per Qualche Dollaro in Più”. A contratação de Van Cleef implicou em algumas alterações no roteiro e no título que passou a ser “Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo”. Sabia-se que ideias extravagantes, delirantes mesmo, brotavam a cada momento da cabeça de Leone, mas esse título esdrúxulo, que sequer lembrava a palavra dólares, indicava que seu novo filme  (“Três Homens em Conflito” no Brasil) seria um western incomum.



The Good, The Ugly, The Bad, conforme
o título norte-americano.
Três homens e um tesouro - Com o país em plena Guerra Civil, um misterioso caçador de recompensas conhecido por Blondie (Clint Eastwood) une-se a Tuco (Eli Wallach), um incorrigível patife mexicano procurado por todo Sul do país. A tática da dupla para burlar a lei e receber recompensas consiste em Blondie capturar Tuco, entregá-lo à Justiça e livrar o bandido da forca no último instante, com um tiro certeiro na corda à qual está pendurado. Blondie é ‘O Bom’ e Tuco é ‘O Feio’. Acreditando que a parceria esteja rendendo pouco (dois a três mil dólares), Blondie trai Tuco afastando-se dele. Após alguns conturbados encontros a dupla se depara, em pleno deserto, com uma diligência em disparada. O veículo carrega os corpos inertes de três oficiais de uma Companhia do Exército Confederado, enquanto um quarto oficial chamado Bill Carson sussurra, antes de falecer, algumas palavras sobre uma fortuna enterrada em uma cova de um cemitério. A Tuco o moribundo diz que Sad Hill é o nome do cemitério; a Blondie o agonizante informa o nome inscrito na lápide da cova. De posse dessas meias informações, Tuco e Blondie rumam para Sad Hill porém desconhecem que há uma terceira pessoa de posse da informação sobre o tesouro. Ele é o pistoleiro de aluguel Sentenza (Lee Van Cleef), apelidado na história como ‘O Mau’. Sentenza vem, paralelamente, acompanhando as ações da dupla Tuco-Blondie. Dificuldades de toda ordem se sucedem até chegarem os três a Sad Hill onde travam uma estranha disputa da qual apenas um deverá sair vencedor. Seria o Bom, o Mau ou o Feio?

Sentenza como sargento de um campo de
prisioneiros; abaixo o capitão (Aldo Giuffrè)
 que creditava as vitórias militares à garrafa.
Pequenos e grandes crimes - A história simples de “Três Homens em Conflito” foi imaginada para possibilitar, de forma episódica, dramática e bem humorada, um virtuoso exercício cinematográfico de Sergio Leone. Sobressaem os protagonistas através do uso insistente dos close-ups em contraponto às belíssimas panorâmicas expondo um trio de homens que mal merecem ser assim chamados tal a vileza de seus atos. São eles desprovidos de caráter, capazes de trair, roubar e matar com a mesma frieza com que acendem um toco de charuto ou um cachimbo. Tuco, esmurra seu irmão, um monge que salva vidas alheias na missão onde vive; Sentenza extermina pai e filho diante de uma desesperada mãe; Blondie vive de ludibriar a justiça, matando quando necessário. Leone criou esses três tipos abjetos para demonstrar que seus crimes são quase que insignificantes diante do pano de fundo de “Três Homens em Conflito”: o horror da guerra. No caso a fratricida Guerra Civil norte-americana que banhou de sangue o país, mas o campo de concentração onde ocorrem espancamentos ao som de melancólica música tocada por prisioneiros remete a outras guerras. O ébrio Capitão do Exército da União diz que vencerá a guerra o lado cujo general estiver mais embriagado pois a bebida estimula o heroísmo.  O General Ulysses S. Grant levou o Norte à vitória jamais abandonando a garrafa que lhe dava a necessária coragem para vencer.

Lee Van Cleef
Código de homens impiedosos - O que guia os três personagens centrais é a cobiça, tendo ambos, em maior ou menor proporção a brutalidade, a traição e a dissimulação. Tuco é o personagem central do filme. Seu anedótico nome completo é Tuco Benedicto Pacífico Juan Maria Rodriguez. A ironia de Leone se manifesta desde logo com o ‘Pacífico’ impróprio para o bandido que tem uma invulgar folha corrida de crimes, ainda que nunca deixe de ser sorridente ou de invocar a Deus a cada morte que assiste ou executa. Um vilão como esse parece simpático pois há um lapso de humanidade na sua perversidade. Apesar de ser quem é, Tuco é apenas o ‘Feio’ da história na interminável luta do gato contra o rato que trava com o ‘Bom’ Blondie. Representativo da maldade maior é ‘Sentenza’, chamado na versão em Inglês de ‘Angel Eyes’, pistoleiro de aluguel que orienta espancamentos mortais e surra mulheres quando preciso. A presença do personagem Tuco atenua a ininterrupta série de mortes (ele mesmo autor de algumas delas) que ocorrem no filme até que este ganhe um aspecto épico com o episódio da batalha pela Ponte de Branston. E é justamente quando Tuco se torna menos engraçado, quando numa única batalha a morte, em grande escala, é permitida. Concluído o episódio resta desvendar o mistério da cova com o tesouro.

O pragmático Tuco.
A inspiração de Leone - Sergio Leone frisou à exaustão sua admiração pelo western norte-americano, citando sempre os cineastas que mais estimava, entre eles Budd Boetticher, John Sturges e John Ford. Por mais que estes respeitados diretores tenham influenciado Leone, não foi neles que o regista romano se inspirou para chegar a um filme como “Três Homens em Conflito”. Quem mais próximo chegou de algo tão picaresco como “Três Homens em Conflito” foi Robert Aldrich com “Vera Cruz”, filme em que se faz presente o aventureirismo burlesco em meio a uma revolução. Leone comprova que não há limites para sua criatividade pois é capaz de conceber uma forma renovada e vigorosa de um gênero cujos mestres aparentemente já haviam dito tudo e de maneira muitas vezes irretocável. O entusiasmo do cineasta italiano teve origem em sua paixão pelo faroeste, mas a inspiração, esta nasceu de sua ilimitada capacidade de fecundar ideias brilhantes e o destemor em concebê-las cinematicamente. A antológica sequência do confronto a três num cenário repleto de incontáveis sepulturas, arena própria do sublime desvario de Leone é exemplar em sua criatividade.

Uma das fantásticas tomadas do deserto com o
corpo de Blondie em primeiro plano; note-se
abaixo, no canto, uma das muitas moscas.
Poções mágicas de um bruxo romano - “Três Homens em Conflito” é um filme admirável quanto à direção de arte de Carlo Simi com a macabra atmosfera das cidades destruídas ou o tosco forte destituído de qualquer fantasioso acabamento. Soma-se a isso o singular trabalho de maquiagem, ainda que facilitado pelo calor e mormaço típicos de Almería. E quanto obedientes são as moscas presentes durante as filmagens de Leone! Estão em toda parte, até mesmo no rosto dos atores que sequer as percebem! Mas é a alucinada criatividade de Sergio Leone que faz de cada sequência uma experiência nova para o espectador, isto num gênero tão antigo quanto o próprio cinema e no qual parece não haver lugar para nada novo. E se o diretor surpreende com encenações inusitadas de confrontos, enforcamentos ou espancamentos, suas tomadas de ângulos de câmara preenchendo a tela larga são ao mesmo tempo ousadas, harmoniosas em composição perfeita. Tendo custado quase a metade do que foi gasto para se filmar “Sete Homens e um Destino” (The Magnificent Seven), produzido ao custo de dois milhões e duzentos mil dólares, pode se considerado até modesto o orçamento de  “Três Homens em Conflito” que contém cenas de batalha envolvendo 1.500 figurantes. Ainda que o custo de produção na Espanha fosse infinitamente menor, as impressionantes sequências filmadas por Leone em “Três Homens em Conflito” fazem do diretor um verdadeiro bruxo cujas poções produziriam outros efeitos nos filmes seguintes.


Eastwood lembrando Peter O'Toole.
Wallach, feio, mau e ótimo - Há em “Três Homens em Conflito” sequências de maior delicadeza, emolduradas pela música de Ennio Morricone, uma delas verdadeiramente tocante com a expressão do soldado que pesaroso para de tocar seu violino enquanto Tuco sofre nas mãos do Cabo Wallace (Mario Brega). Tuco procura com os dedos na boca ensanguentada perceber quantos dentes perdera e com isso Leone rouba um pouco da singeleza desse momento brilhante de seu filme. E o mesmo Tuco, e sempre ele, será o responsável pelos pontos altos do filme assim como pelos poucos excessos, entre eles a caricata sombrinha que usa para cavalgar ao sol enquanto Blondie desfalece sob a canícula. Mas é de Eli Wallach a grande interpretação do western de Leone, mesmo porque Eastwood e Van Cleef interpretam personagens introspectivos e gélidos em seus raciocínios e atos. Se as sequências da caminhada de Tuco e Blondie pelo deserto fazem lembrar o épico de David Lean, Clint Eastwood está bastante parecido com o imortal Lawrence of Araby, de Peter O’Toole. Os muitos coadjuvantes aparecem em sequências episódicas, destacando-se o sempre excelente Luigi Pistilli e Aldo Giuffré como o enlouquecido capitão da União. Atenção para a presença da cubana Chelo Alonso como a mulher que vê o marido ser assassinado por Sentenza.

Antonio Molino Rojo, Aldo Giuffrè, Chelo Alonso e Luigi Pistilli.

O langor da triste história - Muito se disse a respeito da importância da música de Ennio Morricone nos filmes de Sergio Leone, que deveria dividir a grandiosidade das imagens com o compositor. Morricone compôs para muitos outros diretores mas parece que reservava o melhor de sua criatividade quando compunha para Leone e se isso acontecia era porque os filmes do regista romano eram especiais. Para “Três Homens em Conflito” o maestro-compositor criou temas para cada um dos três personagens principais, mas foi aquele feito para ‘Il Buono’ que se tornou o mais representativo, icônico como se costuma dizer. O tema principal incrivelmente forte marcado pesada e tensamente é um dos mais perfeitos de toda obra do compositor. A suíte composta para “Três Homens em Conflito” é memorável merecendo ser ouvida independentemente do filme, com atenção especial para o tema “A Soldier Story”. Essa langorosa canção poderia ter dado a tônica ao filme, expressando a desesperança própria de um épico que tem a guerra como cenário. “The Ectasy of Gold” é outro grande momento musical com destaque para a maravilhosa voz de Edda Dell’Orso.

A tocante sequência da música encobrindo a violência.
Criatividade inesgotável - Lançado em 1966 com três horas de duração na Itália, “Três Homens em Conflito” sofreu uma série de cortes quando lançado no mercado internacional, tendo sua metragem reduzida para 162 minutos. Há edições lançadas em DVD com duração de meros 148 minutos, o que exige atenção do espectador. Os DVDs remasterizados e em Blu-Ray contém ou a versão integral ou as cenas excluídas como bônus. Àqueles que colocavam em dúvida a qualidade do trabalho de Sergio Leone começaram a se render pouco a pouco e a última parte da ‘Trilogia dos Dólares’ em curto espaço de tempo foi saudada como um dos grandes westerns do cinema. Filme importantíssimo no contexto histórico do gênero, “Três Homens em Conflito” surpreende, entusiasma e causa admiração, mas não chega a emocionar, justamente por predominar o aspecto cômico sobre o trágico. A lição foi aprendida por Leone e em seu western seguinte, assim como nos anteriores, restringiu os momentos de comicidade aos atores de participação sem maior importância. “Três Homens em Conflito” é uma bem-humorada explosão da inesgotável criatividade de Sergio Leone.




25 de maio de 2015

O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA (THE MAN WHO SHOT LIBERTY VALANCE) – DERRADEIRA OBRA-PRIMA DE JOHN FORD


A escritora Dorothy Marie Johnson.
“O Homem que Matou o Facínora” (The Man Who Shot Liberty Valance) é um filme fascinante da fase final da carreira de John Ford e fulgura entre seus melhores westerns. Realizado em 1962, esse filme é mais lembrado pela frase dita ao seu final - “Quando a lenda se torna um fato, imprima-se a lenda” - frase que se tornou célebre mas que não sintetiza a riqueza e a importância da história contada por Ford. Dorothy M. Johnson, entre um livro e outro que escrevia, publicava pequenas histórias ambientadas no Velho Oeste. É dela ‘Um Homem Chamado Cavalo’ que viraria filme e o cinema já havia utilizado ‘The Hanging Tree’, (“A Árvore dos Enforcados”), em 1959. ‘The Man Who Shot Liberty Valance’ chamou a atenção de John Ford, segundo ele afirmou, principalmente pelo casal de imigrantes suecos que mantinha um restaurante, espécie de microcosmo social do Velho Oeste. O próprio Ford e James Warner Bellah desenvolveram a pequena história que resultou num roteiro que contém, possivelmente, o mais rico conteúdo que um western já teve. O veterano Willis Goldbeck, roteirista da série “Dr. Kildare” estrelada por Lew Ayres no final dos anos 30, deu retoques ao script.


A chegada do trem a Shinbone; Hallie (Vera Miles) é
recebida pelo ex-xerife Lynk Appleyard (Andy Aevine).
A verdade ignorada - “O Homem que Matou o Facínora” se inicia com a chegada do Senador Ransom Stoddard (James Stewart) e a esposa Hallie (Vera Miles) à cidadezinha de Shinbone para o funeral de um anônimo morador da cidade. A imprensa local se movimenta com a chegada do eminente político que, 25 anos antes, ficara famoso por ter matado um bandido que aterrorizava a região. Um repórter descobre a razão da vinda do Senador a Shinbone e solicita uma entrevista. Instado pelo repórter e editor do ‘Shinbone Star’ a detalhar o episódio ocorrido que o tornara conhecido, o Senador Stoddard conta em flashback a verdadeira versão. Conta ele que após ser assaltado e agredido quando viajava numa diligência, o ainda jovem advogado Ransom Stoddard é ajudado pelo rancheiro Tom Doniphon (John Wayne) e seu empregado Pompey (Woody Strode). Stoddard passa a trabalhar no ‘Peter Restaurant’, de propriedade dos pais de Hallie e lá reconhece Liberty Valance (Lee Marvin), o fora-da-lei que o assaltou. Stoddard denuncia Valance ao xerife Appleyard (Andy Devine), impotente para enfrentar o bandido. Stoddard decide então que a única forma de combater Liberty Valance é através de um revólver, arma que ele nunca utilizou. No confronto o facínora é morto, não por Stoddard, como todos acreditam, mas por um tiro disparado, de uma viela escura, por Tom Doniphon. Tem lugar uma convenção para eleger dois representantes para a assembleia que solicitará a transformação do Território em Estado da União. Stoddard representa os donos de pequenas propriedades (ranchos e fazendas diminutas) competindo com o representante dos poderosos criadores de gado. Stoddard vence a disputa, inicia uma trajetória política de sucesso até a sua breve volta a Shinbone, um quarto de século depois. A revelação da verdade sobre o homem que matou Liberty Valance não é aceita por ninguém, prevalecendo a lenda para insatisfação do Senador.

O senador e o humilde caixão de Tom Doniphon. Nas fotos Earle Hodgins,
Andy Devine, James Stewart, Vera Miles e Woody Strode.

Liberty Valance assaltando a diligência
que vai para Shinbone.
Lei, ordem e lenda - Ringo Kid, Wyatt Earp e mesmo Ethan Edwards são personagens de westerns de John Ford com uma característica semelhante à de Tom Doniphon: a dureza dos modos e a determinação de suas atitudes. Homens assim foram necessários num certo momento para que não prevalecessem impunemente a selvageria imposta pelos que só conheciam a linguagem das armas de fogo. No entanto não foram homens como esses que, de fato, levaram a lei e a ordem às cidades e territórios, civilizando-os, e sim tipos como Ransom Stoddard com seus livros, conhecimento de leis e integridade moral. Se John Ford ajudou com seus filmes a criar a mitologia do Velho Oeste com o destemor de homens como Wyatt Earp, o mesmo Ford demonstrou com “O Homem que Matou o Facínora” o quanto havia de irrealidade na criação de heróis. Involuntariamente este filme é o marco que divide o gênero pois contrariando a frase do editor do ‘Shinbone Star’, a partir de então e cada vez mais, lendas passaram a ser  revistas criticamente. E mais que todos a mítica que pairou sobre a histórica figura de Wyatt Earp. 

O ameaçador Liberty Valance durante
a escolha do representante de Shinbone.
Muito além de um filme político - Segundo Richard Brody, crítico da revista ‘The New Yorker’, “O Homem que Matou o Facínora” é o mais importante entre todos os filmes políticos do cinema norte-americano. E a rigor esse western de Ford não é um filme essencialmente político, mas sim traça um panorama perfeito de um tempo e lugar onde a política se fez naturalmente necessária e presente. Todo grande filme contém inúmeras sequências primorosas, porém “O Homem que Matou o Facínora” é quase totalmente composto de sequências notáveis, entre elas as duas que falam de eleições. Inicialmente, dentro de um saloon em Shinbone, a escolha dos dois representantes para a assembleia territorial. É quando Liberty Valance tenta se impor pela virulência como candidato, sendo derrotado por Ransom Stoddard e pelo jornalista Dutton Peabody (Edmond O’Brien). A segunda sequência se passa em Capitol City, quando deve ser eleito o candidato para representar o Estado no Congresso, em Washington. Ambas magistralmente encenadas combinando dramaticidade, comicidade, a imprescindível demagogia e o estratégico marketing político. Essas duas sequências não tornam o western de Ford um filme político pois ele é muito mais que isso em sua extensão e abrangência, nunca deixando de ser um faroeste.

Em Capitol City o marketing político e os discursos;
 abaixo vê-se Edmond O'Brien e Ken Murray em destaque.

Hallie e Ransom Stoddard
Temas e subtemas - “O Homem que Matou o Facínora” transcorre sem que nenhuma cena ou frase sejam dispensáveis em 122 que são assistidos sem um único segundo de menor interesse por parte do espectador. Ford discute a necessidade da educação com o comovente constrangimento de Hallie ao dizer a Rance (Stoddard) que não foi alfabetizada; a pluralidade de pessoas de origens diversas que aprendem as primeiras letras com o advogado transformado em professor numa sala improvisada; a liberdade de imprensa submetida à pressão da violência, tantas vezes vista em filmes de gêneros diversos, mas aqui encenada impecavelmente e com a nauseante ferocidade de Liberty Valance e seus dois capangas; o romance se faz presente em forma de enternecedor triângulo amoroso com o drama de Tom Doniphon e a indecisão de Hallie que ama igualmente Tom e Rance; a diferença de classe social e o racismo se impõem tanto nos modos como Tom Doniphon trata seu empregado como na forma como o mesmo Doniphon abomina as proibições que cerceiam o direito de Pompey entrar nos recintos onde ocorrem as eleições; a incontida alegria de Nora (Jeanette Nolan) ao ver seu marido se vestir e sair para votar enquanto ela, mulher discriminada sem o direito de votar, permanece no trabalho; em meio a tantos momentos de admirável cinema, transcorre o mistério da morte do facínora atribuída ao fraco e abatido Rance Stoddard, patético com o avental de lavador de pratos enfrentando o debochado e brutal Liberty Valance.

Dutton Peabody (Edmond O'Brien), o editor do 'Shinbone Star' com Rance Stoddard;
no centro o jornal destruído e o editor agredido; Rance Stoddard pedindo
a Hallie para que ela leia o livro e a constrangida moça se revela analfabeta.

Liberty Valance
Encarnação da maldade - Filmado em preto e branco com cenários proposital e inacreditavelmente pobres, “O Homem que Matou o Facínora” é um filme-síntese no qual Shinbone é a mais representativa alegoria da formação do Oeste norte-americano estruturado, é certo, com a coragem e a pontaria certeira, mas muito mais com a força das palavras, das leis e do voto. A galeria de personagens criada por John Ford, com tipos celebrados em tantos outros filmes, ganha sua forma definitiva com o médico e o jornalista beberrões, o xerife tão covarde quanto fanfarrão, o casal de imigrantes e o fiel empregado negro. Some-se a esses personagens a figura demagoga do cabo eleitoral interpretado por John Carradine que somente Ford poderia criar sem se tornar uma caricatura. Os westerns de John Ford não são lembrados por vilões marcantes, exceção feita ao ‘Old Man Clanton’ de “Paixão dos Fortes” (My Darling Clementine) e ao ‘Uncle Shiloh Clegg’ de “Caravana de Bravos” (Wagonmaster). Liberty Valance, mesmo sem que sejam mostrados pela câmara os golpes por ele desferidos com o cabo de seu chicote, é o mais animalesco de todos os bandidos vistos em um western. Supremo malfeitor cinematográfico, sádico, cruel, covarde e morto em antológica sequência.

Rance Stoddard agachado pegando o bife no chão para evitar o confronto entre
Valance e Tom Doniphon;
Valance entre Reese (Lee Van Cleef) e Floyd (Strother Martin).

John Wayne como Tom Doniphon.
John Wayne em primeiríssimo segundo plano - Assim como Ford teve que aceitar rodar “O Homem que Matou o Facínora” em preto e branco (segundo afirmação do cinegrafista William Clothier), a Paramount impôs também a presença de John Wayne e por consequência a de James Stewart, contrariando o diretor. Ambos maduros demais para interpretar personagens 30 anos mais jovens que eles. Wayne estava com 54 anos de idade e Stewart com 53. Essa gritante e indisfarçável inconsequência que poderia comprometer todo o filme, longe de deixar de ser notada, termina por ser aceita pelas excelentes interpretações dos veteranos atores. Nenhuma novidade em Stewart ser perfeito como um personagem agoniado, mas Wayne é que confirma ser magnífico como o grosseiro e ao mesmo tempo torturado e pungente cowboy que perde o amor de sua vida e se resigna a manter um segredo que poderia alterar o rumo de seu destino. Grande tolice John Wayne ter afirmado que seu personagem era secundário e sem melhores cenas. Tom Doniphon é um dos inesquecíveis e mais comoventes personagens de sua carreira.

Os 'suecos' Nora (Jeanette Nolan) e Peter (John
Qualen); abaixo John Carradine.
Galeria de tipos característicos - Grandes elencos foram reunidos em filmes como por “A Conquista do Oeste” (How the West Was Won), por exemplo. Porém um elenco recheado de astros não é garantia de grandes atuações. “O Homem que Matou o Facínora” é memorável na sua galeria de tipos característicos como John Qualen e Jeanette Nolan (o casal de suecos), Ken Murray (o médico), John Carradine, Denver Pyle e Carleton Young, que claramente entenderam o que Ford pretendia de cada um deles. Lee Van Cleef, ainda distante da fama que conquistaria na Europa, tem uma atuação discreta, ao contrário de Strother Martin cujo sadismo e perversidade brilham em seu olhar e riso. Woody Strode impõe dignidade com sua forte presença física e Edmond O’Brien, magistral como o jornalista beberrão e intransigente defensor da imprensa livre, completa o elenco de um filme ‘roubado’ pela atuação de Lee Marvin. Difícil entender O’Brien ter recebido um Oscar por sua atuação em “A Condessa Descalça” e Marvin (posteriormente) receber o mesmo prêmio como o pistoleiro bêbado de “Cat Ballou”, ambos ignorados pela Academia por seus brilhantes trabalhos neste western de John Ford. Nem tudo, no entanto, foi perfeito em “O Homem que Matou o Facínora” e como exemplo lembra-se a troca de camisa de Tom Doniphon que passa de uma cor escura para outra mais clara, voltando em seguida a escura entre as cenas em que o personagem chega ao seu rancho. Falha imperdoável de continuidade. E entre os deliciosos tipos criados por Ford, aquele infantilizado interpretado por O.Z. Whitehead beira o ridículo, com seu pirulito na boca. As sequências do assalto noturno à diligência sequer disfarçam terem sido filmadas em estúdio com cenários de papelão, empobrecendo um pouco a ação, superada apenas pela extrema brutalidade de Lee Marvin. Criam ainda esses cenários a impressão claustrofóbica quando se assiste a “O Homem que Matou o Facínora”, impressão que não é gratuita, uma vez que o filme foi praticamente todo rodado em estúdio.

Ted Mapes, Denver Pyle e Andy Devine; Vera Miles e Woody Strode.

John Ford e John Wayne, parceiros de
grandes westerns.
Triste obra-prima - “O Homem que Matou o Facínora” custou três milhões e duzentos mil dólares, rendendo nas bilheterias norte-americanas oito milhões de dólares. Nos cartazes de lançamento do filme o nome de James Stewart aparece antes do nome de John Wayne, porém nos créditos de abertura do filme é o nome de John Wayne que precede o de Stewart. Foi encomendada uma canção-tema à dupla de compositores Burt Bacharach e Hal David, canção que teve título homônimo ao do filme e foi interpretada por Gene Pitney. Consta que John Ford vetou a canção por considerá-la moderna demais e a gravação não foi usada no filme, cuja trilha musical é de autoria de Cyril J. Mockridge. Nas cenas românticas Ford usou o tema musical criado por Alfred Newman para “A Mocidade de Lincoln”, filme de Ford de 1939. O responsável pela excelente fotografia em preto e branco foi de William H. Clothier e o sombrio das imagens e a simplicidade dos cenários dão a “O Homem que Matou o Facínora” um tom de filme B. A exemplo de “Rastros de Ódio”, o tempo se encarregou de mostrar que um desencantado John Ford havia realizado outro western primoroso, sua derradeira e mais triste obra-prima.


John Wayne com camisas diferentes em sequências contínuas.

Difícil imaginar "O Homem que Matou o Facínora" em cores.

Pôsteres norte-americano, italiano e francês; cartaz publicado em jornal
quando do lançamento do filme em São Paulo, onde permaneceu por
três semanas nos cinemas lançadores.

22 de maio de 2015

JOHN WAYNE SOFRENDO NAS MÃOS DO IRASCÍVEL, DESUMANO E RANCOROSO JOHN FORD


John Wayne em "Marcha de Heróis".
Uma dúvida jamais inteiramente dirimida é qual teria sido a razão de “O Homem que Matou o Facínora” (The Man Who Shot Liberty Valance” não ter sido filmado em cores. Afirmou-se que o próprio John Ford teria optado pelo preto e branco para dar ao filme a necessária ‘atmosfera sombria’. Muito mais provável é a tese da economia imposta pela Paramount. Ford havia rodado três westerns em três anos – “Marcha de Heróis” (The Horse Soldiers), em 1959; “Audazes e Malditos” (Sergeant Rutledge), em 1960; “Terra Bruta” (Two Rode Together), em 1961 – e somente “Marcha de Heróis” foi razoavelmente bem nas bilheterias, longe de arrastar multidões aos cinemas. John Ford havia lido e gostado da história “The Man Who Shot Liberty Valance”, de autoria de Dorothy M. Johnson e adquiriu os direitos de filmagem. Ford trabalhou pessoalmente no roteiro em companhia do amigo James Warner Bellah e apresentou o projeto à Paramount. O estúdio vinha de mudanças em sua direção com a saída de seu fundador Adolph Zukor e considerou que desde “Rastros de Ódio” (The Searchers), western de 1956, John Ford não obtinha real sucesso nas bilheterias, além do que Ford havia completado 67 anos de idade. E a direção da Paramount colocou as cartas na mesa.

O elenco central de "O Homem que Matou o
Facínora": Marvin, Wayne e Stewart.
Ford e Wayne estremecidos - John Ford queria dois atores jovens para interpretar o cowboy Tom Doniphon e o advogado Ransom Stoddard. Sabedor da amizade entre Ford e John Wayne, o estúdio anunciou como condição ‘sine qua non’ a presença de John Wayne em um dos papéis principais, espécie de garantia de bilheteria. E o Duke cobrava módicos 750 mil dólares por filme, os quais fazia um atrás do outro para se recompor da situação de quase falência em que ficou após produzir “O Álamo” (The Alamo). Ford e John Wayne andavam um tanto estremecidos pois o diretor não havia gostado nada da negativa do Duke de haver ele, Ford, dirigido algumas sequências de “O Álamo”. Wayne deixou que se espalhasse a história que ele dera uma segunda unidade para Ford se divertir filmando sequências não aproveitadas. Além disso havia ainda uma ponta de ciúmes de John Ford diante do status que John Wayne atingira como ator, enquanto Ford amargava uma indisfarçável decadência artística. A presença de John Wayne no papel do jovem cowboy implicava em ter um ator de idade e importância próximas no elenco como rival na disputa pelo amor da mocinha Hallie. James Stewart foi o nome considerado e aprovado, mesmo Jimmy cobrando alto pela participação. O orçamento bateu em três milhões e duzentos mil dólares e o estúdio disse a Ford que entraria apenas com a metade, ficando para o diretor a tarefa de levantar os restantes um milhão e seiscentos mil dólares. Ford conseguiu o dinheiro através de empréstimos bancários e quando acreditou que o filme seria iniciado, a Paramount pediu a ele para aguardar a aprovação final. Passaram-se quatro meses até que finalmente foi dado o sinal verde pelo estúdio, avisando ao diretor que, para não estourar o orçamento, o filme seria rodado em preto e branco. Outra demonstração que a reputação do diretor não era mais a mesma.

John Wayne na guerra, só no cinema, aqui ao lado
de John Ford; abaixo Lee Van Cleef, Lee Marvin
e James Stewart, que lutaram para valer.
Quem não foi à guerra? - O roteiro final, que contou com colaboração de Willis Goldbeck, teria pouquíssimas externas, sendo o filme quase todo rodado em sets na Paramount, o que veio a calhar pois àquela altura Ford queria fazer um filme que em nada lembrasse os cenários majestosos do Monument Valley. Para o primeiro dia de filmagens o normalmente mal humorado John Ford chegou mais irritado que nunca. Irritado talvez nem fosse a palavra certa pois Ford não conseguia  esconder um verdadeiro rancor contra algo ou alguém que ninguém sabia ao certo o que era ou quem era. Desconfiava-se da questão de “O Álamo” e com o passar dos dias, foi ficando cada vez mais nítido que a vítima principal e mais constante do diretor era mesmo John Wayne. Ford não perdia uma única oportunidade para alfinetar Wayne, lembrando-o quase que diariamente que, ao contrário dele próprio (Ford) e de James Stewart, Woody Strode, Lee Marvin e Lee Van Cleef, o Duke não havia lutado pelo país durante a II Guerra Mundial. E perversamente dizia que John Wayne ficara no país ganhando dinheiro enquanto os outros lutavam por ele e sua família.

Woody Strode quando era profissional de
futebol americano.
Woody Strode contra John Wayne - Certo dia, com ilimitada maldade, John Ford lembrou a John Wayne que Woody Strode havia sido um profissional do American Football, enquanto Wayne nunca passara de um mero e desconhecido amador naquele esporte. Ao invés de responder às maledicências de Ford, John Wayne descontou em Woody Strode, na sequência em que Wayne conduz uma charrete com Strode atrás dele. Vendo que Wayne imprimia excessiva velocidade à parelha de cavalos, perdendo uma das rédeas, o ator negro tentou ajudar Wayne que o empurrou com violência. Quando a charrete parou Woody Strode foi para cima de John Wayne com a nítida intenção de agredi-lo. Ambos eram praticamente da mesma altura, mas Strode era sete anos mais jovem e aos 47 anos de idade estava em invejável forma física, diferentemente de John Wayne que começava a sentir os primeiros sintomas da doença que três anos depois o levaria à retirada de um pulmão. E foi justamente John Ford quem interferiu pedindo para que os atores se acalmassem, suspendendo as filmagens naquele dia. Certamente, em seu íntimo, Ford quisesse mesmo ver Strode dar uns sopapos em John Wayne, o que implicaria em atrasos na produção do filme.

Woody Strode e John Wayne em cena de "O Homem que Matou o Facínora".

John Ford e James Stewart, num intervalo
das filmagens de "Terra Bruta".
Insinuação racista - Ainda que John Wayne fosse o alvo preferido do iracundo diretor, a crueldade de Ford atingia a quase todos os intérpretes. James Stewart teve também seu dia de vítima de Ford quando este perguntou a Jimmy o que ele achava da roupa de Woody Strode no filme, uma espécie de jardineira, traje comum nas zonas rurais norte-americanas. Sem nenhuma maldade Stewart disse que Strode lembrava ‘Uncle Remus’, um personagem fictício da literatura que narrava contos folclóricos afro-americanos. Ford então mandou chamar a todos que se encontravam no set e diante de mais de 30 pessoas disse: “James Stewart não gostou do traje de ‘Pompey’ (personagem interpretado por Strode) e parece que não gosta de Uncle Remus também”. Ninguém riu, ninguém fez comentários pois todos sabiam que James Stewart seria incapaz de magoar alguém, ainda mais com possível conteúdo racista. O próprio Woody Strode confessou anos mais tarde, depois do falecimento de John Ford, que o diretor era insuportável e que nunca apreciou suas idiossincrasias.

Lee Marvin
O respeito por Lee Marvin - Quem escapou ileso da sanha de John Ford foi Lee Marvin. Indicado por John Wayne para interpretar ‘Liberty Valance’, Wayne disse a Lee que depois de ser dirigido por Ford sua carreira iria mudar, assim como aconteceu com sua própria carreira após “No Tempo das Diligências” (Stagecoach). Quando Ford viu Marvin pela primeira vez no set disse ao ator que ele havia feito um bom trabalho em “Os Comancheiros”. Lee respondeu que todas as sequências em que participou naquele filme foram dirigidas por John Wayne (o diretor Michael Curtiz esteve doente na maior parte das filmagens de “Os Comancheiros”). O egomaníaco Ford respondeu a Marvin: “Neste filme John Wayne é só mais um ator pois o diretor sou eu”. John Ford admirava a personalidade e a rude franqueza de Lee Marvin, além de ficar impressionado com o talento do ator que ainda não havia dirigido. Além disso Lee Marvin havia recebido a mais alta comenda da Casa Branca – a medalha Purple Heart - por sua participação na II Guerra Mundial, além da Presidential Unit Citation, a Asiatic-Pacific Campaign Medal e a World War II Victory Medal, o que o fazia ainda mais respeitado por Ford. Numa manhã, quando todos aguardavam por John Ford, o respeitoso silêncio tomou conta do set na chegada do diretor. Foi aí que Lee Marvin com dois dedos na boca emitiu um longo e curioso assovio. Todos temeram pela iminente tempestade ao ver que Ford parou, virou o semblante fechado em direção a Marvin e... sorriu. Ford que se orgulhava da patente de Almirante que recebera pelos serviços prestados à U.S. Navy durante a guerra, percebeu que o sibiloso silvo imitava o apito de um navio. Nada alegrava mais John Ford que falar dos anos em que serviu à pátria em alto mar lutando contra o Eixo.

Lee Marvin e John Wayne em cena de "Os Comancheiros".

John Wayne no tempo dos westerns B.
Salvo da ‘Rua da Pobreza’ – Com o desenvolvimento das filmagens, John Wayne foi ficando cada vez mais aborrecido, não só com o tratamento que Ford lhe dispensava, mas também com seu personagem, segundo ele irrelevante na história. As melhores cenas do filme ficavam para James Stewart, Lee Marvin e até Edmond O’Brien, enquanto ele, o Big Duke, andava para lá e para cá como mero coadjuvante. Foi então que Wayne resolveu dar um palpite em uma cena, provocando um dos mais ferozes ataques do tirânico diretor. Ford se levantou de sua cadeira, tirou o charuto da boca e disse em tom de voz que poderia ser ouvido a dezenas de metros de distância: “Você agora vai querer dirigir o meu filme? Você se esqueceu que fui eu que o tirei daqueles filmes que você fazia um por semana?” Ford estava se referindo aos quase dez anos em que John Wayne atuou nos desprestigiados westerns B produzidos na Poverty Row (região onde se concentravam os pequenos estúdios, apelidada de ‘Rua da Pobreza’). Mais uma vez o impiedoso Ford não controlava a ira por seu pupilo ter produzido, dirigido e atuado na superprodução “O Álamo”. Contraditoriamente, quando solicitado por jornalistas a dizer o que havia achado de “O Álamo”, John Ford respondeu que aquele era o melhor filme norte-americano de todo os tempos.

John Ford nos sets de "O Álamo", à esquerda com John Wayne;
à direita ao lado de Laurence Harvey.

Lee Van Cleef
Lee Van Cleef vence John Wayne - Lee Van Cleef contou que não entendia como alguém podia se comportar como um verdadeiro bastardo como fazia John Ford em relação a John Wayne. Van Cleef tinha boa lembrança de John Wayne, com quem trabalhara em “Sangue de Bárbaros”, anos antes. Lee relatou uma sequência em que seu personagem sacava um revólver e antes de disparar John Wayne retirava a arma da mão de Van Cleef e o atingia na cabeça. Enquanto ensaiavam, Van Cleef disse ao Duke que se fosse pra valer jamais conseguiria fazer isso pois ele era rapidíssimo no saque. Ao ver a cara de incredulidade de John Wayne, Van Cleef o desafiou a bater palmas no mesmo momento em que ele sacava. Lee Marvin foi chamado para contar até três e Wayne abriu os braços cerca de 60 centímetros. Lee Marvin contou one, two, three, o Duke tentou bater palmas mas não conseguiu pois Van Cleef havia sacado rápido como um raio e provado que era mesmo ligeiro no gatilho colocando o revólver entre as mãos do Duke. Sempre que se referia a John Ford, Lee Van Cleef iniciava dizendo: “That son of a bitch...”

A sequência em que John Wayne toma o revólver de Lee Van Cleef.

Ambiente ruim, filme ótimo - Ao contrário do que possa parecer, o ambiente entre todos (exceto Ford) durante as filmagens de “O Homem que Matou o Facínora” era excelente, de muita alegria e descontração, algo comum quando Howard Hawks dirigia um filme. O bom ambiente entre colegas de trabalho parece ser fundamental para que um filme dê certo, desde que o diretor não se chame John Ford. Sempre irritado e humilhando a quem estivesse por perto, o irascível diretor conseguiu a proeza de realizar um western excepcional mesmo maltratando a todos. Mais que seus acessos de raiva, mais que seu rancor, mais que seu comportamento quase desumano, a magia de John Ford prevaleceu e “O Homem que Matou o Facínora” se transformou em sua última obra-prima, juntando-se às tantas que pontilharam sua longa carreira.

Os amigos John Wayne e John Ford.



21 de maio de 2015

CLIP DE "O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA" (The Man who Shot Liberty Valance)



Quando foi lançado “O Homem que Matou o Facínora”, em 1962, o cantor Gene Pitney gravou uma canção com o mesmo título do filme, música que narrava a história da morte do bandido que seria imortalizado no cinema. A gravação de Pitney, que foi bastante executada chegando ao hit parade, emoldura este clip com imagens da obra-prima de John Ford.



Composta por Burt Bacharach e com letra de Hal David, ‘(The Man Who Shot) Liberty Valance’ foi lançada pelo selo Musicor e permaneceu por seis semanas entre os 20 discos mais vendidos, segundo a revista Billboard. A melhor colocação alcançada por essa canção foi o quarto lugar, atrás de “I Can’t Stop Loving You”, com Ray Charles (1.º), “Stranger on the Shore”, com Acker Bilk (2.º) e “It Keeps Right on A-Hurtin’” com Johnny Tillotson (3.º). Posteriormente ‘(The Man Who Shot) Liberty Valance’ foi gravada por Jimmy Rodgers e James Taylor. Numa enquete entre os membros do Western Writers of America, essa música de Bacharach-David foi votada como uma das 100 melhores canções westerns de todos os tempos. Uma curiosidade é que o título da composição vinha com as palavras 'O homem que matou' entre parênteses, assim como havia ocorrido com a premiada 'High Noon (Do not forsake me'), de "Matar ou Morrer" (High Noon), em 1952.

Abaixo a letra de ‘(The Man Who Shot) Liberty Valance’

When Liberty Valance rode to town, the womenfolk would hide, they’d hide...
When Liberty valance walked around, the men would step aside
‘Cause the point of a gun was the only law that Liberty understood
When it came to shootin’ straight and fast, he was mighty good.

From out the East a stranger came, a law book in his hand, a man...
The kind of a man the West would need to tame a troubled land
‘Cause the point of a gun was the only law that Liberty understood
When it came to shootin’ straight and fast, he was mighty good.

Many a man would face his gun, and many a man would fall
The man who shot Liberty Valance
He shot Liberty Valance
He was the bravest of them all

The love of a girl can make a man stay on when he should go, stay on...
Just tryin’ to build a peaceful life where love is free to grow 
But the point of a gun was the only law that Liberty understood
When the final showdown came at last, a law book was no good.

Alone and afraid, she prayed that he’d return that fateful night, aw, that night...
When nothin’ she said could keep her man from goin’ out to fight
From the moment a girl gets to be full-grown, the very first thing she learns
When two men go out to face each other, only one returns

Everyone heard two shots ring out, one shot made Liberty fall
The man who shot Liberty Valance
He shot Liberty Valance
He was the bravest of them all

The man who shot Liberty Valance
He shot Liberty Valance

He was the bravest of them all


Capa do compacto-duplo contendo '(The Man who Shot) Liberty Valance'.
Note-se que o título saiu errado na palavra Valence.