22 de maio de 2015

JOHN WAYNE SOFRENDO NAS MÃOS DO IRASCÍVEL, DESUMANO E RANCOROSO JOHN FORD


John Wayne em "Marcha de Heróis".
Uma dúvida jamais inteiramente dirimida é qual teria sido a razão de “O Homem que Matou o Facínora” (The Man Who Shot Liberty Valance” não ter sido filmado em cores. Afirmou-se que o próprio John Ford teria optado pelo preto e branco para dar ao filme a necessária ‘atmosfera sombria’. Muito mais provável é a tese da economia imposta pela Paramount. Ford havia rodado três westerns em três anos – “Marcha de Heróis” (The Horse Soldiers), em 1959; “Audazes e Malditos” (Sergeant Rutledge), em 1960; “Terra Bruta” (Two Rode Together), em 1961 – e somente “Marcha de Heróis” foi razoavelmente bem nas bilheterias, longe de arrastar multidões aos cinemas. John Ford havia lido e gostado da história “The Man Who Shot Liberty Valance”, de autoria de Dorothy M. Johnson e adquiriu os direitos de filmagem. Ford trabalhou pessoalmente no roteiro em companhia do amigo James Warner Bellah e apresentou o projeto à Paramount. O estúdio vinha de mudanças em sua direção com a saída de seu fundador Adolph Zukor e considerou que desde “Rastros de Ódio” (The Searchers), western de 1956, John Ford não obtinha real sucesso nas bilheterias, além do que Ford havia completado 67 anos de idade. E a direção da Paramount colocou as cartas na mesa.

O elenco central de "O Homem que Matou o
Facínora": Marvin, Wayne e Stewart.
Ford e Wayne estremecidos - John Ford queria dois atores jovens para interpretar o cowboy Tom Doniphon e o advogado Ransom Stoddard. Sabedor da amizade entre Ford e John Wayne, o estúdio anunciou como condição ‘sine qua non’ a presença de John Wayne em um dos papéis principais, espécie de garantia de bilheteria. E o Duke cobrava módicos 750 mil dólares por filme, os quais fazia um atrás do outro para se recompor da situação de quase falência em que ficou após produzir “O Álamo” (The Alamo). Ford e John Wayne andavam um tanto estremecidos pois o diretor não havia gostado nada da negativa do Duke de haver ele, Ford, dirigido algumas sequências de “O Álamo”. Wayne deixou que se espalhasse a história que ele dera uma segunda unidade para Ford se divertir filmando sequências não aproveitadas. Além disso havia ainda uma ponta de ciúmes de John Ford diante do status que John Wayne atingira como ator, enquanto Ford amargava uma indisfarçável decadência artística. A presença de John Wayne no papel do jovem cowboy implicava em ter um ator de idade e importância próximas no elenco como rival na disputa pelo amor da mocinha Hallie. James Stewart foi o nome considerado e aprovado, mesmo Jimmy cobrando alto pela participação. O orçamento bateu em três milhões e duzentos mil dólares e o estúdio disse a Ford que entraria apenas com a metade, ficando para o diretor a tarefa de levantar os restantes um milhão e seiscentos mil dólares. Ford conseguiu o dinheiro através de empréstimos bancários e quando acreditou que o filme seria iniciado, a Paramount pediu a ele para aguardar a aprovação final. Passaram-se quatro meses até que finalmente foi dado o sinal verde pelo estúdio, avisando ao diretor que, para não estourar o orçamento, o filme seria rodado em preto e branco. Outra demonstração que a reputação do diretor não era mais a mesma.

John Wayne na guerra, só no cinema, aqui ao lado
de John Ford; abaixo Lee Van Cleef, Lee Marvin
e James Stewart, que lutaram para valer.
Quem não foi à guerra? - O roteiro final, que contou com colaboração de Willis Goldbeck, teria pouquíssimas externas, sendo o filme quase todo rodado em sets na Paramount, o que veio a calhar pois àquela altura Ford queria fazer um filme que em nada lembrasse os cenários majestosos do Monument Valley. Para o primeiro dia de filmagens o normalmente mal humorado John Ford chegou mais irritado que nunca. Irritado talvez nem fosse a palavra certa pois Ford não conseguia  esconder um verdadeiro rancor contra algo ou alguém que ninguém sabia ao certo o que era ou quem era. Desconfiava-se da questão de “O Álamo” e com o passar dos dias, foi ficando cada vez mais nítido que a vítima principal e mais constante do diretor era mesmo John Wayne. Ford não perdia uma única oportunidade para alfinetar Wayne, lembrando-o quase que diariamente que, ao contrário dele próprio (Ford) e de James Stewart, Woody Strode, Lee Marvin e Lee Van Cleef, o Duke não havia lutado pelo país durante a II Guerra Mundial. E perversamente dizia que John Wayne ficara no país ganhando dinheiro enquanto os outros lutavam por ele e sua família.

Woody Strode quando era profissional de
futebol americano.
Woody Strode contra John Wayne - Certo dia, com ilimitada maldade, John Ford lembrou a John Wayne que Woody Strode havia sido um profissional do American Football, enquanto Wayne nunca passara de um mero e desconhecido amador naquele esporte. Ao invés de responder às maledicências de Ford, John Wayne descontou em Woody Strode, na sequência em que Wayne conduz uma charrete com Strode atrás dele. Vendo que Wayne imprimia excessiva velocidade à parelha de cavalos, perdendo uma das rédeas, o ator negro tentou ajudar Wayne que o empurrou com violência. Quando a charrete parou Woody Strode foi para cima de John Wayne com a nítida intenção de agredi-lo. Ambos eram praticamente da mesma altura, mas Strode era sete anos mais jovem e aos 47 anos de idade estava em invejável forma física, diferentemente de John Wayne que começava a sentir os primeiros sintomas da doença que três anos depois o levaria à retirada de um pulmão. E foi justamente John Ford quem interferiu pedindo para que os atores se acalmassem, suspendendo as filmagens naquele dia. Certamente, em seu íntimo, Ford quisesse mesmo ver Strode dar uns sopapos em John Wayne, o que implicaria em atrasos na produção do filme.

Woody Strode e John Wayne em cena de "O Homem que Matou o Facínora".

John Ford e James Stewart, num intervalo
das filmagens de "Terra Bruta".
Insinuação racista - Ainda que John Wayne fosse o alvo preferido do iracundo diretor, a crueldade de Ford atingia a quase todos os intérpretes. James Stewart teve também seu dia de vítima de Ford quando este perguntou a Jimmy o que ele achava da roupa de Woody Strode no filme, uma espécie de jardineira, traje comum nas zonas rurais norte-americanas. Sem nenhuma maldade Stewart disse que Strode lembrava ‘Uncle Remus’, um personagem fictício da literatura que narrava contos folclóricos afro-americanos. Ford então mandou chamar a todos que se encontravam no set e diante de mais de 30 pessoas disse: “James Stewart não gostou do traje de ‘Pompey’ (personagem interpretado por Strode) e parece que não gosta de Uncle Remus também”. Ninguém riu, ninguém fez comentários pois todos sabiam que James Stewart seria incapaz de magoar alguém, ainda mais com possível conteúdo racista. O próprio Woody Strode confessou anos mais tarde, depois do falecimento de John Ford, que o diretor era insuportável e que nunca apreciou suas idiossincrasias.

Lee Marvin
O respeito por Lee Marvin - Quem escapou ileso da sanha de John Ford foi Lee Marvin. Indicado por John Wayne para interpretar ‘Liberty Valance’, Wayne disse a Lee que depois de ser dirigido por Ford sua carreira iria mudar, assim como aconteceu com sua própria carreira após “No Tempo das Diligências” (Stagecoach). Quando Ford viu Marvin pela primeira vez no set disse ao ator que ele havia feito um bom trabalho em “Os Comancheiros”. Lee respondeu que todas as sequências em que participou naquele filme foram dirigidas por John Wayne (o diretor Michael Curtiz esteve doente na maior parte das filmagens de “Os Comancheiros”). O egomaníaco Ford respondeu a Marvin: “Neste filme John Wayne é só mais um ator pois o diretor sou eu”. John Ford admirava a personalidade e a rude franqueza de Lee Marvin, além de ficar impressionado com o talento do ator que ainda não havia dirigido. Além disso Lee Marvin havia recebido a mais alta comenda da Casa Branca – a medalha Purple Heart - por sua participação na II Guerra Mundial, além da Presidential Unit Citation, a Asiatic-Pacific Campaign Medal e a World War II Victory Medal, o que o fazia ainda mais respeitado por Ford. Numa manhã, quando todos aguardavam por John Ford, o respeitoso silêncio tomou conta do set na chegada do diretor. Foi aí que Lee Marvin com dois dedos na boca emitiu um longo e curioso assovio. Todos temeram pela iminente tempestade ao ver que Ford parou, virou o semblante fechado em direção a Marvin e... sorriu. Ford que se orgulhava da patente de Almirante que recebera pelos serviços prestados à U.S. Navy durante a guerra, percebeu que o sibiloso silvo imitava o apito de um navio. Nada alegrava mais John Ford que falar dos anos em que serviu à pátria em alto mar lutando contra o Eixo.

Lee Marvin e John Wayne em cena de "Os Comancheiros".

John Wayne no tempo dos westerns B.
Salvo da ‘Rua da Pobreza’ – Com o desenvolvimento das filmagens, John Wayne foi ficando cada vez mais aborrecido, não só com o tratamento que Ford lhe dispensava, mas também com seu personagem, segundo ele irrelevante na história. As melhores cenas do filme ficavam para James Stewart, Lee Marvin e até Edmond O’Brien, enquanto ele, o Big Duke, andava para lá e para cá como mero coadjuvante. Foi então que Wayne resolveu dar um palpite em uma cena, provocando um dos mais ferozes ataques do tirânico diretor. Ford se levantou de sua cadeira, tirou o charuto da boca e disse em tom de voz que poderia ser ouvido a dezenas de metros de distância: “Você agora vai querer dirigir o meu filme? Você se esqueceu que fui eu que o tirei daqueles filmes que você fazia um por semana?” Ford estava se referindo aos quase dez anos em que John Wayne atuou nos desprestigiados westerns B produzidos na Poverty Row (região onde se concentravam os pequenos estúdios, apelidada de ‘Rua da Pobreza’). Mais uma vez o impiedoso Ford não controlava a ira por seu pupilo ter produzido, dirigido e atuado na superprodução “O Álamo”. Contraditoriamente, quando solicitado por jornalistas a dizer o que havia achado de “O Álamo”, John Ford respondeu que aquele era o melhor filme norte-americano de todo os tempos.

John Ford nos sets de "O Álamo", à esquerda com John Wayne;
à direita ao lado de Laurence Harvey.

Lee Van Cleef
Lee Van Cleef vence John Wayne - Lee Van Cleef contou que não entendia como alguém podia se comportar como um verdadeiro bastardo como fazia John Ford em relação a John Wayne. Van Cleef tinha boa lembrança de John Wayne, com quem trabalhara em “Sangue de Bárbaros”, anos antes. Lee relatou uma sequência em que seu personagem sacava um revólver e antes de disparar John Wayne retirava a arma da mão de Van Cleef e o atingia na cabeça. Enquanto ensaiavam, Van Cleef disse ao Duke que se fosse pra valer jamais conseguiria fazer isso pois ele era rapidíssimo no saque. Ao ver a cara de incredulidade de John Wayne, Van Cleef o desafiou a bater palmas no mesmo momento em que ele sacava. Lee Marvin foi chamado para contar até três e Wayne abriu os braços cerca de 60 centímetros. Lee Marvin contou one, two, three, o Duke tentou bater palmas mas não conseguiu pois Van Cleef havia sacado rápido como um raio e provado que era mesmo ligeiro no gatilho colocando o revólver entre as mãos do Duke. Sempre que se referia a John Ford, Lee Van Cleef iniciava dizendo: “That son of a bitch...”

A sequência em que John Wayne toma o revólver de Lee Van Cleef.

Ambiente ruim, filme ótimo - Ao contrário do que possa parecer, o ambiente entre todos (exceto Ford) durante as filmagens de “O Homem que Matou o Facínora” era excelente, de muita alegria e descontração, algo comum quando Howard Hawks dirigia um filme. O bom ambiente entre colegas de trabalho parece ser fundamental para que um filme dê certo, desde que o diretor não se chame John Ford. Sempre irritado e humilhando a quem estivesse por perto, o irascível diretor conseguiu a proeza de realizar um western excepcional mesmo maltratando a todos. Mais que seus acessos de raiva, mais que seu rancor, mais que seu comportamento quase desumano, a magia de John Ford prevaleceu e “O Homem que Matou o Facínora” se transformou em sua última obra-prima, juntando-se às tantas que pontilharam sua longa carreira.

Os amigos John Wayne e John Ford.



4 comentários:

  1. Excelente matéria sobre os dois grandes do western americano !!

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  2. É...amigo Darci, com suas maravilhosas resenhas hoje, digo, nos tempos de hoje, é que ficamos sabendo dos ciúmes e rancores que se passava por trás das telas. E, todos humanos igual a nós mesmos. Não como os víamos, Sansão, Hércules, Warps...Jesses...Mas, no fundo vê-se que eles se respeitavam e não chegavam a chutar o balde como se diz por por aí.Parabéns amigo, é gostoso de ler essas curiosidades dos bastidores. Paulo..mineiro.

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  3. Oi, Darci!
    Que matéria sensacional! Tirando o caso da "armadilha" para humilhar o adorado Jimmy Stewart, desconhecia as demais histórias de bastidores deste clássico sublime.O preto e branco do filme do filme pode ter sido uma medida de economia, mas é daquelas que acertam no alvo certeiramente, nem consigo imaginar o filme colorido, seria uma obra completamente diferente e de outro espírito. Mas fiquei curioso em saber, Darci, houve possíveis candidatos para os "dois atores jovens para interpretar o cowboy Tom Doniphon e o advogado Ransom Stoddard" que Ford queria? E o diretor tinha também tinha alguém na cabeça antes da indicação de Marvin para 'Liberty Valance'? Este é outro ponto do filme que não imagino sem a presença inesquecível e lendária deste grande ator.
    Abraço.

    Robson

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  4. Lee Marvin é a grande sensação do filme.

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