25 de maio de 2015

O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA (THE MAN WHO SHOT LIBERTY VALANCE) – DERRADEIRA OBRA-PRIMA DE JOHN FORD


A escritora Dorothy Marie Johnson.
“O Homem que Matou o Facínora” (The Man Who Shot Liberty Valance) é um filme fascinante da fase final da carreira de John Ford e fulgura entre seus melhores westerns. Realizado em 1962, esse filme é mais lembrado pela frase dita ao seu final - “Quando a lenda se torna um fato, imprima-se a lenda” - frase que se tornou célebre mas que não sintetiza a riqueza e a importância da história contada por Ford. Dorothy M. Johnson, entre um livro e outro que escrevia, publicava pequenas histórias ambientadas no Velho Oeste. É dela ‘Um Homem Chamado Cavalo’ que viraria filme e o cinema já havia utilizado ‘The Hanging Tree’, (“A Árvore dos Enforcados”), em 1959. ‘The Man Who Shot Liberty Valance’ chamou a atenção de John Ford, segundo ele afirmou, principalmente pelo casal de imigrantes suecos que mantinha um restaurante, espécie de microcosmo social do Velho Oeste. O próprio Ford e James Warner Bellah desenvolveram a pequena história que resultou num roteiro que contém, possivelmente, o mais rico conteúdo que um western já teve. O veterano Willis Goldbeck, roteirista da série “Dr. Kildare” estrelada por Lew Ayres no final dos anos 30, deu retoques ao script.


A chegada do trem a Shinbone; Hallie (Vera Miles) é
recebida pelo ex-xerife Lynk Appleyard (Andy Aevine).
A verdade ignorada - “O Homem que Matou o Facínora” se inicia com a chegada do Senador Ransom Stoddard (James Stewart) e a esposa Hallie (Vera Miles) à cidadezinha de Shinbone para o funeral de um anônimo morador da cidade. A imprensa local se movimenta com a chegada do eminente político que, 25 anos antes, ficara famoso por ter matado um bandido que aterrorizava a região. Um repórter descobre a razão da vinda do Senador a Shinbone e solicita uma entrevista. Instado pelo repórter e editor do ‘Shinbone Star’ a detalhar o episódio ocorrido que o tornara conhecido, o Senador Stoddard conta em flashback a verdadeira versão. Conta ele que após ser assaltado e agredido quando viajava numa diligência, o ainda jovem advogado Ransom Stoddard é ajudado pelo rancheiro Tom Doniphon (John Wayne) e seu empregado Pompey (Woody Strode). Stoddard passa a trabalhar no ‘Peter Restaurant’, de propriedade dos pais de Hallie e lá reconhece Liberty Valance (Lee Marvin), o fora-da-lei que o assaltou. Stoddard denuncia Valance ao xerife Appleyard (Andy Devine), impotente para enfrentar o bandido. Stoddard decide então que a única forma de combater Liberty Valance é através de um revólver, arma que ele nunca utilizou. No confronto o facínora é morto, não por Stoddard, como todos acreditam, mas por um tiro disparado, de uma viela escura, por Tom Doniphon. Tem lugar uma convenção para eleger dois representantes para a assembleia que solicitará a transformação do Território em Estado da União. Stoddard representa os donos de pequenas propriedades (ranchos e fazendas diminutas) competindo com o representante dos poderosos criadores de gado. Stoddard vence a disputa, inicia uma trajetória política de sucesso até a sua breve volta a Shinbone, um quarto de século depois. A revelação da verdade sobre o homem que matou Liberty Valance não é aceita por ninguém, prevalecendo a lenda para insatisfação do Senador.

O senador e o humilde caixão de Tom Doniphon. Nas fotos Earle Hodgins,
Andy Devine, James Stewart, Vera Miles e Woody Strode.

Liberty Valance assaltando a diligência
que vai para Shinbone.
Lei, ordem e lenda - Ringo Kid, Wyatt Earp e mesmo Ethan Edwards são personagens de westerns de John Ford com uma característica semelhante à de Tom Doniphon: a dureza dos modos e a determinação de suas atitudes. Homens assim foram necessários num certo momento para que não prevalecessem impunemente a selvageria imposta pelos que só conheciam a linguagem das armas de fogo. No entanto não foram homens como esses que, de fato, levaram a lei e a ordem às cidades e territórios, civilizando-os, e sim tipos como Ransom Stoddard com seus livros, conhecimento de leis e integridade moral. Se John Ford ajudou com seus filmes a criar a mitologia do Velho Oeste com o destemor de homens como Wyatt Earp, o mesmo Ford demonstrou com “O Homem que Matou o Facínora” o quanto havia de irrealidade na criação de heróis. Involuntariamente este filme é o marco que divide o gênero pois contrariando a frase do editor do ‘Shinbone Star’, a partir de então e cada vez mais, lendas passaram a ser  revistas criticamente. E mais que todos a mítica que pairou sobre a histórica figura de Wyatt Earp. 

O ameaçador Liberty Valance durante
a escolha do representante de Shinbone.
Muito além de um filme político - Segundo Richard Brody, crítico da revista ‘The New Yorker’, “O Homem que Matou o Facínora” é o mais importante entre todos os filmes políticos do cinema norte-americano. E a rigor esse western de Ford não é um filme essencialmente político, mas sim traça um panorama perfeito de um tempo e lugar onde a política se fez naturalmente necessária e presente. Todo grande filme contém inúmeras sequências primorosas, porém “O Homem que Matou o Facínora” é quase totalmente composto de sequências notáveis, entre elas as duas que falam de eleições. Inicialmente, dentro de um saloon em Shinbone, a escolha dos dois representantes para a assembleia territorial. É quando Liberty Valance tenta se impor pela virulência como candidato, sendo derrotado por Ransom Stoddard e pelo jornalista Dutton Peabody (Edmond O’Brien). A segunda sequência se passa em Capitol City, quando deve ser eleito o candidato para representar o Estado no Congresso, em Washington. Ambas magistralmente encenadas combinando dramaticidade, comicidade, a imprescindível demagogia e o estratégico marketing político. Essas duas sequências não tornam o western de Ford um filme político pois ele é muito mais que isso em sua extensão e abrangência, nunca deixando de ser um faroeste.

Em Capitol City o marketing político e os discursos;
 abaixo vê-se Edmond O'Brien e Ken Murray em destaque.

Hallie e Ransom Stoddard
Temas e subtemas - “O Homem que Matou o Facínora” transcorre sem que nenhuma cena ou frase sejam dispensáveis em 122 que são assistidos sem um único segundo de menor interesse por parte do espectador. Ford discute a necessidade da educação com o comovente constrangimento de Hallie ao dizer a Rance (Stoddard) que não foi alfabetizada; a pluralidade de pessoas de origens diversas que aprendem as primeiras letras com o advogado transformado em professor numa sala improvisada; a liberdade de imprensa submetida à pressão da violência, tantas vezes vista em filmes de gêneros diversos, mas aqui encenada impecavelmente e com a nauseante ferocidade de Liberty Valance e seus dois capangas; o romance se faz presente em forma de enternecedor triângulo amoroso com o drama de Tom Doniphon e a indecisão de Hallie que ama igualmente Tom e Rance; a diferença de classe social e o racismo se impõem tanto nos modos como Tom Doniphon trata seu empregado como na forma como o mesmo Doniphon abomina as proibições que cerceiam o direito de Pompey entrar nos recintos onde ocorrem as eleições; a incontida alegria de Nora (Jeanette Nolan) ao ver seu marido se vestir e sair para votar enquanto ela, mulher discriminada sem o direito de votar, permanece no trabalho; em meio a tantos momentos de admirável cinema, transcorre o mistério da morte do facínora atribuída ao fraco e abatido Rance Stoddard, patético com o avental de lavador de pratos enfrentando o debochado e brutal Liberty Valance.

Dutton Peabody (Edmond O'Brien), o editor do 'Shinbone Star' com Rance Stoddard;
no centro o jornal destruído e o editor agredido; Rance Stoddard pedindo
a Hallie para que ela leia o livro e a constrangida moça se revela analfabeta.

Liberty Valance
Encarnação da maldade - Filmado em preto e branco com cenários proposital e inacreditavelmente pobres, “O Homem que Matou o Facínora” é um filme-síntese no qual Shinbone é a mais representativa alegoria da formação do Oeste norte-americano estruturado, é certo, com a coragem e a pontaria certeira, mas muito mais com a força das palavras, das leis e do voto. A galeria de personagens criada por John Ford, com tipos celebrados em tantos outros filmes, ganha sua forma definitiva com o médico e o jornalista beberrões, o xerife tão covarde quanto fanfarrão, o casal de imigrantes e o fiel empregado negro. Some-se a esses personagens a figura demagoga do cabo eleitoral interpretado por John Carradine que somente Ford poderia criar sem se tornar uma caricatura. Os westerns de John Ford não são lembrados por vilões marcantes, exceção feita ao ‘Old Man Clanton’ de “Paixão dos Fortes” (My Darling Clementine) e ao ‘Uncle Shiloh Clegg’ de “Caravana de Bravos” (Wagonmaster). Liberty Valance, mesmo sem que sejam mostrados pela câmara os golpes por ele desferidos com o cabo de seu chicote, é o mais animalesco de todos os bandidos vistos em um western. Supremo malfeitor cinematográfico, sádico, cruel, covarde e morto em antológica sequência.

Rance Stoddard agachado pegando o bife no chão para evitar o confronto entre
Valance e Tom Doniphon;
Valance entre Reese (Lee Van Cleef) e Floyd (Strother Martin).

John Wayne como Tom Doniphon.
John Wayne em primeiríssimo segundo plano - Assim como Ford teve que aceitar rodar “O Homem que Matou o Facínora” em preto e branco (segundo afirmação do cinegrafista William Clothier), a Paramount impôs também a presença de John Wayne e por consequência a de James Stewart, contrariando o diretor. Ambos maduros demais para interpretar personagens 30 anos mais jovens que eles. Wayne estava com 54 anos de idade e Stewart com 53. Essa gritante e indisfarçável inconsequência que poderia comprometer todo o filme, longe de deixar de ser notada, termina por ser aceita pelas excelentes interpretações dos veteranos atores. Nenhuma novidade em Stewart ser perfeito como um personagem agoniado, mas Wayne é que confirma ser magnífico como o grosseiro e ao mesmo tempo torturado e pungente cowboy que perde o amor de sua vida e se resigna a manter um segredo que poderia alterar o rumo de seu destino. Grande tolice John Wayne ter afirmado que seu personagem era secundário e sem melhores cenas. Tom Doniphon é um dos inesquecíveis e mais comoventes personagens de sua carreira.

Os 'suecos' Nora (Jeanette Nolan) e Peter (John
Qualen); abaixo John Carradine.
Galeria de tipos característicos - Grandes elencos foram reunidos em filmes como por “A Conquista do Oeste” (How the West Was Won), por exemplo. Porém um elenco recheado de astros não é garantia de grandes atuações. “O Homem que Matou o Facínora” é memorável na sua galeria de tipos característicos como John Qualen e Jeanette Nolan (o casal de suecos), Ken Murray (o médico), John Carradine, Denver Pyle e Carleton Young, que claramente entenderam o que Ford pretendia de cada um deles. Lee Van Cleef, ainda distante da fama que conquistaria na Europa, tem uma atuação discreta, ao contrário de Strother Martin cujo sadismo e perversidade brilham em seu olhar e riso. Woody Strode impõe dignidade com sua forte presença física e Edmond O’Brien, magistral como o jornalista beberrão e intransigente defensor da imprensa livre, completa o elenco de um filme ‘roubado’ pela atuação de Lee Marvin. Difícil entender O’Brien ter recebido um Oscar por sua atuação em “A Condessa Descalça” e Marvin (posteriormente) receber o mesmo prêmio como o pistoleiro bêbado de “Cat Ballou”, ambos ignorados pela Academia por seus brilhantes trabalhos neste western de John Ford. Nem tudo, no entanto, foi perfeito em “O Homem que Matou o Facínora” e como exemplo lembra-se a troca de camisa de Tom Doniphon que passa de uma cor escura para outra mais clara, voltando em seguida a escura entre as cenas em que o personagem chega ao seu rancho. Falha imperdoável de continuidade. E entre os deliciosos tipos criados por Ford, aquele infantilizado interpretado por O.Z. Whitehead beira o ridículo, com seu pirulito na boca. As sequências do assalto noturno à diligência sequer disfarçam terem sido filmadas em estúdio com cenários de papelão, empobrecendo um pouco a ação, superada apenas pela extrema brutalidade de Lee Marvin. Criam ainda esses cenários a impressão claustrofóbica quando se assiste a “O Homem que Matou o Facínora”, impressão que não é gratuita, uma vez que o filme foi praticamente todo rodado em estúdio.

Ted Mapes, Denver Pyle e Andy Devine; Vera Miles e Woody Strode.

John Ford e John Wayne, parceiros de
grandes westerns.
Triste obra-prima - “O Homem que Matou o Facínora” custou três milhões e duzentos mil dólares, rendendo nas bilheterias norte-americanas oito milhões de dólares. Nos cartazes de lançamento do filme o nome de James Stewart aparece antes do nome de John Wayne, porém nos créditos de abertura do filme é o nome de John Wayne que precede o de Stewart. Foi encomendada uma canção-tema à dupla de compositores Burt Bacharach e Hal David, canção que teve título homônimo ao do filme e foi interpretada por Gene Pitney. Consta que John Ford vetou a canção por considerá-la moderna demais e a gravação não foi usada no filme, cuja trilha musical é de autoria de Cyril J. Mockridge. Nas cenas românticas Ford usou o tema musical criado por Alfred Newman para “A Mocidade de Lincoln”, filme de Ford de 1939. O responsável pela excelente fotografia em preto e branco foi de William H. Clothier e o sombrio das imagens e a simplicidade dos cenários dão a “O Homem que Matou o Facínora” um tom de filme B. A exemplo de “Rastros de Ódio”, o tempo se encarregou de mostrar que um desencantado John Ford havia realizado outro western primoroso, sua derradeira e mais triste obra-prima.


John Wayne com camisas diferentes em sequências contínuas.

Difícil imaginar "O Homem que Matou o Facínora" em cores.

Pôsteres norte-americano, italiano e francês; cartaz publicado em jornal
quando do lançamento do filme em São Paulo, onde permaneceu por
três semanas nos cinemas lançadores.

7 comentários:

  1. Darci, pelo que entendi,este filme de John Ford, deu certinho, fechando como filmaço devido ao ótimo elenco de atores, e da experiência do Diretor. Este é daqueles filmes que eu falo que é impactante, Valence, nos faz ter raiva dele, por ser muito abusado e estovado, desrespeitoso, mas, mesmo assim, achamos graça dele, e torcemos pra vê-lo tomando umas boas porradas, e, ele acaba sendo divertido. Mas, os rancores e ciúmes foram abafados devido às experiências de atores como; John Wayne, Lee Marvin, e, James Stewart. Ótima resenha, parabéns amigo Darci. Paulo...mineiro.

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  2. Um de meus faroestes preferidos! O Homem que Matou o Facínora é simplesmente incrível! Tudo nele funciona bem, além da direção, o elenco principal está ótimo, assim como o de apoio. Ford era um grande cineasta, conseguiu realizar um western à moda antiga, em pleno anos 60! Ótima resenha Darci! Como sempre, rica e informativa, do jeito que a obra merece!
    Grande Abraço!

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    1. Nossas opiniões batem em relação a esse filme, como não poderia deixar de ser. segundo melhor western de Ford. - Darci

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. PENA, QUE, NÃO POSSUAS UMA NEWS LETTER..EXCELENTE, E, MESMO MAGNÍFICA TUA CONFIGURAÇÃO EM SÍTIO CUJAS DIMENSÕES SÃO PRECIOSAS..

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  4. ENVIE - ME QUAISQUER CONSIDERAÇÕES, E, NOVIDADES DO MUNDO DA SÉTIMA ARTE AO EMAIL, filhodesouzaralph@gmail.com...SAUDAÇÕES..

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  5. Alguém, por favor, lembra se esse clássico passou na tv aberta nos anos 70? Caso lembre, teria sido em que canal?

    Grato

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