A escritora Dorothy Marie Johnson. |
“O Homem que Matou o Facínora” (The Man
Who Shot Liberty Valance) é um filme fascinante da fase final da carreira de
John Ford e fulgura entre seus melhores westerns. Realizado em 1962, esse filme
é mais lembrado pela frase dita ao seu final - “Quando a lenda se torna um fato, imprima-se a lenda” - frase que
se tornou célebre mas que não sintetiza a riqueza e a importância da história
contada por Ford. Dorothy M. Johnson, entre um livro e outro que escrevia,
publicava pequenas histórias ambientadas no Velho Oeste. É dela ‘Um Homem
Chamado Cavalo’ que viraria filme e o cinema já havia utilizado ‘The Hanging
Tree’, (“A Árvore dos Enforcados”), em 1959. ‘The Man Who Shot Liberty Valance’
chamou a atenção de John Ford, segundo ele afirmou, principalmente pelo casal
de imigrantes suecos que mantinha um restaurante, espécie de microcosmo social
do Velho Oeste. O próprio Ford e James Warner Bellah desenvolveram a pequena
história que resultou num roteiro que contém, possivelmente, o mais rico
conteúdo que um western já teve. O veterano Willis Goldbeck, roteirista da
série “Dr. Kildare” estrelada por Lew Ayres no final dos anos 30, deu retoques
ao script.
A chegada do trem a Shinbone; Hallie (Vera Miles) é recebida pelo ex-xerife Lynk Appleyard (Andy Aevine). |
A
verdade ignorada - “O Homem que Matou o Facínora” se
inicia com a chegada do Senador Ransom Stoddard (James Stewart) e a esposa
Hallie (Vera Miles) à cidadezinha de Shinbone para o funeral de um anônimo
morador da cidade. A imprensa local se movimenta com a chegada do eminente
político que, 25 anos antes, ficara famoso por ter matado um bandido que
aterrorizava a região. Um repórter descobre a razão da vinda do Senador a
Shinbone e solicita uma entrevista. Instado pelo repórter e editor do ‘Shinbone
Star’ a detalhar o episódio ocorrido que o tornara conhecido, o Senador
Stoddard conta em flashback a verdadeira versão. Conta ele que após ser
assaltado e agredido quando viajava numa diligência, o ainda jovem advogado
Ransom Stoddard é ajudado pelo rancheiro Tom Doniphon (John Wayne) e seu
empregado Pompey (Woody Strode). Stoddard passa a trabalhar no ‘Peter
Restaurant’, de propriedade dos pais de Hallie e lá reconhece Liberty Valance
(Lee Marvin), o fora-da-lei que o assaltou. Stoddard denuncia Valance ao xerife
Appleyard (Andy Devine), impotente para enfrentar o bandido. Stoddard decide
então que a única forma de combater Liberty Valance é através de um revólver,
arma que ele nunca utilizou. No confronto o facínora é morto, não por Stoddard,
como todos acreditam, mas por um tiro disparado, de uma viela escura, por Tom
Doniphon. Tem lugar uma convenção para eleger dois representantes para a assembleia
que solicitará a transformação do Território em Estado da União. Stoddard
representa os donos de pequenas propriedades (ranchos e fazendas diminutas) competindo com o representante dos
poderosos criadores de gado. Stoddard vence a disputa, inicia uma trajetória
política de sucesso até a sua breve volta a Shinbone, um quarto de século
depois. A revelação da verdade sobre o homem que matou Liberty Valance não é
aceita por ninguém, prevalecendo a lenda para insatisfação do Senador.
O senador e o humilde caixão de Tom Doniphon. Nas fotos Earle Hodgins, Andy Devine, James Stewart, Vera Miles e Woody Strode. |
Liberty Valance assaltando a diligência que vai para Shinbone. |
Lei,
ordem e lenda - Ringo Kid, Wyatt Earp e mesmo Ethan Edwards são
personagens de westerns de John Ford com uma característica semelhante à de Tom
Doniphon: a dureza dos modos e a determinação de suas atitudes. Homens assim
foram necessários num certo momento para que não prevalecessem impunemente a selvageria
imposta pelos que só conheciam a linguagem das armas de fogo. No entanto não
foram homens como esses que, de fato, levaram a lei e a ordem às cidades e
territórios, civilizando-os, e sim tipos como Ransom Stoddard com seus livros,
conhecimento de leis e integridade moral. Se John Ford ajudou com seus filmes a
criar a mitologia do Velho Oeste com o destemor de homens como Wyatt Earp, o
mesmo Ford demonstrou com “O Homem que Matou o Facínora” o quanto havia de irrealidade
na criação de heróis. Involuntariamente este filme é o marco que divide o
gênero pois contrariando a frase do editor do ‘Shinbone Star’, a partir de
então e cada vez mais, lendas passaram a ser
revistas criticamente. E mais que todos a mítica que pairou sobre a
histórica figura de Wyatt Earp.
O ameaçador Liberty Valance durante a escolha do representante de Shinbone. |
Muito
além de um filme político - Segundo Richard Brody, crítico da
revista ‘The New Yorker’, “O Homem que Matou o Facínora” é o mais importante
entre todos os filmes políticos do cinema norte-americano. E a rigor esse
western de Ford não é um filme essencialmente político, mas sim traça um
panorama perfeito de um tempo e lugar onde a política se fez naturalmente
necessária e presente. Todo grande filme contém inúmeras sequências primorosas,
porém “O Homem que Matou o Facínora” é quase totalmente composto de sequências
notáveis, entre elas as duas que falam de eleições. Inicialmente, dentro de um
saloon em Shinbone, a escolha dos dois representantes para a assembleia
territorial. É quando Liberty Valance tenta se impor pela virulência como
candidato, sendo derrotado por Ransom Stoddard e pelo jornalista Dutton Peabody
(Edmond O’Brien). A segunda sequência se passa em Capitol City, quando deve ser
eleito o candidato para representar o Estado no Congresso, em Washington. Ambas
magistralmente encenadas combinando dramaticidade, comicidade, a imprescindível
demagogia e o estratégico marketing político. Essas duas sequências não tornam
o western de Ford um filme político pois ele é muito mais que isso em sua
extensão e abrangência, nunca deixando de ser um faroeste.
Em Capitol City o marketing político e os discursos; abaixo vê-se Edmond O'Brien e Ken Murray em destaque. |
Hallie e Ransom Stoddard |
Temas
e subtemas - “O Homem que Matou o Facínora” transcorre sem que nenhuma
cena ou frase sejam dispensáveis em 122 que são assistidos sem um único segundo
de menor interesse por parte do espectador. Ford discute a necessidade da
educação com o comovente constrangimento de Hallie ao dizer a Rance (Stoddard)
que não foi alfabetizada; a pluralidade de pessoas de origens diversas que
aprendem as primeiras letras com o advogado transformado em professor numa sala
improvisada; a liberdade de imprensa submetida à pressão da violência, tantas
vezes vista em filmes de gêneros diversos, mas aqui encenada impecavelmente e
com a nauseante ferocidade de Liberty Valance e seus dois capangas; o romance
se faz presente em forma de enternecedor triângulo amoroso com o drama de Tom
Doniphon e a indecisão de Hallie que ama igualmente Tom e Rance; a diferença de
classe social e o racismo se impõem tanto nos modos como Tom Doniphon trata seu
empregado como na forma como o mesmo Doniphon abomina as proibições que
cerceiam o direito de Pompey entrar nos recintos onde ocorrem as eleições; a
incontida alegria de Nora (Jeanette Nolan) ao ver seu marido se vestir e sair
para votar enquanto ela, mulher discriminada sem o direito de votar, permanece
no trabalho; em meio a tantos momentos de admirável cinema, transcorre o
mistério da morte do facínora atribuída ao fraco e abatido Rance Stoddard, patético
com o avental de lavador de pratos enfrentando o debochado e brutal Liberty
Valance.
Liberty Valance |
Encarnação da maldade - Filmado em preto e branco com
cenários proposital e inacreditavelmente pobres, “O Homem que Matou o Facínora”
é um filme-síntese no qual Shinbone é a mais representativa alegoria da
formação do Oeste norte-americano estruturado, é certo, com a coragem e a
pontaria certeira, mas muito mais com a força das palavras, das leis e do voto.
A galeria de personagens criada por John Ford, com tipos celebrados em tantos
outros filmes, ganha sua forma definitiva com o médico e o jornalista
beberrões, o xerife tão covarde quanto fanfarrão, o casal de imigrantes e o
fiel empregado negro. Some-se a esses personagens a figura demagoga do cabo
eleitoral interpretado por John Carradine que somente Ford poderia criar sem se
tornar uma caricatura. Os westerns de John Ford não são lembrados por vilões
marcantes, exceção feita ao ‘Old Man Clanton’ de “Paixão dos Fortes” (My
Darling Clementine) e ao ‘Uncle Shiloh Clegg’ de “Caravana de Bravos” (Wagonmaster).
Liberty Valance, mesmo sem que sejam mostrados pela câmara os golpes por ele desferidos
com o cabo de seu chicote, é o mais animalesco de todos os bandidos vistos em um
western. Supremo malfeitor cinematográfico, sádico, cruel, covarde e morto em
antológica sequência.
Rance Stoddard agachado pegando o bife no chão para evitar o confronto entre Valance e Tom Doniphon; Valance entre Reese (Lee Van Cleef) e Floyd (Strother Martin). |
John Wayne como Tom Doniphon. |
John
Wayne em primeiríssimo segundo plano - Assim como Ford teve que aceitar
rodar “O Homem que Matou o Facínora” em preto e branco (segundo afirmação do
cinegrafista William Clothier), a Paramount impôs também a presença de John
Wayne e por consequência a de James Stewart, contrariando o diretor. Ambos maduros demais para
interpretar personagens 30 anos mais jovens que eles. Wayne estava com 54 anos
de idade e Stewart com 53. Essa gritante e indisfarçável inconsequência que
poderia comprometer todo o filme, longe de deixar de ser notada, termina por
ser aceita pelas excelentes interpretações dos veteranos atores. Nenhuma
novidade em Stewart ser perfeito como um personagem agoniado, mas Wayne é que
confirma ser magnífico como o grosseiro e ao mesmo tempo torturado e pungente
cowboy que perde o amor de sua vida e se resigna a manter um segredo que
poderia alterar o rumo de seu destino. Grande tolice John Wayne ter afirmado
que seu personagem era secundário e sem melhores cenas. Tom Doniphon é um dos inesquecíveis
e mais comoventes personagens de sua carreira.
Os 'suecos' Nora (Jeanette Nolan) e Peter (John Qualen); abaixo John Carradine. |
Galeria
de tipos característicos - Grandes elencos foram reunidos em
filmes como por “A Conquista do Oeste” (How the West Was Won), por exemplo.
Porém um elenco recheado de astros não é garantia de grandes atuações. “O
Homem que Matou o Facínora” é memorável na sua galeria de tipos característicos
como John Qualen e Jeanette Nolan (o casal de suecos), Ken Murray (o médico),
John Carradine, Denver Pyle e Carleton Young, que claramente entenderam o que
Ford pretendia de cada um deles. Lee Van Cleef, ainda distante da fama que
conquistaria na Europa, tem uma atuação discreta, ao contrário de Strother
Martin cujo sadismo e perversidade brilham em seu olhar e riso. Woody Strode
impõe dignidade com sua forte presença física e Edmond O’Brien, magistral como
o jornalista beberrão e intransigente defensor da imprensa livre, completa o
elenco de um filme ‘roubado’ pela atuação de Lee Marvin. Difícil entender
O’Brien ter recebido um Oscar por sua atuação em “A Condessa Descalça” e Marvin
(posteriormente) receber o mesmo prêmio como o pistoleiro bêbado de “Cat
Ballou”, ambos ignorados pela Academia por seus brilhantes trabalhos neste western de John
Ford. Nem tudo, no entanto, foi perfeito em “O Homem que Matou o Facínora” e
como exemplo lembra-se a troca de camisa de Tom Doniphon que passa de uma cor
escura para outra mais clara, voltando em seguida a escura entre as cenas em que o personagem chega ao seu
rancho. Falha imperdoável de continuidade. E entre os deliciosos tipos criados
por Ford, aquele infantilizado interpretado por O.Z. Whitehead beira o ridículo,
com seu pirulito na boca. As sequências do assalto noturno à diligência sequer
disfarçam terem sido filmadas em estúdio com cenários de papelão, empobrecendo um pouco a ação,
superada apenas pela extrema brutalidade de Lee Marvin. Criam ainda esses cenários a impressão claustrofóbica quando se assiste a “O Homem que Matou o Facínora”, impressão que não é gratuita, uma vez que o filme foi praticamente todo rodado em estúdio.
Ted Mapes, Denver Pyle e Andy Devine; Vera Miles e Woody Strode. |
John Ford e John Wayne, parceiros de grandes westerns. |
Triste
obra-prima - “O Homem que Matou o Facínora” custou três milhões e
duzentos mil dólares, rendendo nas bilheterias norte-americanas oito milhões de
dólares. Nos cartazes de lançamento do filme o nome de James Stewart aparece
antes do nome de John Wayne, porém nos créditos de abertura do filme é o nome
de John Wayne que precede o de Stewart. Foi encomendada uma canção-tema à dupla
de compositores Burt Bacharach e Hal David, canção que teve título homônimo ao
do filme e foi interpretada por Gene Pitney. Consta que John Ford vetou a
canção por considerá-la moderna demais e a gravação não foi usada no filme,
cuja trilha musical é de autoria de Cyril J. Mockridge. Nas cenas românticas
Ford usou o tema musical criado por Alfred Newman para “A Mocidade de Lincoln”,
filme de Ford de 1939. O responsável pela excelente
fotografia em preto e branco foi de William H. Clothier e o sombrio das imagens
e a simplicidade dos cenários dão a “O Homem que Matou o Facínora” um tom de
filme B. A exemplo de “Rastros de Ódio”, o tempo se encarregou de mostrar que
um desencantado John Ford havia realizado outro western primoroso, sua
derradeira e mais triste obra-prima.
John Wayne com camisas diferentes em sequências contínuas. |
Difícil imaginar "O Homem que Matou o Facínora" em cores. |
Pôsteres norte-americano, italiano e francês; cartaz publicado em jornal quando do lançamento do filme em São Paulo, onde permaneceu por três semanas nos cinemas lançadores. |
Darci, pelo que entendi,este filme de John Ford, deu certinho, fechando como filmaço devido ao ótimo elenco de atores, e da experiência do Diretor. Este é daqueles filmes que eu falo que é impactante, Valence, nos faz ter raiva dele, por ser muito abusado e estovado, desrespeitoso, mas, mesmo assim, achamos graça dele, e torcemos pra vê-lo tomando umas boas porradas, e, ele acaba sendo divertido. Mas, os rancores e ciúmes foram abafados devido às experiências de atores como; John Wayne, Lee Marvin, e, James Stewart. Ótima resenha, parabéns amigo Darci. Paulo...mineiro.
ResponderExcluirUm de meus faroestes preferidos! O Homem que Matou o Facínora é simplesmente incrível! Tudo nele funciona bem, além da direção, o elenco principal está ótimo, assim como o de apoio. Ford era um grande cineasta, conseguiu realizar um western à moda antiga, em pleno anos 60! Ótima resenha Darci! Como sempre, rica e informativa, do jeito que a obra merece!
ResponderExcluirGrande Abraço!
Nossas opiniões batem em relação a esse filme, como não poderia deixar de ser. segundo melhor western de Ford. - Darci
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirPENA, QUE, NÃO POSSUAS UMA NEWS LETTER..EXCELENTE, E, MESMO MAGNÍFICA TUA CONFIGURAÇÃO EM SÍTIO CUJAS DIMENSÕES SÃO PRECIOSAS..
ResponderExcluirENVIE - ME QUAISQUER CONSIDERAÇÕES, E, NOVIDADES DO MUNDO DA SÉTIMA ARTE AO EMAIL, filhodesouzaralph@gmail.com...SAUDAÇÕES..
ResponderExcluirAlguém, por favor, lembra se esse clássico passou na tv aberta nos anos 70? Caso lembre, teria sido em que canal?
ResponderExcluirGrato