Toni Cardi |
Fazer filmes no Brasil é,
invariavelmente, um ato de heroísmo e tenacidade. Certo que sempre houve os
bafejados pela sorte que contaram com apoio dos poderes públicos, c0mo acontecia
nos anos 70 em que o INC financiava projetos dos pretensos godards e bergmans
brasileiros. Esse era um tempo em que, paralelamente, o órfão Cinema da Boca se
desenvolvia em São Paulo e que cada filme tinha uma história repleta de
dificuldades, nenhuma delas maior que a falta de dinheiro. Um bom exemplo da
aventura que era aqueles cineastas que se encontravam no Bar Soberano (na Rua
do Triumpho) para fazer um filme é “Pedro Canhoto, o Vingador Erótico”,
dirigido pelo italiano radicado no Brasil, Raffaele Rossi. Iniciado em 1971, a
ideia do também roteirista Rossi era realizar um western nos moldes dos
chamados ‘spaghetti’ que alcançavam grande sucesso por aqui. Para protagonista
Raffaele Rossi chamou o piracicabano Toni Cardi com quem Rossi filmara “O Homem
Lobo” em 1971. Iniciadas as filmagens em Dourados, na Região da Alta Mogiana, os trabalhos foram interrompidos por
falta de dinheiro com o abandono do produtor inicial. As filmagens só foram retomadas
mais de um ano depois quando Cassiano Esteves, da Marte Filmes, conseguiu o
dinheiro necessário para concluir esse western caboclo. Muitos faroestes foram
produzidos no Brasil nos anos 70, sendo apelidados de ‘Western Feijoada’, mas,
apesar da forte influência dos westerns spaghetti, o melhor rótulo seria mesmo
‘Western Caboclo’ sequência do Ciclo Campineiro iniciado por Antoninho Hossri nos
anos 50.
Kazuaque Hemmi e Dirce Semenzato; abaixo o rancho incendiado pelos bandidos. |
Defendendo
um pedaço de terra - Um bandido chamado ‘General’ (José
Velloni), a soldo do Coronel Martinez (Cavagnolle Neto), impõe o terror entre
os sitiantes de Santa Clara de La Sierra. Soledad (Cleuza Bagnara), filha do
Coronel, condena a atitude de seu pai. Entre os perseguidos pelo bando liderado
pelo ‘General’ está a família de Pedro (Toni Cardi), que tem seu pai e irmã
(Laércio Pessa e Dirce Semenzato) assassinados pelos bandidos, ela estuprada
antes de morrer. O irmão menor de Pedro, o menino Pablo (Nelson A. Braga),
consegue escapar e faz amizade com um estranho, o mendigo bêbado Toledo
(Nivaldo Lima), sendo levado por Pedro para a casa de um ancião (Armando
Paschoalim). Mariana (Adélia Coelho) é uma cigana, amante do ‘General’ que após
traí-lo e ser por ele espancada passa a ser protegida por Pedro. O Coronel
Martinez exige de seu filho Rodrigo (Moacir Maurício) que Pedro seja morto e,
num confronto com os homens do ‘General’, Pedro tem sua mão direita quebrada
para que não possa mais atirar, sendo deixado para ser devorado pelos abutres.
Um mexicano errante (Nestor Lima) salva Pedro da morte enquanto o mendigo
Toledo se recupera do vício e retoma sua identidade de pistoleiro, unindo-se a
Pedro. Os dois amigos enfrentam então o ‘General’ e seu bando, exterminando-os,
assim como liquidando o Coronel Martinez e seu filho Rodrigo. Toledo, o
pistoleiro é morto no confronto, enquanto Soledad, que se enamorara de Pedro,
fica ao lado dele no final.
O enforcamento do 'Velho'; abaixo Toni Cardi com Nivaldo Lima. |
Copiando
o modismo – Estraçalhado pela crítica quando de seu lançamento, o
maior defeito de “Pedro Canhoto, o Vingador Erótico” é seu diretor ter feito do
filme um autêntico álbum de clichês dos westerns spaghetti, destituindo-o de
personalidade própria. Raffaele Rossi preferiu esse caminho, muito
provavelmente, movido pela certeza da aceitação do público por um western com
os ingredientes que tanto encantavam os aficionados da contrafação europeia. Quatro
anos antes, em 1969, Ozualdo Candeias havia demonstrado com seu excelente “Meu
Nome é Tonho” ser possível criar, com características particulares e bem
brasileiras, um faroeste exemplar. Mas se falta personalidade a “Pedro Canhoto,
o Vingador Erótico”, sobra talento ao diretor na costura do roteiro e ainda
ótimo conhecimento de movimentação da câmara que, somados à direção dos atores
principais, torna o filme mais que aceitável. Há que se lembrar que o gritante
amadorismo de parte do elenco poderia comprometer o conjunto, tornando-o
caricato, especialmente no excesso de risadas que é marca de todos os bandidos
neste filme, vício amplamente disseminado pelos westerns spaghetti. Raffaele
consegue superar esse obstinado cacoete justamente com o domínio do bom andamento
de “Pedro Canhoto, o Vingador Erótico”.
Toni Cardi ao lado de Adélia Coelho. |
Resistência
heroica - A história comum a tantos westerns (de qualquer
procedência) tem um componente inusitado com a figura do pistoleiro decaído
(Toledo) que após recuperado une-se ao perseguido Pedro. Porém a transformação de
Toledo se dá de modo pouco convincente, assim como não funciona a troca de
medalhas entre ele e o menino Pablo. As medalhas certamente teriam a função de
futuro reconhecimento entre Pablo e Toledo depois do afastamento de ambos e da
recuperação do agora impecavelmente elegante pistoleiro. O recomposto Toledo vestindo-se
demoradamente com seus trajes guardados num saco de viagem remete ao ritual de
Lee Marvin em “Dívida de Sangue” (Cat Ballou), em que o grande ator
norte-americano também interpreta um pistoleiro beberrão. E Raffaele Rossi cria
uma inesperada mudança de rumo com a cigana Mariana inconsolável junto ao corpo
do ‘General’, enquanto a suave Soledad é quem termina ao lado do vingador que
de libertino não tem nada. Pelo contrário, Pedro é forte o bastante para
resistir aos encantos da voluptuosa cigana, mesmo ambos tendo oportunidade de
dar alguma lascividade às sequências. Filmado sob a rígida censura da ditadura
militar, o filme de Rossi até que foi longe demais ao exibir seios e pelos
pubianos de Adélia Coelho, a bela cigana, numa cena de banho num riacho.
“Laranja Mecânica”, de 1971, somente obteve certificado de censura para
exibição no Brasil em 1978 e quem viu o filme de Stanley Kubrick no lançamento
em nosso país não esqueceu das ridículas bolotas pretas saltando na tela para encobrir
seios e sexo de mulheres nuas.
As pernas de Adélia Coelho encostadas ao revólver de um bandido; Adélia na bucólica sequência do banho no riacho. |
Toni Cardi acima e abaixo o menino Nelson Braga e a troca de medalhas |
O
louríssimo herói - Além de seus atributos físicos, a
atriz Adélia Coelho exibe invulgar coragem ao montar em pelo um cavalo,
saltando dele espetacularmente sem ajuda de dublê. E bandidos baleados caindo
de balcões são sequências igualmente bem feitas, acima da média para nosso
cinema ainda incipiente nesse tipo de truques. Alguns personagens que
interpretam membros do bando do ‘General’ eram praticantes de artes marciais na
mesma academia (Avenida São João, em São Paulo) em que treinava Toni Cardi. Com
cabeleira oxigenada lembrando Teddy Boy Marino, o ídolo da luta livre e da
primeira formação dos Trapalhões, Toni Cardi é menos eficiente na coreografia
das sequências de luta que os coadjuvantes. E num filme com o mínimo de diálogos
possível, o personagem Toledo tem despertada sua nada original ‘filosofice’
quando diz ao menino Pablo: “Você é uma
boa criança. Se todos fossem como as crianças o mundo seria melhor”. E
quando o garoto lhe pergunta por que ele bebe tanto, tem como resposta outra
pérola: “Quando você for homem e
compreender melhor a vida não vai fazer esse tipo de pergunta”.
Nivaldo Lima, um George Hilton brasileiro e sério. |
Destaque
para Nivaldo Lima - Alguns dos intérpretes de “Pedro
Canhoto, o Vingador Erótico” ganharam experiência em filmes da PAM de Amacio
Mazzaropi, como é o caso de José Velloni e o próprio Toni Cardi; já Nivaldo
Lima começou sua carreira de ator em emio a cobras e aranhas sob as ordens de
José Mojica Marins. Nivaldo Lima que lembra um pouco o uruguaio George Hilton é
bom ator, como comprovou em “Meu Nome é Tonho”. Cavagnolle Neto, o mais
experiente do elenco, com carreira iniciada em 1953 na Vera Cruz, está muito
bem como o ambicioso Coronel Jimenez. José Velloni, com uma dezena de aparições
em filmes da PAM tenta ser convincente como um bandido cruel, algo próximo do
General Mapache criado pelo magnífico Emílio Fernandez em “Meu Ódio Será Sua
Herança” (The Wild Bunch). A sensual Adélia Coelho faria apenas mais dois
filmes (pornochanchadas), abandonando uma carreira promissora no Cinema da
Boca. Toni Cardi passa o filme fazendo expressões de sofrimento quando nenhum
sofrimento pode ter sido mais atroz que interpretar um ‘vingador erótico’ que
não desfruta dos prazeres que é amar a tentadora cigana Mariana. Este filme de
Raffaele Rossi conta com participação especial de Heitor Gaiotti, conhecido
como o Lee Van Cleef da Rua do Triumpho. A participação se dá num flashback em
preto e branco em que Gaiotti duela com Nivaldo Lima num cemitério, citação
clara a Sergio Leone.
Nivaldo Lima e Heitor Gaiotti. |
Morricone
e Ferrio na trilha sonora musical - Segundo conta o ator Toni Cardi,
Raffaele Rossi envolveu-se em inúmeras confusões em seu trabalho como cineasta.
O próprio Toni Cardi ajudou a livrar Rossi de alguns embaraços com a polícia
inclusive, devido a denúncias feitas pelos credores do diretor italiano. Uma
bela confusão Rossi poderia ter arrumado caso fosse acionado pelos detentores
dos direitos autorais de canções utilizadas na trilha sonora musical de “Pedro
Canhoto, o Vingador Erótico”. De Ennio Morricone a Gianni Ferrio, passando por
Al Caiola, impudentemente Raffaele Rossi ‘compilou’ uma trilha sonora de alta
qualidade para seu western. Atribuída nos créditos a Salatiel Coelho a trilha
sonora pouco tem de original. O cinegrafista Pio Zamuner, conhecido por sua
longa colaboração com Mazzaropi respondeu pela bonita fotografia deste western
caboclo. Menos cuidados são os pobres cenários de fachada da cidade mexicana
com portas e janelas sempre fechadas. “Pedro Canhoto, o Vingador Erótico” pode
provocar alguns risos debochados, o que não é incomum em faroestes nacionais,
porém o filme de Raffaele Rossi atinge seu objetivo que é divertir um público
menos exigente, além de ser admirado por suas qualidades que superam os
evidentes defeitos.
A espetacular sequência com Adélia Coelho caindo do cavalo em disparada. |
“A
Herança da Alta Mogiana” - Oportuno lembrar que o cineasta Milton
Martins está finalizando um documentário sobre os faroestes realizados na
região onde foi rodado “Pedro Canhoto, o Vingador Erótico”, trabalho intitulado
“A Herança da Alta Mogiana”. Nesse documentário são focalizados os curtas
“Duelo de Amor”, “Conflito em San Diego”, “Voltei do Inferno”, “A Morte Vai
para o Inferno”, “O Maldito Ouro Azul” e o longa “Pedro Canhoto, o Vingador
Erótico”. É importante conhecer essa empreitada de Milton Martins e descobrir
como o faroeste foi tantas vezes motivo de expressão artística na região da
Alta Mogiana, que tem como capital regional Ribeirão Preto. Maiores informações
sobre a realização do documentário podem ser encontradas na página do Facebook
‘A Herança da Alta Mogiana’, bem como no vídeo que tem o endereço abaixo.
https://www.youtube.com/watch?v=pPdK-IJkadQ
https://www.youtube.com/watch?v=pPdK-IJkadQ
Quedas é o que não falta no western de Raffaele Rossi. |
Bandidos rindo o tempo todo, até encontrar Pedro Canhoto. |
O ator José Velloni que faleceu recentemente atuou em vários filmes do Mazzaropi e foi Vereador aqui em Ribeirão Preto durante várias décadas.
ResponderExcluirO ator principal parece também com o Chuck Norris mais novo.
Aurélio Cardoso
Olá Darci, li toda a resenha, pelo que entendi o filme é bom. Na verdade, eu não me arriscava assistir filmes brasileiro de western, imaginava que são ruins e, que fazem os filmes levando na brincadeira, e tudo é engraçado. Mas, pela resenha, percebi que tem uma boa história, e enredo, sequências, e bons atores, e você cita outro que vale a pena também, Meu Nome é Tonho. Detalhe importante, sobre a dificuldade de se fazer filmes no Brasil, principalmente, o apoio financeiro, e ainda, os problemas da ditadura que barrava tudo. e, este ainda foi salvo por algumas cenas. Darci, se encontrar assisto, com certeza, bem indicado. Paulo...mineiro.
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