A carreira de Sam Peckinpah como
diretor parecia irremediavelmente encerrada em 1967 após os difíceis momentos
que Sam viveu devido ao fracasso financeiro de “Juramento de Vingança” (Major
Dundee). Em seu trabalho seguinte que foi “A Mesa do Diabo”, filme estrelado
por Steve McQueen, Peckinpah foi despedido da direção dias após o início das
filmagens. A via crucis do diretor continuou com “Assim Morrem os Bravos” (The
Glory Guys), faroeste com roteiro escrito pelo próprio Peckinpah mas do qual ele
foi também dispensado após começar a dirigir o filme. Destino parecido Peckinpah
teria em “Villa, o Caudilho”, outro western que também que teve roteiro de sua
autoria e que Sam dirigiria, isto até ser vetado por Yul Brynner. A única porta
que se abriu para Peckinpah naquele momento foi quando o produtor Phil Feldman
acenou com um projeto que teria Lee Marvin como astro e Sam como diretor. Lee
Marvin estava no auge do sucesso e Feldman acreditava que a reunião dos
talentos de Marvin e de Peckinpah resultaria num grande filme. A história de autoria
de Walon Green e Roy N. Sickner, intitulada “The Wild Bunch”, foi roteirizada
por Green e por Peckinpah, ficando com este a contribuição maior. Lee Marvin
gostou do roteiro e Phil Feldman
imaginava repetir com “The Wild Bunch” o monumental sucesso de “Os Doze
Condenados, especialmente porque, assim como no filme de Robert Aldrich,
haveria a possibilidade de utilizar um elenco com muitos astros famosos. O
roteiro se assemelhava em alguns pontos com os westerns “Vera Cruz”, “Sete
Homens e um Destino” e com o recente “Os Profissionais”, todos sucessos de
bilheteria. Uma decepção ocorreu quando Meyer Mishkin, o agente de Lee Marvin
leu o texto de Green-Peckinpah e o achou ultraviolento, desaconselhando Marvin
a atuar naquele filme e indicando ao ator a participação em “Aventureiros do
Ouro” (Paint Your Wagon) pelo qual Marvin receberia um milhão de dólares. Para
substituir Marvin foram cogitados Burt Lancaster, Robert Mitchum, Richard
Boone, Gregory Peck, Charlton Heston, Sterling Hayden e James Stewart mas o
papel de Pike Bishop acabou nas mãos de William Holden. Até hoje fica-se a
imaginar se com Lee Marvin no papel principal “Meu ódio Será Sua Herança”
(título nacional) teria resultado num filme melhor, algo que parece impossível.
Acima o The Wild Bunch chegando a Starbuck; abaixo chegando a Agua Verde. |
Ladrões
de bancos na revolução mexicana - Em “Meu Ódio Será Sua Herança” o
grupo conhecido como ‘The Wild Bunch’ liderado por Pike Bishop (William Holden)
tenta um assalto ao banco da cidade de Starbuck, no Texas, quase fronteira com
o México, em 1913. O bando, no entanto, é surpreendido numa emboscada por
caçadores de recompensa, isto além de terem sido enganados ao roubarem do banco
sacos contendo arruelas ao invés de dinheiro. Após sangrento confronto com os bounty hunters em que ambos os lados
sofrem baixas e cidadãos inocentes são também mortos durante o tiroteio na rua
principal de Starbuck, Pike e seus homens seguem para Agua Verde (México),
passando antes pela vila de origem de Angel (Jaime Sánchez), membro do bando. O
grupo de caçadores de recompensa é comandado por Deke Thorton (Robert Ryan) que
segue obstinadamente os passos do The Wild Bunch, mesmo no México. Completam o
bando selvagem sob as ordens de Pike, Dutch (Ernest Borgnine), os irmãos Lyle
Gorch (Warren Oates) e Tector Gorch (Ben Johnson), além do velho Freddie Sykes
(Edmond O’Brien) que fica na retaguarda das ações. O bando trava contato com o ‘General’
Mapache (Emílio Fernández) e seu exército que, alinhado com as forças do
presidente ditador General Victoriano Huerta, luta para reprimir os
revolucionários comandados por Pancho Villa. Pike e seus homens conseguem armas
para Mapache em troco de uma recompensa de dez mil dólares em ouro. Como Angel é
um villista, portanto contrário a Mapache, é considerado traidor, preso,
torturado e morto. Esse fato ocorrido no quartel general dos
contrarrevolucionários faz com que Pike, Duke, Lyle e Tector se decidam a
enfrentar Mapache e seu exército de 200 homens. A luta desigual termina com a
morte dos quatro norte-americanos não sem antes praticamente aniquilarem as
forças de Mapache.
As inocentes crianças e a crueldade com os escorpiões e formigas. |
A
maldade dos homens - Muito se escreveu a respeito de “The
Wild Bunch” fazendo-se alusão ao filme ser uma metáfora à participação
norte-americana na Guerra do Vietnã. No entanto Sam Peckinpah quis apenas
contar uma história sobre bandidos, personagens por quem tinha grande
admiração, sentimento que não nutria pelos míticos homens da lei. Atraído
irremediavelmente pelos perdedores, os foras-da-lei do Velho Oeste num mundo
que os excluía, Peckinpah focaliza com fascínio esses tristes personagens. As
imagens iniciais do western de Peckinpah, com crianças brincando de forma tão inocente
quanto cruel com escorpiões jogados vivos dentro de um formigueiro que depois é
queimado pelas mesmas crianças, profetiza o que se verá a seguir. Pike Bishop e
seus homens passam pelas crianças e estas os olham com um misto de receio e admiração.
Os homens do bando selvagem são como escorpiões que lutam desesperadamente para
sobreviver em meio aos insetos que os devoram para saciar a maldade das
crianças. Para Sam Peckinpah a maldade é inata ao ser humano, mesmo quando
ainda em formação e depois desenvolvida na vida adulta onde não há seres
inteiramente bons, o que se vê em “Meu Ódio Será Sua Herança”. Todos de alguma
forma fazem uso da violência de forma variada e sob pretextos diversos.
William Holden e Robert Ryan |
Personagem
trágico - O roteiro de “Meu Ódio Será Sua Herança” alterna momentos
de ação com outros de reflexão por parte dos decadentes assaltantes de banco. O
bando selvagem exibe sua capacidade de colocar em prática planos traçados com
competência por Pike Bishop e em suas reflexões os diálogos expõem o desolamento
diante da falta de perspectivas e a ambiguidade moral de seus valores. Dutch é
o mais digno do bando e ouve Pike lhe dizer com cinismo que “Dez mil dólares cortam muitos laços de
família” em referência à luta de Angel pela causa de seu povo. Dutch é
também ingênuo ao acreditar que os oprimidos aldeões amigos de Angel sejam
capazes de reagir quando diz a Pike: “Espero
que um dia esse povo chute ele (Mapache) e os demais para o túmulo”. E no
próprio bando não se preza muito a lealdade, especialmente por parte dos irmãos
Gorch que questionam a todo instante a liderança de Pike Bishop ou a
importância de Angel e do velho Sykes. Pike Bishop e Deke Thornton (líder dos
mercenários caçadores de recompensas) que foram amigos em outros tempos se
respeitam e lutam contra seus conflitos internos. Quando Bishop lembra que deve-se respeitar a palavra empenhada, mais uma vez Dutch esclarece com sabedoria que "o que conta não é a palavra dada, mas para que você empenha sua palavra". Bishop é o mais atormentado
dos dois pelos fracassos que acumulou em sua vida de aventuras inclusive de
ordem sentimental. Envelhecido, triste e sem esperança Bishop é um personagem
trágico que vê sua redenção no enfrentamento a Mapache, levando consigo seus
três companheiros na missão suicida. Conseguem, finalmente, em suas vidas
tornarem-se homens de verdade e não meros bandidos em busca de uma desonrosa
sobrevivência.
O inferno toma conta de Starbuck (acima); abaixo Mapache Emílio Fernández) é atingido. |
Apuro
técnico - Muito criticado e mais lembrado pela excessiva violência
das sequências de ação, “Meu Ódio Será Sua Herança” é o ápice da técnica
cinematográfica alcançada em um faroeste. Os primeiros 15 minutos com o
pandemônio em que se transforma a rua principal de Starbuck e o derradeiro
quarto de hora com a épica batalha travada no quartel general de Mapache são
momentos antológicos do cinema. Os ângulos de posicionamento das câmaras, o uso
de slow-motion em velocidades variadas, o realismo das balas perfurando corpos
humanos, o ritmo sôfrego e alucinante e os cortes para as feições humanas desesperadas
compõem uma das mais ricas aulas de cinema desde que Orson Welles legou ao
mundo seu “Cidadão Kane”. O espectador praticamente sem fôlego só volta a
respirar quando urubus pousam sobre o aqueduto do forte espreitando as centenas
de cadáveres e atrevem-se a dilacerar corpos inertes. Do lado de fora, sentado
e com o olhar desolado o solitário Deke Thornton passivamente vê a escória que
são seus homens carregarem os despojos arrancados aos mortos. Cenas
poeticamente nauseantes que só um grande artista seria capaz de criar.
Igualmente perfeitas e impressivas são as sequências eletrizantes do assalto ao
trem seguida da perseguição e explosão de uma ponte com homens e cavalos caindo
num rio. Desde “No Tempo das Diligências” um western não inovava e emocionava
tanto.
Feições ensandecidas de Bo Hopkins acima e L.Q. Jones e Strother Martin (abaixo). |
A
inspiração de Peckinpah - A violência que é sempre repulsiva
adquire em “Meu ódio Será sua Herança” a forma admirável de um balé no inferno.
Os personagens psicopatas de Peckinpah, mais que todos Coffer (Strother Martin)
e T.C. (L.Q. Jones), odiosos como Harrigan (Albert Dekker), cruéis como o
General Mapache, o Major Zamorra (Jorge Russek) e o Tenente Herrera (Alfonso
Arau) previnem o espectador fazendo-o aceitar a extrema violência que explode
na tela. Maior ainda o mérito de Peckinpah quando se sabe que, ao contrário de
quase todos os diretores que aprenderam com Hitchcock, Sam não criou as
memoráveis sequências através de storyboards (desenhos a partir dos quais se
desenvolve uma filmagem). Peckinpah criava sempre sob a inspiração de momento e
o que não lhe faltou em “Meu Ódio Será Sua Herança” foi inspiração sob o
intenso calor do México. E mais cresce o diretor ao conceito do espectador
quando se sabe que Peckinpah utilizou 330.000 pés de negativos para este filme,
enquanto, por exemplo, George Stevens gastou um milhão e meio de pés de
negativos para conceber seu pouco movimentado “Os Brutos Também Amam”. Assim
como Stevens fez com “Shane”, Sam Peckinpah trancou-se na sala de edição com o
editor Lou Lombardo para mostrar que as lições do russo Sergei Eisenstein não
foram em vão, em impecável trabalho de corte e edição de seu filme.
Caminhadas memoráveis do The Wild Bunch. |
Paixão
pelo México - Apaixonado pelas coisas do México (estava casado à época
com a mexicana Begonia Palácios), Peckinpah levou sua equipe para locações em
Durango, Parras e Torreón, onde estavam ou foram construídosos cenários vistos
em “Meu Ódio Será Sua Herança”. Pela voz de Angel, Peckinpah exorta o México
dizendo que só não enxerga a beleza do México quem não possui olhos para ver. A
excepcional cinematografia de Lucien Ballard se encarregou de capturar não só a
árida beleza daqueles locais mas também da distribuição de até seis câmaras em
algumas sequências, cada qual com uma velocidade diferente para atingir o
realismo pretendido por Peckinpah. E o México se faz presente na bela trilha
sonora musical criada por Jerry Fielding com a presença de temas tradicionais
como “La Golondrina” e “La Adelita”. Peckinpah pediu a Fielding que compusesse uma trilha discreta, o mais distante possível da estridência do trabalho de Elmer Bernstein para "Sete Homens e um Destino". Se “Meu Ódio Será Sua Herança” é mais
lembrado pela inesquecível caminhada de Holden, Borgnine, Johnson e Oates em
direção à varanda onde estão Mapache e seus oficiais, não menos notável é a
despedida do Wild Bunch ao sair da aldeia e se dirigir para Agua Verde ao som
de “La Golondrina”. O filme se encerra com a retomada desse brilhante momento
cinematográfico até o congelamento final da imagem anunciando o término da
película. De excepcional qualidade também o trabalho de Edward Carrere na
direção de arte e de Gordon Dawson na elaboração dos trajes dos muitos
figurantes. Ambos elementos inestimáveis para que Peckinpah conseguisse demonstrar
a pobreza do povoado e o contraste entre a ruidosa pompa de Mapache, de seus
oficiais e consultores germânicos com a quase indigência daqueles que
acreditavam no ‘general’ demagogo com o
uniforme repleto de medalhas.
William Holden, o alter-ego de Peckinpah e o sorriso inconfundível deErnest Borgnine. |
O
alter-ego do diretor - William Holden relutou a princípio
em usar o bigode que Peckinpah queria para o personagem Pike, mas acabou
aceitando. No decorrer das filmagens Holden havia adotado até mesmo os
maneirismos do diretor que conseguiu do veterano ator uma das melhores atuações
de sua carreira. Borgnine brilha como não poderia deixar de ser gastando o Espanhol
que aprendeu enquanto esteve casado com Katy Jurado. Robert Ryan apenas com seu
olhar mostra porque se ombreia entre os melhores atores norte-americanos de
todos os tempos. Ótimos Warren Oates e Ben Johnson. Edmond O’Brien está algo
excessivo e Jaime Sánchez é o menos convincente de um elenco precioso. Demoníacos
Strother Martin e L.Q. Jones, mas onde andava R.G. Armstrong que não
interpretou o líder da Liga da Temperança, personagem que ficou para Dub
Taylor. Expressiva a pequena participação de Bo Hopkins como jovem e sádico
bandido. Emílio Fernández deliciosamente histriônico domina qualquer cena em
que participa e o time de belas mulheres mexicanas é outro atrativo com
destaques para Sonia Amelio e Aurora Clavel.
Peckinpah estudando a próxima tomada de seu extraordinário filme. |
Marco
cinematográfico - Depoimentos de diversos
participantes da produção de “Meu Ódio Será Sua Herança” perceberam durante as
filmagens que faziam parte de um trabalho de dimensão maior sob a direção de
Sam Peckinpah. Porém nenhum deles poderia calcular que participavam não apenas
de um grande filme do gênero western, mas sim de uma extraordinária obra
cinematográfica, um dos principais filmes da história do cinema. Orçado em três
milhões e meio de dólares, o custo final praticamente dobrou e o público e a
Academia preferiram naquele tempo a leveza de “Butch Cassidy”. O filme de
Peckinpah não teve o reconhecimento merecido, ainda que não tenha desapontado
totalmente junto aos espectadores, arrecadando no primeiro ano de exibição no
mundo todo perto de 12 milhões de dólares. “Butch Cassidy”, que também fala do
The Wild Bunch, arrecadou 50 milhões e dólares. Em São Paulo “Meu Ódio Será Sua Herança” atingiu
dez semanas consecutivas em exibição na sala de lançamento, o Cine Majestic. O
tempo, no entanto, senhor da razão se incumbiu de transformar “Meu Ódio Será
Sua Herança” em um filme estudado, admirado e reconhecido como marco
cinematográfico, verdadeira e irretocável obra-prima.
Anúncios do lançamento de "Meu Ódio Será sua Herança" em São Paulo, em maio de 1970; um dos anúncios diz que é 'O mais sangrento e impressionante western jamais feito em Hollywood'. |
A célebre caminhada de Pike, Dutch, Lyle e Tector em direção ao confronto final. |
Acima à direita Tector e Lyle divertem-se com prostitutas mexicanas; Mapache sempre cercado de mulheres e bebidas; Teresa, o grande amor de Angel; Zamorra e Herrera com o torturado Angel. |
A metralhadora 'Al Browning 1917' refrigerada a água, trocando de mãos. |
Prezado Darci
ResponderExcluirExcelente análise.
Assisti este filme, comprei o dvd e ainda assisto de vez em quando, foi uma
indicação sua quando perguntei sobre o western com personagens que se redimem.Mas fiquei com uma dúvida, quem traiu Angel? já que logo após ele ser preso por Mapache, ao saber que ele roubou uma caixa que na verdade foi acordado com Pike, mas o personagem de Warren Oats diz que ele foi traído pela própria mãe, foi isto? e quando eles vão enfrentar Mapache, acho que é a música La Golondrina que é novamente ouvida ao fundo junto com a trilha ao ritmo de marcha? e se me permite mais uma pergunta, Pike mata 1º o alemão porque ele que os fez cair naquela situação? obrigado e novamente, parabéns pelo blog. abraço
Henrique