Marlon Brando atuou em 40 filmes em sua
carreira, sendo apenas quatro deles westerns. Curiosamente os três primeiros
são relacionados com o México. Depois de “Viva Zapata!” e de “A Face Oculta”,
Brando em meio a uma fase ruim de sua carreira aceitou trabalhar em “The
Appaloosa” (Sangue em Sonora) sendo dirigido pelo jovem diretor canadense,
então com 33 anos, Sidney J. Furie. Se Marlon Brando se acostumara a ditar
ordens para diretores renomados como Lewis Milestone, Edward Dmytryk e Joseph
L. Mankiewicz, é fácil imaginar o que se passou durante as filmagens de “Sangue
em Sonora”. Acontece que Sidney J. Furie tinha sua própria concepção de como
dirigir o filme e os choques foram inevitáveis, o que em nada contribuiu para
que esse western rodado em 1966 fosse melhor lembrado. Provavelmente Marlon
Brando jamais houvesse assistido a um western-spaghetti, mas Sidney J. Furie
certamente havia assistido aos westerns de Sergio Leone, visto o uso insistente
de técnicas criadas pelo diretor italiano para o gênero.
Brando e o cavalo Appaloosa roubado por John Saxon. |
O
roubo do cavalo Appaloosa - A história de autoria de Robert
MacLeod foi roteirizada por James Bridges em parceria com o experiente Roland
Kibee (roteirista de “Vera Cruz”) contando as dificuldades que o aventureiro Matt
Fletcher (Marlon Brando) encontra para se tornar um rancheiro. No passado Matt
foi caçador de búfalos, lutou na Guerra Civil e cansado dessa vida errante deseja agora encontrar a
paz criando cavalos da raça Appaloosa. Dono de um garanhão dessa raça ele chega
à cidade de Ojo Prieto e procura a igrejinha local para se confessar com o
padre e recomeçar a vida ‘limpo’ dos pecados cometidos. Matt esbarra no desejo
do aristocrático mexicano Chuy Medina (John Saxon), homem forte de Ojo Prieto,
que pretende comprar o Appaloosa de Matt, que não está à venda. Chuy Medina
acompanhado de seu capanga Lázaro (Emílio Fernández) rouba o animal e ainda
sevicia Matt deixando-o pendurado em uma árvore. Matt é libertado por Paco
(Rafael Campos) e Ana (Mirian Colón), casal de amigos camponeses mexicanos.
Matt parte então para Coclatán, ao encontro do ladrão para recuperar seu
Appaloosa mas é capturado por Medina e seus homens ganhando a oportunidade de
ser libertado se vencer Medina numa disputa de ‘braço de ferro’. O perdedor
será picado mortalmente por escorpiões venenosos que estão a cada extremo da
mesa da disputa. Matt é vencido por Medina, no entanto quebra uma garrafa e usa
o vidro cortando o local da picada para amenizar o efeito do veneno. Deixado
para morrer, Matt é ajudado por Trini (Anjanette Comer), uma namorada de Medina.
Trini carrega o corpo inerte de Matt até o rancho de um homem chamado Ramos
(Frank Silvera). Este usa como antídoto ao veneno uma poção feita com ervas e salva
a vida de Matt. Refeito Matt Fletcher se reencontra com Chuy Medina e num
confronto em que ambos estão armados com rifles Matt leva a melhor e liquida o
mexicano.
Objetos em maior evidência que os próprios atores... |
Dentes
à mostra - “Sangue em Sonora” é um filme realizado em ritmo
deliberadamente lento e não poderia ser diferente para comportar os famosos e
por vezes irritantes maneirismos de Marlon Brando. Some-se a isso alguns defeitos
graves, o maior deles a estética de filmagem imposta por Sidney J. Furie
fechando a câmara exageradamente nos rosto dos atores ou em objetos variados ao
melhor ‘estilo Leone’. E os atores no caso não são meros figurantes
estereótipos de mexicanos embriagados, mas atores do porte de John Saxon e
Emílio Fernández, ambos de reconhecido talento interpretativo. Em boa parte do
filme o que se vê são os dentes alvos de Medina e Lázaro, e mais os de Vesgo (Alex
Montoya), sorrindo desnecessariamente como se isso fosse a única coisa que eles
soubessem fazer. Quando não a câmara de Russel Metty, diretor de fotografia,
passeia com insistência capturando a beleza das paisagens e também roubando o
ritmo necessário que o filme poderia ter. Filmes mais lentos, mesmo faroestes,
não deixam de ser interessantes e bonitos e o próprio Brando demonstrou isso
com o seu excelente “A Face Oculta” em que dosou com perfeição ritmo, ação e
emoção. Mas em “Sangue em Sonora” tudo saiu errado.
Não, não é propaganda de dentifrício... Acima Emílio Fernández e Alex Montoya; abaixo Brando, como não poderia deixar de ser sofrendo uma tortura desta vez imposta por John Saxon. |
Alguns dos diálogos pobres do filme. |
Moscas
no pulque - Neste western não há uma só linha de diálogo inteligente
e que produza efeito, o que se percebe logo na confissão de Matt ao padre da
pequena igreja de Ojo Prieto, quando diz: “...não
quero mais problemas. Quero viver em paz com a bênção de Deus...”. Daí em
diante abundam em “Sangue em Sonora” os lugares comuns e ainda bem que Brando
interpreta um personagem de poucas palavras. Depois de levar à tela na década
de 50 textos brilhantes de Tennessee Williams, John Steinbeck (“Viva Zapata!”),
Budd Schulberg e Shakespeare, o personagem de Brando trava este inacreditável diálogo
com Vesgo : “É a primeira vez que visita
esta pulqueria (espécie de cantina)?
É um lindo lugar, não?”, pergunta Vesgo, ao que Matt responde: “Tem algumas moscas no pulque (bebida
mexicana), mas não são muitas”. O
ápice da falta de inspiração ocorre quando Matt explica a Medina porque quer
recuperar o cavalo e diz “... esse cavalo
índio significa muito para mim; se eu não for embora com ele, não irei sem ele”.
Mirian Colón e Frank Silvera |
Camponesa
eloquente - Com quase nenhuma ação e com diálogos pobres e insonsos,
poderiam salvar o filme as interpretações dos atores principais. Brando sem
nenhum esforço dá pequenas mostras de como seu personagem poderia ter sido
melhor explorado se justificado seu tormento interior, o que não acontece.
Ficam para John Saxon, apesar dos dentes à mostra, os melhores e mais naturais
momentos do filme, como o patrão que se vê humilhado diante de seus empregados.
E Saxon ofusca Brando na sequência dos escorpiões, toda ela preparada para mais
um pequeno show de interpretação de Brando. Emílio Fernández teria que esperar
por mais dois anos até que Sam Peckinpah extraísse dele a memorável composição
do General Mapache em “Meu Ódio Será Sua Herança”. Outro ótimo ator
desperdiçado é Frank Silvera (o ‘Huerta’ de “Viva Zapata!”) como o camponês
Ramos que, inexplicavelmente, se sacrifica e sacrifica algumas de suas queridas
cabras pelo desconhecido Matt Fletcher. O ator dominicano Rafael Campos é o
responsável pelo mais excessivo over-acting quando de seu reencontro com o
amigo ‘Matteo’, como ele chama o personagem de Brando. E a simplória Ana
(Mirian Colón), esposa de Paco, tem oportunidade de contestar com descabida
veemência e ilógica eloquência ao amigo Matt. Mas ninguém em “Sangue em Sonora”
e em centenas de outros faroestes consegue ser pior atriz que Anjanette Comer
em seu desnecessário personagem ‘Trini’, o rosto bonito que os produtores
exigem para agradar o público masculino. Após três ou quatro boas oportunidades
no cinema, Anjanette comprovou que jamais seria boa atriz e desapareceu em
apagadas participações em séries de TV.
Anjanette Comer (note-se que os enquadramentos de "Sangue e Sonora" cortam sempre pedaços dos rostos dos atores). |
Brando de poncho e sombrero. |
Brando
de poncho e sombrero – Há em “Sangue em Sonora” uma relação de
amizade entre Matt e o casal Paco-Ana. Claramente Matt se aproveitou, em outra
ocasião dos favores de Ana, a quem chama de querida, carrega no colo e abraça
de modo sensual. Mas a simplicidade, para não dizer pobreza, da história não se
permite a desdobramentos desse tipo, o que certamente enriqueceria o filme numa
situação insólita. Mirian Colón já havia atuado ao lado de Brando em “A Face
Oculta”, filme em que interpreta uma prostituta ruiva. Marlon Brando que já
estava visivelmente perdendo sua inglória luta contra a balança, disfarça em
grande parte do filme sua indesejada barriga com um poncho (anos antes de Clint
Eastwood na trilogia dos dólares, Brando usou um poncho na sua fuga para o
México em “A Face Oculta”). E Brando esperaria mais dez anos até voltar a
filmar outro western, o último de sua carreira e que foi “Duelo de Gigantes”,
sob a direção de Arthur Penn. Dos quatro westerns de sua filmografia “Sangue em
Sonora” é o mais fraco deles, enormemente distanciado de “A Face Oculta”, um
dos grandes filmes do premiado ator.
A sequência da disputa de força em que o perdedor será picado mortalmente; é a sequência mais lembrada de "Sangue em Sonora". |
Gostei da resenha, Darci, afora que não concorde
ResponderExcluircom tudo. Como você sabe, coloquei-o no meu top,
embora veja defeitos que me irritem muito nele. Concordo
- falando sem considerar em demasia meu gosto (ou mau gosto) -
que A Face Oculta, Viva Zapata! sejam melhores,
mas esse filme poderia ter rendido bem mais não
fossem algumas escolhas e problemas que teve de
enfrentar. Apesar de tudo, vejo-o como
vejo quase todos: feito diversão; e posso revê-lo
que sempre gosto de algumas coisas ali. Há clássicos,
filmes consagrados, porém, que vejo mas não sinto
saudade. Isso não parece certo, mas estou sendo
apenas sincero. Vou considerar a possibilidade de
falar um pouco dele no SC. Vai pelo menos alimentar alguma polêmica.
Abraço!
Olá, Vinicius
ResponderExcluirNão me recordava que sangue em Sonora era um de seus westerns favoritos. Fui ler de imediato seu comentário sobre o filme e me chamou a atenção sua observação quanto à dominação do personagem de Brando em relação ao casal de mexicanos. É exatamente isso e a discussão forte de Matt (Brando) com Ana (Mirian Colón) deixa claro que havia uma intenção de ambiguidade no roteiro, lamentavelmente não melhor desenvolvida. Um dos problemas de Sangue em Sonora, no meu entender é a batalha de maneirismos de Brando contra Sidney J. Furie e o diretor acaba levando a melhor e comprometendo o filme.
Um abraço do Darci
Foi um dos melhores filmes que já vi do Gênero.
ResponderExcluirO filme não intencionalmente provoca o efeito colateral de se assemelhar muito à realidade pelo fato de que os comportamentos dos personagens não serem roteirizados, ou seja padronizados. Esse desproporionalmente ou exageradamente surpreendentemente modo "amigo" desarrazoado da família mexicana ou empatia injustificável da família de mexicanos do rancho com Matt. Esse deslumbramento ainda existe, é real. Aqui no Brasil ainda se ri largamente sem sentido nenhum para amigos e estranhos, e é dessa forma infantil.
Por outro lado, me encanta essa coisa do filme de que nenhum personagem ostenta o glamour de ter esperança na vida.
São pessoas que vivem no meio ou embaixo da ponte entre dois nadas.
Tentando sonhar em um lugar nenhum.
Esse maniqueísmo religoso que aposta na razão humana de se construirem vidas em um contexto caótico de um deserto misérável de recursos como o de Sonora, deserto de pessoas e de idéias, tb foi extraordináriamente bem colocado pelo diretor.
O fato de Matt ser um herói ocasional, e não um heroi que voa,um hérvules, ou seuperman, ou que tenha algum dom ou algum mérito, foge do padrão.
Matt só mata na covardia ou na sorte para ter como prêmio a própria miséria, nada mais cult e antiamericano que isso.