3 de janeiro de 2014

MEU ÓDIO SERÁ SUA HERANÇA (THE WILD BUNCH), A OBRA-PRIMA DE SAM PECKINPAH


Westerns com alguma semelhança com
"Meu Ódio Será Sua Herança": "Vera Cruz",
com Gary Cooper e Burt Lancaster;
"Sete Homens e um Destino", na foto Charles
Bronson, Brad Dexter e Robert Vaughn;
"Os Profissionais", vendo-se Burt Lancaster,
Claudia Cardinalle e Woody Strode.
Abaixo Lee Marvin e Clint Eastwood em
"Os Aventureiros do Ouro".
A carreira de Sam Peckinpah como diretor parecia irremediavelmente encerrada em 1967 após os difíceis momentos que Sam viveu devido ao fracasso financeiro de “Juramento de Vingança” (Major Dundee). Em seu trabalho seguinte que foi “A Mesa do Diabo”, filme estrelado por Steve McQueen, Peckinpah foi despedido da direção dias após o início das filmagens. A via crucis do diretor continuou com “Assim Morrem os Bravos” (The Glory Guys), faroeste com roteiro escrito pelo próprio Peckinpah mas do qual ele foi também dispensado após começar a dirigir o filme. Destino parecido Peckinpah teria em “Villa, o Caudilho”, outro western que também que teve roteiro de sua autoria e que Sam dirigiria, isto até ser vetado por Yul Brynner. A única porta que se abriu para Peckinpah naquele momento foi quando o produtor Phil Feldman acenou com um projeto que teria Lee Marvin como astro e Sam como diretor. Lee Marvin estava no auge do sucesso e Feldman acreditava que a reunião dos talentos de Marvin e de Peckinpah resultaria num grande filme. A história de autoria de Walon Green e Roy N. Sickner, intitulada “The Wild Bunch”, foi roteirizada por Green e por Peckinpah, ficando com este a contribuição maior. Lee Marvin gostou do roteiro e  Phil Feldman imaginava repetir com “The Wild Bunch” o monumental sucesso de “Os Doze Condenados, especialmente porque, assim como no filme de Robert Aldrich, haveria a possibilidade de utilizar um elenco com muitos astros famosos. O roteiro se assemelhava em alguns pontos com os westerns “Vera Cruz”, “Sete Homens e um Destino” e com o recente “Os Profissionais”, todos sucessos de bilheteria. Uma decepção ocorreu quando Meyer Mishkin, o agente de Lee Marvin leu o texto de Green-Peckinpah e o achou ultraviolento, desaconselhando Marvin a atuar naquele filme e indicando ao ator a participação em “Aventureiros do Ouro” (Paint Your Wagon) pelo qual Marvin receberia um milhão de dólares. Para substituir Marvin foram cogitados Burt Lancaster, Robert Mitchum, Richard Boone, Gregory Peck, Charlton Heston, Sterling Hayden e James Stewart mas o papel de Pike Bishop acabou nas mãos de William Holden. Até hoje fica-se a imaginar se com Lee Marvin no papel principal “Meu ódio Será Sua Herança” (título nacional) teria resultado num filme melhor, algo que parece impossível.


Acima o The Wild Bunch chegando a Starbuck;
abaixo chegando a Agua Verde.
Ladrões de bancos na revolução mexicana - Em “Meu Ódio Será Sua Herança” o grupo conhecido como ‘The Wild Bunch’ liderado por Pike Bishop (William Holden) tenta um assalto ao banco da cidade de Starbuck, no Texas, quase fronteira com o México, em 1913. O bando, no entanto, é surpreendido numa emboscada por caçadores de recompensa, isto além de terem sido enganados ao roubarem do banco sacos contendo arruelas ao invés de dinheiro. Após sangrento confronto com os bounty hunters em que ambos os lados sofrem baixas e cidadãos inocentes são também mortos durante o tiroteio na rua principal de Starbuck, Pike e seus homens seguem para Agua Verde (México), passando antes pela vila de origem de Angel (Jaime Sánchez), membro do bando. O grupo de caçadores de recompensa é comandado por Deke Thorton (Robert Ryan) que segue obstinadamente os passos do The Wild Bunch, mesmo no México. Completam o bando selvagem sob as ordens de Pike, Dutch (Ernest Borgnine), os irmãos Lyle Gorch (Warren Oates) e Tector Gorch (Ben Johnson), além do velho Freddie Sykes (Edmond O’Brien) que fica na retaguarda das ações. O bando trava contato com o ‘General’ Mapache (Emílio Fernández) e seu exército que, alinhado com as forças do presidente ditador General Victoriano Huerta, luta para reprimir os revolucionários comandados por Pancho Villa. Pike e seus homens conseguem armas para Mapache em troco de uma recompensa de dez mil dólares em ouro. Como Angel é um villista, portanto contrário a Mapache, é considerado traidor, preso, torturado e morto. Esse fato ocorrido no quartel general dos contrarrevolucionários faz com que Pike, Duke, Lyle e Tector se decidam a enfrentar Mapache e seu exército de 200 homens. A luta desigual termina com a morte dos quatro norte-americanos não sem antes praticamente aniquilarem as forças de Mapache.

As inocentes crianças e a crueldade com os
escorpiões e formigas.
A maldade dos homens - Muito se escreveu a respeito de “The Wild Bunch” fazendo-se alusão ao filme ser uma metáfora à participação norte-americana na Guerra do Vietnã. No entanto Sam Peckinpah quis apenas contar uma história sobre bandidos, personagens por quem tinha grande admiração, sentimento que não nutria pelos míticos homens da lei. Atraído irremediavelmente pelos perdedores, os foras-da-lei do Velho Oeste num mundo que os excluía, Peckinpah focaliza com fascínio esses tristes personagens. As imagens iniciais do western de Peckinpah, com crianças brincando de forma tão inocente quanto cruel com escorpiões jogados vivos dentro de um formigueiro que depois é queimado pelas mesmas crianças, profetiza o que se verá a seguir. Pike Bishop e seus homens passam pelas crianças e estas os olham com um misto de receio e admiração. Os homens do bando selvagem são como escorpiões que lutam desesperadamente para sobreviver em meio aos insetos que os devoram para saciar a maldade das crianças. Para Sam Peckinpah a maldade é inata ao ser humano, mesmo quando ainda em formação e depois desenvolvida na vida adulta onde não há seres inteiramente bons, o que se vê em “Meu Ódio Será Sua Herança”. Todos de alguma forma fazem uso da violência de forma variada e sob pretextos diversos.

William Holden e Robert Ryan
Personagem trágico - O roteiro de “Meu Ódio Será Sua Herança” alterna momentos de ação com outros de reflexão por parte dos decadentes assaltantes de banco. O bando selvagem exibe sua capacidade de colocar em prática planos traçados com competência por Pike Bishop e em suas reflexões os diálogos expõem o desolamento diante da falta de perspectivas e a ambiguidade moral de seus valores. Dutch é o mais digno do bando e ouve Pike lhe dizer com cinismo que “Dez mil dólares cortam muitos laços de família” em referência à luta de Angel pela causa de seu povo. Dutch é também ingênuo ao acreditar que os oprimidos aldeões amigos de Angel sejam capazes de reagir quando diz a Pike: “Espero que um dia esse povo chute ele (Mapache) e os demais para o túmulo”. E no próprio bando não se preza muito a lealdade, especialmente por parte dos irmãos Gorch que questionam a todo instante a liderança de Pike Bishop ou a importância de Angel e do velho Sykes. Pike Bishop e Deke Thornton (líder dos mercenários caçadores de recompensas) que foram amigos em outros tempos se respeitam e lutam contra seus conflitos internos. Quando Bishop lembra que deve-se respeitar a palavra empenhada, mais uma vez Dutch esclarece com sabedoria que "o que conta não é a palavra dada, mas para que você empenha sua palavra". Bishop é o mais atormentado dos dois pelos fracassos que acumulou em sua vida de aventuras inclusive de ordem sentimental. Envelhecido, triste e sem esperança Bishop é um personagem trágico que vê sua redenção no enfrentamento a Mapache, levando consigo seus três companheiros na missão suicida. Conseguem, finalmente, em suas vidas tornarem-se homens de verdade e não meros bandidos em busca de uma desonrosa sobrevivência.

O inferno toma conta de Starbuck (acima);
abaixo Mapache Emílio Fernández) é atingido.
Apuro técnico - Muito criticado e mais lembrado pela excessiva violência das sequências de ação, “Meu Ódio Será Sua Herança” é o ápice da técnica cinematográfica alcançada em um faroeste. Os primeiros 15 minutos com o pandemônio em que se transforma a rua principal de Starbuck e o derradeiro quarto de hora com a épica batalha travada no quartel general de Mapache são momentos antológicos do cinema. Os ângulos de posicionamento das câmaras, o uso de slow-motion em velocidades variadas, o realismo das balas perfurando corpos humanos, o ritmo sôfrego e alucinante e os cortes para as feições humanas desesperadas compõem uma das mais ricas aulas de cinema desde que Orson Welles legou ao mundo seu “Cidadão Kane”. O espectador praticamente sem fôlego só volta a respirar quando urubus pousam sobre o aqueduto do forte espreitando as centenas de cadáveres e atrevem-se a dilacerar corpos inertes. Do lado de fora, sentado e com o olhar desolado o solitário Deke Thornton passivamente vê a escória que são seus homens carregarem os despojos arrancados aos mortos. Cenas poeticamente nauseantes que só um grande artista seria capaz de criar. Igualmente perfeitas e impressivas são as sequências eletrizantes do assalto ao trem seguida da perseguição e explosão de uma ponte com homens e cavalos caindo num rio. Desde “No Tempo das Diligências” um western não inovava e emocionava tanto.

Feições ensandecidas de Bo Hopkins acima
e L.Q. Jones e Strother Martin (abaixo).
A inspiração de Peckinpah - A violência que é sempre repulsiva adquire em “Meu ódio Será sua Herança” a forma admirável de um balé no inferno. Os personagens psicopatas de Peckinpah, mais que todos Coffer (Strother Martin) e T.C. (L.Q. Jones), odiosos como Harrigan (Albert Dekker), cruéis como o General Mapache, o Major Zamorra (Jorge Russek) e o Tenente Herrera (Alfonso Arau) previnem o espectador fazendo-o aceitar a extrema violência que explode na tela. Maior ainda o mérito de Peckinpah quando se sabe que, ao contrário de quase todos os diretores que aprenderam com Hitchcock, Sam não criou as memoráveis sequências através de storyboards (desenhos a partir dos quais se desenvolve uma filmagem). Peckinpah criava sempre sob a inspiração de momento e o que não lhe faltou em “Meu Ódio Será Sua Herança” foi inspiração sob o intenso calor do México. E mais cresce o diretor ao conceito do espectador quando se sabe que Peckinpah utilizou 330.000 pés de negativos para este filme, enquanto, por exemplo, George Stevens gastou um milhão e meio de pés de negativos para conceber seu pouco movimentado “Os Brutos Também Amam”. Assim como Stevens fez com “Shane”, Sam Peckinpah trancou-se na sala de edição com o editor Lou Lombardo para mostrar que as lições do russo Sergei Eisenstein não foram em vão, em impecável trabalho de corte e edição de seu filme.

Caminhadas memoráveis do The Wild Bunch.
Paixão pelo México - Apaixonado pelas coisas do México (estava casado à época com a mexicana Begonia Palácios), Peckinpah levou sua equipe para locações em Durango, Parras e Torreón, onde estavam ou foram construídosos cenários vistos em “Meu Ódio Será Sua Herança”. Pela voz de Angel, Peckinpah exorta o México dizendo que só não enxerga a beleza do México quem não possui olhos para ver. A excepcional cinematografia de Lucien Ballard se encarregou de capturar não só a árida beleza daqueles locais mas também da distribuição de até seis câmaras em algumas sequências, cada qual com uma velocidade diferente para atingir o realismo pretendido por Peckinpah. E o México se faz presente na bela trilha sonora musical criada por Jerry Fielding com a presença de temas tradicionais como “La Golondrina” e “La Adelita”. Peckinpah pediu a Fielding que compusesse uma trilha discreta, o mais distante possível da estridência do trabalho de Elmer Bernstein para "Sete Homens e um Destino". Se “Meu Ódio Será Sua Herança” é mais lembrado pela inesquecível caminhada de Holden, Borgnine, Johnson e Oates em direção à varanda onde estão Mapache e seus oficiais, não menos notável é a despedida do Wild Bunch ao sair da aldeia e se dirigir para Agua Verde ao som de “La Golondrina”. O filme se encerra com a retomada desse brilhante momento cinematográfico até o congelamento final da imagem anunciando o término da película. De excepcional qualidade também o trabalho de Edward Carrere na direção de arte e de Gordon Dawson na elaboração dos trajes dos muitos figurantes. Ambos elementos inestimáveis para que Peckinpah conseguisse demonstrar a pobreza do povoado e o contraste entre a ruidosa pompa de Mapache, de seus oficiais e consultores germânicos com a quase indigência daqueles que acreditavam no  ‘general’ demagogo com o uniforme repleto de medalhas.

William Holden, o alter-ego de Peckinpah
e o sorriso inconfundível deErnest Borgnine.
O alter-ego do diretor - William Holden relutou a princípio em usar o bigode que Peckinpah queria para o personagem Pike, mas acabou aceitando. No decorrer das filmagens Holden havia adotado até mesmo os maneirismos do diretor que conseguiu do veterano ator uma das melhores atuações de sua carreira. Borgnine brilha como não poderia deixar de ser gastando o Espanhol que aprendeu enquanto esteve casado com Katy Jurado. Robert Ryan apenas com seu olhar mostra porque se ombreia entre os melhores atores norte-americanos de todos os tempos. Ótimos Warren Oates e Ben Johnson. Edmond O’Brien está algo excessivo e Jaime Sánchez é o menos convincente de um elenco precioso. Demoníacos Strother Martin e L.Q. Jones, mas onde andava R.G. Armstrong que não interpretou o líder da Liga da Temperança, personagem que ficou para Dub Taylor. Expressiva a pequena participação de Bo Hopkins como jovem e sádico bandido. Emílio Fernández deliciosamente histriônico domina qualquer cena em que participa e o time de belas mulheres mexicanas é outro atrativo com destaques para Sonia Amelio e Aurora Clavel.

Peckinpah estudando a próxima tomada
de seu extraordinário filme.
Marco cinematográfico - Depoimentos de diversos participantes da produção de “Meu Ódio Será Sua Herança” perceberam durante as filmagens que faziam parte de um trabalho de dimensão maior sob a direção de Sam Peckinpah. Porém nenhum deles poderia calcular que participavam não apenas de um grande filme do gênero western, mas sim de uma extraordinária obra cinematográfica, um dos principais filmes da história do cinema. Orçado em três milhões e meio de dólares, o custo final praticamente dobrou e o público e a Academia preferiram naquele tempo a leveza de “Butch Cassidy”. O filme de Peckinpah não teve o reconhecimento merecido, ainda que não tenha desapontado totalmente junto aos espectadores, arrecadando no primeiro ano de exibição no mundo todo perto de 12 milhões de dólares. “Butch Cassidy”, que também fala do The Wild Bunch, arrecadou 50 milhões e dólares.  Em São Paulo “Meu Ódio Será Sua Herança” atingiu dez semanas consecutivas em exibição na sala de lançamento, o Cine Majestic. O tempo, no entanto, senhor da razão se incumbiu de transformar “Meu Ódio Será Sua Herança” em um filme estudado, admirado e reconhecido como marco cinematográfico, verdadeira e irretocável obra-prima.


Anúncios do lançamento de "Meu Ódio Será sua Herança" em São Paulo,
em maio de 1970; um dos anúncios diz que é 'O mais sangrento e
impressionante western jamais feito em Hollywood'.
A célebre caminhada de Pike, Dutch, Lyle e Tector em direção ao confronto final.

Tomadas de ângulos diversos da explosão da ponte com vários stuntmen e
seus cavalos sobre elas, num tempo em que não se usava efeitos de computação
gráfica e as filmagens eram feitas na raça, coragem e talento.

Momentos impressionantes do western de Sam Peckinpah: O olhar demoníaco de
Strother Martin; efeito de sangue jorrando de perfuração de bala;
Bo Hopkins estupra uma indefesa mulher; Mapache cortando a garganta
de Angel; o cenário dantesco do quartel-general de Mapache em Agua Verde.

Acima à direita Tector e Lyle divertem-se com prostitutas mexicanas;
Mapache sempre cercado de mulheres e bebidas; 
Teresa, o grande amor
de Angel; 
Zamorra e Herrera com o torturado Angel.

A metralhadora 'Al Browning 1917' refrigerada a água, trocando de mãos.

Revolucionária mexicana amamenta enquanto o bebê mexe nas balas do
baleiro da mulher, coisa de Sam Peckinpah; os alemães assessorando Mapache,
com Zamora (Jorge Russek) à direita; o Ford Modelo T de Mapache; corpo
de um guerrilheiro sendo devorado por um abutre, no final de "The Wild Bunch".

Um comentário:

  1. Prezado Darci
    Excelente análise.
    Assisti este filme, comprei o dvd e ainda assisto de vez em quando, foi uma
    indicação sua quando perguntei sobre o western com personagens que se redimem.Mas fiquei com uma dúvida, quem traiu Angel? já que logo após ele ser preso por Mapache, ao saber que ele roubou uma caixa que na verdade foi acordado com Pike, mas o personagem de Warren Oats diz que ele foi traído pela própria mãe, foi isto? e quando eles vão enfrentar Mapache, acho que é a música La Golondrina que é novamente ouvida ao fundo junto com a trilha ao ritmo de marcha? e se me permite mais uma pergunta, Pike mata 1º o alemão porque ele que os fez cair naquela situação? obrigado e novamente, parabéns pelo blog. abraço
    Henrique

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