O Dr. Aulo Barretti, hoje com 91 anos
de idade recém-completados em setembro último, assiste westerns há mais de 80
anos, desde que iniciou sua rotina dominical de frequentar o Cine-Theatro Santa
Helena, na Praça da Sé, em São Paulo. Isso aconteceu pela primeira vez por
volta de 1932 quando o menino tinha menos de dez anos de idade. E descobrindo o
cinema Aulo de imediato elegeu o seu ídolo maior, Buck Jones, até hoje o seu
preferido, secundado por John Wayne. Esses e outros mocinhos como Hoot Gibson,
Tom Mix, Ken Maynard, Bob Steele, George O’Brien, Tom Tyler e Tim McCoy o
pequeno Aulo conheceu em emocionantes ‘far-wests’ assistidos naquele lendário
cinema paulistano.
Acima a moeda vigente; abaixo os meios de transporte mais populares. |
Mesada
semanal de 2.000 réis - Aulo Barretti residia quase no final da Rua Manuel da Nóbrega, via pública então situada entre o ainda
inexistente Parque do Ibirapuera e a Avenida Paulista. Grande parte da área
onde hoje está o parque que é um dos cartões postais de São Paulo pertencia ao
Signore Leonardo Barretti. Esse imigrante italiano oriundo da cidade de Cosenza,
na Calábria, chegara ao Brasil em 1888 e adquirira aquelas terras semidesertas
por nove mil contos de réis no final daquele século. Damião Barretti, filho do
velho Leonardo, também nascido na Itália e que chegou ao Brasil com 16 anos,
casou-se e teve onze filhos. Quatro deles vieram a falecer e Aulo Barretti
ficou sendo o mais novo dos filhos de Damião Barretti. Aulo e seu irmão Adelmo,
três anos mais velho, aguardavam ansiosamente a mesada semanal de 2.000 réis
para cada um que o pai lhes dava. Como as notas obtidas no Colégio Santo
Alberto onde estudavam eram boas, a mesada era sempre certa. Com esse
dinheirinho no bolso os dois irmãos Barretti chamavam na casa vizinha o amigo
Pedro Domingues e subiam os três a Rua Manuel da Nóbrega em direção à Avenida
Paulista, onde tomavam o bonde ‘Avenida’ que os transportava até o centro da
metrópole, mais exatamente até o Largo São Francisco. Dali seguiam a pé até
a Praça da Sé, dois quarteirões adiante, e chegavam ao Cine-Theatro Santa
Helena para a sessão chamada ‘Vesperal’. Aos sábados e domingos aquele cinema
promovia pela manhã a sessão ‘Zig-Zag’ para crianças pequenas, à tarde a
‘Vesperal’ e à noite havia a ‘Soirée’, para adultos.
Cine-Theatro Santa Helena, um dos espaços mais requintados da capital paulista no início do século passado. |
O
‘Cine-Theatro Santa Helena’ - O histórico edifício denominado
‘Palacete Santa Helena’, construído pelo político Albuquerque Lins, então Presidente
do Estado de São Paulo, foi inaugurado em 1925. Um dos prédios mais famosos da cidade
e ao lado da Catedral de São Paulo lentamente construída, o majestoso ‘Palacete
Santa Helena’ era composto por cinco blocos com sete andares. Repleto de
esculturas em sua fachada e revestido
com mármore em seu interior, o edifício possuía diversas lojas e 276 salas que
eram alugadas. O destaque maior do ‘Palacete Santa Helena’ era o luxuoso
cine-teatro cujo requinte era superado na cidade somente pelo Teatro Municipal
de São Paulo. Decorado em estilo barroco, o Cine-Theatro Santa Helena lembrava
com suas frisas e camarotes os famosos teatros europeus. Porém após funcionar
nos primeiros anos como cinema lançador de filmes, o Cine-Theatro Santa Helena,
por decisão da Companhia Barone que o administrava, passou a exibir programas
mais populares. Nos anos 30 o Cine-Theatro Santa Helena era mais conhecido por Cine Santa Helena e ainda lançava e exibia
filmes mas eram películas que atraíam especialmente o público mais jovem. Nas décadas
seguintes esse cinema se especializou na programação de reprises, sendo uma das
salas exibidoras mais concorridas da cidade. No mesmo ‘Palacete Santa Helena’
passou a funcionar na parte inferior do prédio um outro cinema, o Cinemundi,
ainda mais popular que seu vizinho Cine Santa Helena. Em 1971 o ‘Palacete Santa
Helena’ foi demolido para dar lugar à gigantesca Estação Sé do metrô paulistano.
Duas vistas do Palacete Santa Helena por volta de 1930. |
Os ídolos do menino Aulo: Buck Jones e Frankie Darro; abaixo Frankie Darro com Tom Tyler e com Harry Carey. |
Buck
Jones e Frankie Darro - O desaparecimento daquele marco
arquitetônico da cidade de São Paulo só fez aumentar as lembranças de Aulo
Barretti. Formado em Medicina desde 1948, o médico-ginecologista tinha por
hobby adquirir filmes em 16 mm, todos faroestes, para projetá-los em sua
própria residência. Mais tarde o médico convidou alguns amigos para juntos
assistir às projeções e com isso o Dr. Aulo Barretti acabou criando em sua
casa, no ano de 1977, a Confraria dos Amigos do Western, da qual é merecidamente
o presidente vitalício. Aulo Barretti relembra que os filmes exibidos no Cine
Santa Helena no início dos anos 30 eram os mesmos projetados no Cine Pedro II,
cuja programação era similar. E a Companhia Barone, responsável pela
distribuição, programava também faroestes e filmes de aventuras nos Cines
Paulistano e Alhambra, que ele chegou a frequentar. Além de Buck Jones e demais
mocinhos que idolatrava, Aulo Barretti tinha um carinho especial por Frankie
Darro, que começou no cinema mudo como ator infantil, prosseguindo sua carreira
como mocinho de muitos seriados, faroestes e filmes de aventuras. Como os
programas duplos do Cine Santa Helena nem sempre eram compostos por um faroeste
e um filme de aventuras, a decepção era inevitável quando o outro filme era 'de
amor'. O trio de meninos sequer esperava pelo fim da sessão para ir embora por não aguentar aquela chatice. Quando
se tornou adolescente, já no ginásio e com a Família Barretti tendo se mudado
para a Rua Augusta, Aulo Barretti passou a frequentar assiduamente o Cine
Odeon, na Rua da Consolação. Esse cinema, com suas três salas de projeção, era
‘chic’ como se dizia na época, mas quase não exibia faroestes.
Página da revista 'A Scena Muda' com o jovem John Wayne. |
‘A
Scena Muda’ e ‘Cinearte’ - A Praça da Sé, na qual se localizava
o Cine-Theatro Santa Helena, distava aproximadamente doze quilômetros da Rua
Manoel da Nóbrega, onde moravam os irmãos Aulo e Adelmo Barretti. Eles e o
amigo Pedro optavam por retornar caminhando toda aquela distância para
economizar o dinheiro do bonde ‘Avenida’ que os levaria até a Avenida Paulista.
Mas a economia feita ficava toda numa banca de jornais da própria Praça da Sé, cujo
proprietário vendia números antigos das revistas ‘A Scena Muda’ e ‘Cinearte’ por 200 réis cada. Com
o dinheiro do bonde Aulo, Adelmo e Pedro compravam alguns números das revistas,
e voltavam para casa devorando as fotos dos mocinhos e seus cavalos estampadas nas
publicações. Depois de adulto Aulo Barretti encadernou dezenas de edições dessas
revistas as quais guarda com enorme carinho entre tantos livros sobre cinema
que possui. E as coleções de ‘A Scena Muda’ e de “Cinearte” de Aulo Barretti
nunca deixaram de aumentar, seja pelas edições que garimpava pelas bancas da
cidade, seja pelos presentes que os amigos como José Carlos Elorza lhe fazem, até hoje, das
antigas publicações.
O Parque do Ibirapuera, área que um dia pertenceu à família de Aulo Barretti. |
Antigo
dono do Ibirapuera - As propriedades adquiridas pelo avô
de Aulo Barretti, íam desde onde se situa hoje o Quartel General do II Exército
e o Círculo Militar na Av. Brigadeiro Luís Antônio até o Córrego Sapateiro,
onde se instalou a Assembléia Legislativa de São Paulo. O valor atual dessas
áreas são hoje incalculáveis. No entanto, quando no início dos anos 50 a
Prefeitura Municipal de São Paulo iniciou o processo de desapropriação da área
para a construção do Parque Ibirapuera, por falta de documentos registrados em cartório que
comprovassem devidamente a posse da área, nenhum valor foi pago à Família
Barretti a título de indenização. A ação movida na Justiça pela Família
Barretti perdurou por longos 20 anos, resultando ao final em ganho da Municipalidade. Aulo
Barretti recorda que seu avô cedeu ao Corpo de Bombeiros a área onde hoje
funciona o Quartel General do II Exército, lembrando ainda que os carros de
bombeiros eram movidos por tração animal, ou seja, puxados por burros. Bons
tempos aqueles em que o quintal de Aulo Barretti era o sítio de seu avô, onde
o menino brincava de mocinho e bandido personificando sempre Buck Jones. E
tempos ainda melhores porque todos os domingos ele vibrava no majestoso
Cine Santa Helena com as aventuras de Buck Jones e de tantos outros
mocinhos da tela.
Capas de revistas que o menino Aulo Barretti colecionou: acima Tom Mix, Buck Jones, Jack Hoxie e Fred Thomson; abaixo Buck Jones, John Wayne, Art Acord e Gary Cooper. |
Acima e abaixo cartazes de cinema indicativos dos tempos em que Aulo Barrettifrequentava o Cine Santa Helena e eventualmente o Cine Pedro II. |
Filme "Família Barrett", que nada teve a ver com os Barretti vindos da Calábria; esse filme foi exibido no Cine Odeon (Sala Vermelha), cinema frequentado por Aulo Barretti quando adulto. |
Que bom seria se o Dr Aulo ou os filhos vissem esta matéria . Uma grande homenagem ao cinéfilo,amigo e companheiro do CAW.
ResponderExcluirOlá, Darci!!
ResponderExcluirA história do Dr. Aulo se confunde com a do cinema na capital paulista e a do desenvolvimento desta cidade. E os textos ficam bastante interessantes com a sua forma romanceada de contar os fatos. Grande figura esse homem! Gostaria de saber como ele adquiria as películas em 16 mm. Foi provavelmente através dessas películas pessoais, além dos filmes vistos por ele no mítico Cine Santa Helena, que ele assistiu aqueles inúmeros filmes com Buck Jones, incluindo "O Cavaleiro Solitário" (1930), de Louis King, que ocupa o 10º lugar no Top-Ten Westerns dele. Filme que provavelmente ninguém mais tenha, a não ser ele (ou nem mesmo ele).
Um abraço!