O Apache Ulzana |
As tropas norte-americanas permaneceram
mais de dez anos no Vietnã, até a humilhante retirada ocorrida em 1973.
Reportagens, ensaios e livros tentaram explicar porque a potência detentora do
maior arsenal bélico do planeta não conseguiu vencer aquela guerra
aparentemente fácil de ser vencida. O conflito no Sudeste Asiático custou a
vida de 58.200 soldados do Exército dos Estados Unidos e perto de dois milhões
de vietnamitas entre mortos e desaparecidos. Este último número equivale a
menos de dez por cento do maior genocídio da história da humanidade, ocorrido
dentro dos Estados Unidos e executado em grande parte pela Cavalaria desse
mesmo Exército norte-americano. Mais de 20 milhões de índios que habitavam os
Estados Unidos foram exterminados na chamada guerra indígena, entre eles os
temidos Apaches Chiricahuas. Com “A Vingança de Ulzana” (Ulzana’s Raid),
western de 1972, o cinema conseguiu mostrar de forma alegórica a razão de os
Estados Unidos terem perdido aquela guerra. Considerado por alguns como um filme
reacionário e que justificava a presença norte-americana no Vietnã, “A Vingança
de Ulzana” tende a ser exatamente o contrário dessa tese. Assistido por
qualquer autoridade à época de seu lançamento, não seria exagero afirmar que
alguma contribuição esse faroeste deu para a tomada de decisão norte-americana
de ordenar a retirada de suas tropas do Vietnã, assumindo uma fragorosa derrota
contra um inimigo resignado que nem as armas químicas conseguiram vencer.
Alan Sharp (acima) e Robert Aldrich. |
Bruce Davison e Burt Lancaster; abaixo Joaquín Martinez. |
O
pensamento e a prática de Ulzana - Em 1872 os Apaches Chiricahuas foram
confinados na Reserva de San Carlos, localizada no Sudeste do Arizona e também
conhecida como ‘Quarenta Acres do Inferno’. Assim como havia feito Gerônimo na
verdadeira história, Ulzana (Joaquin Martinez), um chefe Apache consegue fugir
da reserva juntamente com outros oito guerreiros. O comando do Forte Lowell é
avisado e destaca uma tropa comandada pelo jovem Tenente Garnett DeBuin (Bruce
Davison) para recapturar Ulzana e os demais fugitivos. Para auxiliar Debuin
acompanharam o destacamento o veterano batedor McIntosh (Burt Lancaster) e o
batedor apache Ke-Ni-Tay (Jorge Luke). McIntosh, que é casado com uma índia
apache, é profundo conhecedor do pensamento e das práticas dos nativos. Por
outro lado o Tenente DeBuin, recém-formado por uma Academia Militar do Leste é neófito
em conflitos de qualquer espécie e a princípio rejeita ou aceita com relutância
os conselhos de McIntosh e Ke-Ni-Tay. Ulzana e seus guerreiros destroem com
crueldade propriedades de brancos que encontram por onde passam e Ulzana
cria uma tática para se apossar de parte dos cavalos da tropa. McIntosh percebe
a armadilha de Ulzana e orienta o Tenente DeBuin a simular haver caído na
cilada de Ulzana, conseguindo com a ajuda de Ke-Ni-Tay liquidar Ulzana e seus
bravos.
Na foto abaixo menino com a mãe morta pelos apaches que se afastam. |
A
repulsiva brutalidade apache - Impossível não assistir “A Vingança
de Ulzana” sem pensar no Arizona como o Vietnã e os Apaches como os Vietcongs.
O inimigo norte-americano no Vietnã era dificílimo de ser enfrentado e dizia-se
que o vietnamita amigo durante o dia era um vietcong à noite com suas práticas
de guerrilhas. Ulzana e seus oito guerreiros não se deixam ver, mas suas
atrocidades chocam, intimidam e despertam o ódio dos soldados. Selvagemente os
apaches estupram e desfiguram mulheres e torturam até a morte os brancos
capturados. As baixas entre os comandados por DeBuin vão se sucedendo e levando
a tropa ao desespero. A brutalidade de Ulzana é repulsiva e horroriza a todos,
exceto McIntosh que pacientemente explica ao jovem tenente que “os apaches são
caprichosos” para justificar os nativos deixarem viva uma criança em meio a sua
família massacrada. “Odiar os apaches
seria como odiar o deserto por não dar água”, diz mais adiante o velho
batedor. Solicitado a explicar a razão de tanto ódio, o apache Ke-Ni-Tay
responde laconicamente que “eles são
assim mesmo”. Depois esclarece que no modo de pensar dos apaches “quando um homem é morto, aquele que o matou
absorve seu poder; os homens liberam poder quando morrem, assim como o fogo
libera calor; quanto mais um homem sofre para morrer mais calor ele libera e
mais poder absorve quem o matou”. O jovem tenente, filho de um pastor de
igreja e com fé na religiosidade jamais entenderá a razão de ser de um apache.
Assim como os norte-americanos jamais entenderam o estoicismo vietnamita.
Richard Jaeckel; abaixo Ulzana antes de ser morto por Ke-Ni-Tay (Jorge Luke). |
Olho
por olho, dente por dente - Ao longo de “A Vingança de Ulzana” os
‘casacos azuis’ são humilhados pela inteligência dos apaches e pela precisão
militar de suas táticas. O idealista Tenente DeBuin percebe, por fim, o sentido
das palavras de seu comandante, o Major Cartwright (Douglass Watson), quando
este lhe diz que o General Sheridan preferiria morar no inferno que viver no
Arizona. Esse território somente deixaria de ser o referido inferno quando
bravos como Ulzana estivessem mortos ou conformados com a lenta extinção de seu
povo nas reservas criadas para eles, como a de San Carlos. Ulzana se recusa a
esse destino, preferindo se juntar a seus antepassados e às dezenas de milhares
de bravos que já haviam sido mortos. Lenta, tensa e dramaticamente “A Vingança
de Ulzana” choca o espectador ao fazê-lo compreender que um branco não pode
pensar como um apache. Pode, quando muito, aceitar sua forma de vida e mais que
isso, aceitar sua justa rebeldia diante de tudo que o homem branco lhe tirou. Esse
mesmo espectador pode sentir repulsa, asco mesmo dos ritos cruéis de execução
dos apaches; o que não pode, no entanto, é esquecer que violência maior foi o
sacrifício de nações inteiras de nativos. Diz o Sargento da Cavalaria (Richard
Jaeckel) ao Tenente DeBuin que a única passagem da Bíblia que ele considera
certa é a que diz “olho por olho, dente
por dente”.
Burt Lancaster |
A
carga da final da Cavalaria - Andrew Sarris, o brilhante crítico
do ‘Village Voice’ (editada em Nova York) elegeu “A Vingança de Ulzana” como um dos dez melhores
filmes norte-americanos de 1972. Edward Buscombe, Kim Newman e Howard Hughes
incluíram este western de Robert Aldrich em suas listas de dez melhores
westerns de todos os tempos. Críticos desse gabarito não podem estar errados e
assistir “A Vingança de Ulzana” é constatar que se está diante do melhor filme
norte-americano a tratar da questão dos índios, distante de qualquer
estereótipo ou condescendência. Filme admirável pela cinematografia de Joseph
F. Biroc explorando a aridez das regiões de Nogales, no Arizona e do Vale do
Fogo, em Nevada, fazendo com que a paisagem embruteça ainda mais os contendores. Filme estupendo pelas atuações dos atores, especialmente do mexicano Jorge
Luke, Richard Jaeckel, Joaquín Martinez (também mexicano), Bruce Davison e
muito acima de todos eles, como não poderia deixar de ser, o extraordinário
Burt Lancaster numa performance que está entre as melhores de sua carreira. Com
tantos altos e baixos em sua filmografia, muito da grandeza de “A Vingança de
Ulzana” se deve à direção Robert Aldrich. Compassadamente, fazendo com que a
cada sequência mais se perceba o sentido da vida para um apache. E
ironicamente, ao permitir um dos maiores clichês do cinema que é o toque de
trompete anunciando a carga da Cavalaria, ao final, seguindo-se a amargura do
moribundo McIntosh ao dizer ao Tenente que se anunciar daquela forma, alertando
Ulzana foi um erro..
O soldado Horowitz (Dean Smith) atira na senhora Ruseyker para que ela não seja estuprada; em seguida o suicídio para evitar a tortura. |
Versões
incompletas - A produção de “A Vingança de Ulzana” preparou diferentes
versões para diferentes mercados exibidores em razão da violência de algumas
sequências. A versão com 103 minutos contém cenas de extrema selvageria, entre
elas a repugnante visão da morte de Rukeyser (Karl Swenson) e de seu cão; o
suicídio do soldado Horowitz (Dean Smith) seguido de seu estripamento; a
emboscada final dos apaches com a tortura do soldado ferido continuamente
alvejado pelos apaches; os soldados sacrificando os cavalos para que os apaches
não se apossem deles. Sem essas cenas o filme perde a sensação de insanidade
que toda guerra transmite. Hoje, passados mais de 40 anos de seu término, a
Guerra do Vietnã se tornou simples referência histórica para quem não viveu
aqueles tempos. E “A Vingança de Ulzana” pode ser assistido sem que se trace
paralelo algum com aquele conflito. Conserva o filme de Aldrich a mesma
dimensão artística e a mesma força de denúncia dos acontecimentos que dizimaram
os Apaches Chiricahuas. Apologia da guerra contra os índios no cinema
norte-americano era um mote rompido inicialmente por
filmes corajosos como “Flechas de Fogo” e “A Passagem do Diabo” e cujo ciclo se
fecha admiravelmente com “A Vingança de Ulzana”.
Acima o fazendeiro Ruseyker (Karl Swenson) após cruel tortura; abaixo outro sitiante torturado até a morte; o cão de Ruseyker. |
Magnifico western. Digno de ter merecido um comentário neste blog. Aldrich mostrou que era um diretor de vários tipos de generos. Para ser revisto e descoberto por quem não conhece. A cena, ou melhor a sequencia da tortura do fazendeiro e o final são epicos. Gosto muito deste filme.
ResponderExcluirEsqueci de comentar a trilha de Frank DeVol (um injustiçado) que fez trilhas magnificas IMPERDIVEL este filme
ResponderExcluirFilme prá se rever e curtir !!
ResponderExcluirMemorável ator Hollywoodiano que eu assisti a dezenas de seus filmes.
ResponderExcluirUlzana foi um deles.
Belo Tributo a ele e todos os fãs que sem dúvida, merecem.
Parabéns amigão!
www.bangbangitaliana.blogspot.com
Excelente desempenho de Lancaster como um condutor experiente de semblante sério e poucas palavras que se alia ao jovem tenente Davison e sua cavalaria em uma perseguição difícil e desanimadora a Ulzana, o vingativo chefe Apache. Grande western com doses consideráveis de ação e violência acima da média.
ResponderExcluirExcelente texto, Darci!
Um abraço!
O mais fascinante filme a tratar da questão do índio. É a síntese entre o índio mau, alimentado por John Ford, em suas estória do Oeste e o índio anjo dos anos setenta em filmes como Pequeno Grande Homem e Quando é Preciso ser Homem. Pena que foi tão pouco divulgado. Luiz Armando Xavier Appel
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