Douglas Sirk; o autêntico Taza |
Seguindo a invectiva proferida pelo
General Philip Sheridan que dizia que ‘o
único índio bom é um índio morto’, Hollywood em raras ocasiões tratou o
índio com dignidade. Pior ainda se eles fossem Apaches. E justamente o chefe Apache
Cochise é quem foi mostrado em muitos filmes como índio bom (e ainda vivo)
aceitando os termos impostos pelos homens brancos. Quando se fala em Cochise
vem logo à mente a figura épica de Jeff Chandler que o havia interpretado em
“Flechas de Fogo” (Broken Arrow), de 1950 e em “O Levante dos Apaches/A Revolta
dos Apaches” (The Battle at Apache Pass), de 1952. Chandler encarnaria Cochise
ainda mais uma vez, embora em uma quase ponta, no western “Herança Sagrada” dirigido
por Douglas Sirk. Reverenciado como um dos grandes diretores de melodrama do
cinema norte-americano dos anos 50, o alemão Douglas Sirk dirigiu um único faroeste
que foi justamente “Herança Sagrada” que ele próprio considerava seu melhor
filme. A Universal Pictures tinha sob contrato o jovem Rock Hudson e vinha
apostando todas suas fichas para transformá-lo em astro escalando-o em
westerns, comédias e capa-e-espadas. Mas foi pelas mãos de Douglas Sirk, que
dirigiu Rock Hudson em nada menos que em oito filmes em cinco anos, que o ator
atingiu a condição de astro, sendo inclusive requisitado por George Stevens
para compor par romântico com Elizabeth Taylor na superprodução “Assim Caminha
a Humanidade”. Hudson avisou o estúdio que esta seria a última vez que
interpretaria um nativo, o que já havia feito em “Winchester 73” e que não
condizia com o status que começava a adquirir em sua carreira.
Rock Hudson, Rex Reason e Jeff Chandler; Rock Hudson |
Apache
pacifista - Cochise (Jeff Chandler) antes de falecer passa a condição
de chefe a seu filho Taza e o incumbe de prosseguir nas tratativas de paz
feitas com Washington através do General Crook (Robert Burton). Quem não aceita
a escolha de Cochise é Naiche (Rex Reason), também seu filho, que entende que
os Apaches devem seguir as ordens de Gerônimo (Ian MacDonald) outro chefe
Apache descontente com a vida na Reserva de San Carlos. Privados das terras de
seus ancestrais ao aceitar o tratado imposto pelos políticos de Washington que
os confina em local árido, os Apaches liderados por Gerônimo promovem ataques
aos homens brancos e à Cavalaria. Taza não transige em obedecer à promessa
feita a seu pai pois confia nos ‘túnicas azuis’, especialmente no Capitão
Burnett (Gregg Palmer), comandante da Reserva de San Carlos. Burnett faz de
Taza o líder de uma milícia armada formada por Apaches e incumbida de manter a
ordem na Reserva. Naiche une-se a Gerônimo e atacam uma unidade da Cavalaria
emboscando o Capitão Burnett e o General Crook. Quando estes pareciam prestes a
ser exterminados, Taza e seus liderados defendem as tropas e dominam os Apaches
comandados por Gerônimo e Naiche. Este morre em combate, Taza restabelece a
aliança ameaçada mas decide abdicar do posto que lhe foi conferido, despindo a
farda que vinha usando e preferindo voltar a ser somente um Apache.
Gregg Palmer, Robert Burton e Rock Hudson, este também abaixo |
Discurso
conformista - A Universal cortou sequências filmadas de “Herança
Sagrada” que mostravam Taza já casado com Oona (Barbara Rush) e sendo pai de
uma criança, o que certamente possibilitaria uma continuação da história em
outro filme, e, segundo o ideário vigente em Hollywood, com Taza recomendando a
seu filho a que fosse, como ele, um defensor da paz com os homens brancos. Sem
essas sequências este faroeste de Douglas Sirk ficou com a duração de apenas 79
minutos, quase a metragem de um western B. Mas mesmo tão curto, o diretor
alemão realizou um belo filme, independentemente da intenção de ser historicamente
evasivo na questão do quanto os Apaches perderam com o Tratado de Paz assinado
pelo guerreiro Cochise. E ainda refazendo a História como quando Taza tenta
convencer a um guerreiro e pergunta a ele: “Você
não cansou de lutar e fugir dos soldados, de roubar e matar, de sentir fome e
frio?” E Taza conclui dizendo: “Na
Reserva você terá cobertores quentes e alimentos”. Esse discurso
conformista e distante da realidade reflete o posicionamento do filho de
Cochise neste roteiro que isenta de qualquer responsabilidade a política do
homem branco com sua mão armada, a Cavalaria. Tal fato, por si só poderia
comprometer o western o que não acontece porque quando um filme é bom ele
supera até mesmo inconsistências desse tipo. E assim como John Ford já havia
feito em “Sangue de Heróis” (Fort Apache), o índio é mostrado de forma
simpática, tanto que Taza luta contra seus irmãos de sangue para honrar o
tratado que significaria o início do maior genocídio que a Humanidade conheceu.
Ou seja, Taza subverte a frase de Sheridan e passa a ser índio bom (e vivo)
porque endossa as ações do homem branco.
Rock Hudson |
Rex Reason |
Lanças
e flechas atirados no público - Rodado em 1953 para ser lançado no
processo 3.ª Dimensão, “Herança Sagrada” só chegou aos cinemas em 1954 quando a
3D já estava ultrapassada, dando lugar a outro processo, o Cinemascope, que
visava defender o cinema do inimigo chamado Televisão. E o que não falta neste
western são lanças, flechas e pedras sendo lançados em direção à câmera para
assustar o espectador, efeitos típicos do 3D. Porém, se algo tivesse que assustar
o público seria a violência de algumas sequências, violência inusitada naqueles
tempos. Uma mulher branca sendo alvejada em pleno peito por uma flecha Apache é
cena de raro e chocante realismo. Há ainda o assassinato frio e traiçoeiro dos
traficantes de armas, igualmente brutal. As sequências de combate são
excelentes, valorizadas pelo trabalho dos dublês e este faroeste é muito bonito
porque praticamente todo rodado em locações em diversas regiões de Utah. A
batalha final foi filmada no Jardim do Diabo, no Parque Nacional de Arches, em
Utah e o cinegrafista Russell Metty foi o responsável pelas belas tomadas de
“Herança Sagrada”.
Barbara Rush e Morris Ankrum |
Costume
Apache - Quase uma imposição hollywoodiana em westerns, temos
também a presença de uma linda mulher para gerar romance na história. Ela é
Barbara Rush interpretando Oona, filha de Grey Eagle (Morris Ankrum), um
inimigo de Taza. Grey Eagle quer que sua filha se case com Naiche que, assim
como ele, não aceita a paz oferecida por Washington e menos ainda viver na
reserva. Ao lado de Gerônimo são eles os vilões de “Herança Sagrada” e é Naiche
quem disputa Oona com o irmão. A subtrama amorosa um tanto frágil não rouba o
interesse da história bem conduzida por Douglas Sirk e aproveita para mostrar
um costume Apache que é o de ter o pai
da jovem pretendida a prerrogativa de ceder sua mão a quem lhe der os melhores
presentes, ignorando a vontade da filha.
Barbara Rush e Rock Hudson; Barbara Rush |
Rock Hudson |
Índios
brancos - Em alguns momentos são mostrados na tela índios de
verdade e o contraste com os atores principais é visível. Mais que isso, quase
cômico. Passam razoavelmente por índios apenas Morris Ankrum e Eugene Iglesias,
este portorriquenho de nascimento. E claro, Jeff Chandler, novaiorquino filho
de judeus com um tipo físico invulgar e fisionomia que lhe permitia interpretar
variados tipos étnicos, entre eles índios. Mas o cinema norte-americano não
tinha esses pudores e o público aceitava bem ver Rock Hudson e Barbara Rush (e
uma legião de outros atores e atrizes) com a pele escurecida por cremes. Afora
ser um ‘índio forçado’, Rock Hudson tem bom desempenho, mesmo deixando perceber
um certo incômodo por mais uma vez passar por nativo. Não demoraria muito para
Hudson comprovar que era bom ator saindo-se bem em dramas e em comédias.
O Pôster indicando 3.ª Dimensão |
Único
western de Douglas Sirk - Uma pena que Douglas Sirk não tenha
realizado mais westerns porque certamente o gênero é quem ganharia, a exemplo
de Delbert Mann, outro cineasta que incursionou pelo melodrama mas sem o êxito
do alemão. A Universal, estúdio no qual Sirk trabalhou bastante, foi um dos que
mais faroestes médios produziu com Audie Murphy como seu principal astro no
gênero. Douglas Sirk certamente teria feito westerns próximos aos de Budd
Boetticher quanto à densidade psicológica e à ação de boa qualidade como a
demonstrada em “Herança Sagrada”. Acontece que Randolph Scott andava bastante
ocupado...
Jeff Chandler e Rock Hudson; Barbara Burck; Barbara Rush e Rock Hudson ladeando o cinegrafista Russell Metty |
Boa reflexão sobre o western de Sirk, parabéns!!!
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