John Wayne e Natalie Wood |
Quando Ethan Edwards elevou a frágil e
assustada sobrinha acima de sua cabeça e abraçando-a lhe disse “Let’s go home, Debbie”, estava o cinema
sendo elevado a um momento maior de grandeza e poesia. Porém, ao longo das duas
horas deste faroeste, o autor da frase e do delicado gesto foi mostrado como o
mais sombrio e amedrontador personagem principal que um western jamais exibira
ou exibiria. De forma devastadora John Ford rompeu com os arquétipos de heróis
que o gênero criara e apresentou um homem não só rude e corajoso, mas e
principalmente neurótico, preconceituoso e por fim paradoxal no seu
comportamento. Na década de 50 acenderam-se nos Estados Unidos os
questionamentos sobre as injustiças sociais e, justamente em meio aos ainda
tímidos movimentos, John Ford realizou um western que mostrou cruamente a
realidade do pensamento dos norte-americanos. Tachado por muitos analistas como
um filme racista, em “Rastros de Ódio” o personagem principal (Ethan Edwards),
odeia os índios, para ele seres desumanos e sanguinários. Aos poucos, no
entanto, Ford mostra que Ethan pouco difere de Cicatriz, o feroz chefe Comanche
que destruiu a propriedade de seu irmão dizimando a família toda, ou quase toda.
Henry Brandon e Lana Lisa Wood |
A
longa busca - Três anos após o fim da Guerra Civil, Ethan Edwards (John
Wayne) que lutara pelo Exército Confederado, retorna ao rancho do irmão Aaron
(Walter Coy) que o acolhe friamente, ao contrário da cunhada Martha (Dorothy
Jordan) e dos sobrinhos. Convocados por Samuel Johnston Clayton, misto de
capitão dos Texas Rangers e reverendo, Ethan e seu sobrinho Martin Pawley
(Jeffrey Hunter) deixam a propriedade em perseguição a Comanches hostis. Percebendo
terem sido enganados pelos índios, Ethan e Martin retornam ao rancho que foi
devastado pelos índios liderados por Cicatriz (Henry Brandon), restando apenas
os corpos carbonizados. O chefe Comanche poupou e levou consigo, as irmãs Lucy
(Pippa Scott) e Debbie (Lana Lisa Wood), provocando em Ethan Edwards a decisão
de encontrá-las onde quer que estivessem. Ethan e Martin encetam uma busca que
dura cinco anos, durante a qual descobrem que Lucy foi morta e Debbie (Natalie
Wood) foi feita uma das mulheres de Cicatriz. Disposto a matar a sobrinha,
finalmente Ethan a encontra, deixando de lado sua obcecada determinação e
levando Debbie de volta para junto de uma família branca.
Vera Miles; John Wayne, Beulah Archuletta e Jeffrey Hunter |
Tomada
de consciência - “Rastros de Ódio” toca profundamente no tema do racismo
isto num tempo (década de 50) em que os índios haviam sido praticamente
dizimados pelos brancos, especialmente pelos soldados da cavalaria com seus
garbosos uniformes azuis. Conhecendo-se o pensamento liberal de John Ford, é
perfeitamente possível interpretar este filme como um libelo diante das
flagrantes injustiças sociais, passadas e contemporâneas, da América do Norte.
Ethan Edwards exala preconceito por todos os poros, não perdoando sequer seu
sobrinho por este ter sangue índio (1/6 Cherokee). Mas o próprio Martin Pawley,
com sangue predominantemente inglês como ele mesmo lembra, tem oportunidade de
demonstrar o desprezo pela infeliz índia Look (Beulah Archuletta), que
inadvertidamente se torna sua esposa segundo o costume dos índios. A doce
Laurie Jorgensen (Vera Milles) descendente de nórdicos e seu alegre pretendente
Charlie McCorry (Ken Curtis) não deixam por menos e igualmente expressam seus
preconceitos durante a leitura de uma carta enviada por Martin. A sequência
crucial deste western ocorre com Ethan Edwards abraçando a desonrada e maculada
(segundo seu código particular) Debbie e levando-a para um novo lar. Como faz
usualmente, John Ford deixa para o espectador decidir se o resoluto Ethan mudou
devido à lembrança de Martha transferida para Debbie em seus braços ou por uma
tomada de consciência que mesmo homens irracionais como Ethan podem vir a ter.
Walter Coy, John Wayne e Dorothy Jordan; Dorothy Jordan (abaixo) |
Triângulo
familiar - Obra de gênio realizada sem maiores pretensões, “Rastros
de Ódio” além de seu inequívoco aspecto social é um western deslumbrante em sua
beleza plástica. Cada fotograma, especialmente aqueles capturados no Monument
Valley, mais parecem pinturas extraordinárias com personagens do Velho Oeste em
movimento. Fosse apenas isso e este filme seria, como tantos, mero álbum de
magníficos cenários. Há, porém, nos gestos e frases de cada personagem a
sutileza que somente um diretor como Ford é capaz de incutir. Mesmo sem
diálogos, como na admirável sequência em que Martha acariciando o sobretudo de
Ethan demonstra o amor que sente pelo cunhado. Tão magnífico momento não
poderia ser melhor completado que com o olhar de desaprovação do
Capitão-Reverendo. Recorde-se que o incomum triângulo familiar não consta do
livro “The Searchers” de Alan LeMay, tendo sido criado por Ford e o roteirista Frank
S. Nugent com o objetivo de mais acentuadamente justificar a obstinada busca de
Ethan Edwards pela sobrinha. E Ford sabiamente ambíguo lança a dúvida se Debbie
seria apenas sobrinha ou filha mesmo de Ethan, reforçando essa questão com seu
afastamento por tanto tempo após finda a guerra. A hostilidade do execrável e
cobiçoso irmão Aaron perguntando a Ethan por que ele voltou se desmancha diante
das moedas que lhe traz Ethan, o que mais os contrapõem aos olhos de Martha. Fica
evidente que parte da reação de Aaron tem fundamento num passado que somente
ele, Martha e Ethan conhecem.
Dorothy Jordan e John Wayne; Ward Bond, John Wayne e Dorothy Jordan |
Western
racista? - A selvageria de Ethan e de Cicatriz são atenuadas pelas
imagens de esplendorosa beleza e Ford praticamente nada de violência coloca na
tela, apenas seus efeitos devastadores. O Mestre arrebata visualmente sem se
esquecer daquilo que precisa ser dito, como quando Martin Pawley ao se deparar
com o massacre de Washita River pergunta por que os soldados tiveram que matar
‘Look’ (Beulah Archuletta), concluindo: “Ela
nunca fez mal a ninguém”, frase que dever ser estendida a toda raça
vermelha exterminada pelos brancos, não só seus bravos guerreiros mas também
mulheres crianças e velhos. Cicatriz ao exibir os escalpos lembra que os
brancos mataram seus dois filhos e para cada filho que perdeu retira muitos
escalpos. A sede por sangue é justificada tanto pelos aniquilados nativos
quanto pelos brancos que querem expandir sua civilização. “Rastros de Ódio” não
é um filme racista, mas sim denuncia essa odiosa forma de pensamento.
John Wayne Jeffrey Hunter; Natalie Wood |
Na foto abaixo John Wayne |
‘Descuídos’
de John Ford - Com tamanha carga psicológica e social, “Rastros de Ódio”
é um fascinante western que contém belos momentos de ação, ainda que muitos
reparos a eles possam ser feitos pelos ‘descuidos’ característicos de Ford
durante as filmagens. Comumente filmando em ‘one-take’, o diretor entendia que
o público não iria se preocupar com pequenos detalhes, para ele irrelevantes,
mas que uma obra desta dimensão bem mereceria ter evitado. Entre erros
grosseiros de continuidade o mais gritante é a perseguição dos índios aos Rangers
e colonos, com os perseguidores num momento próximos poucos metros e em seguida
se distanciando inexplicavelmente. Ou ainda quando da carga da cavalaria contra
a tribo estranhamente desguarnecida sob inaceitável mudanças de luminosidade com
o uso de lentes? Uma sequência fácil de ser refilmada como a do índio morto
que, antes de ter os olhos alvejados por Ethan Edwards, respira saudavelmente
comprovam negligência que deve ser atribuída ao diretor. Mesmo diante da
imponência deste grande western é difícil fechar os olhos, como imaginava Ford,
a estes pormenores que, arrasariam qualquer outro filme mas não destroem
“Rastros de Ódio”. Perguntado pelo escritor Joseph McBride sobre este western,
Ford respondeu laconicamente: “É um bom
filme que rendeu um bom dinheiro e esse era o objetivo”. Seria até possível
imaginar que este seria um faroeste comum, ainda que dirigido por John Ford e
estrelado por John Wayne, o que por sis ó o diferencia enormemente. Ainda
assim, mesmo na versões recentes remasterizadas, lá está um inoportuno veículo
transitando com faróis acesos numa estrada à direita na sequência em que a
Cavalaria segue sobre a neve.
Em primeiro plano Ward Bond (acima) e Olive Carey (abaixo) |
Comicidade
duvidosa - Ford encontra espaço como não poderia deixar de ser para
mostrar a idealizada comunidade que gostava de focalizar em seus filmes. A
sequência de baile abrilhantada musicalmente pelo grupo vocal-instrumental Sons
of Pioneers é abruptamente interrompida pela chegada de Ethan e Martin, dando
lugar a um dos momentos de comédia, desta vez em forma de jocosamente
respeitosa luta. Mas é durante o casamento que é dita a irresistível frase “Foi uma boa festa de casamento,
considerando-se que não houve casamento...” (Ward Bond). Ou ainda quando
Ken Curtis pede a Jeffrey Hunter abraçado a Vera Miles: “Eu agradeceria se você soltasse a minha noiva”. Esses achados do
roteiro de Frank S. Nugent convivem com os momentos pretensamente divertidos,
alguns excessivos mesmo como a sequência da ‘cirurgia’ no traseiro do
Reverendo-Capitão ou a desprezível e nada engraçada atitude de Martin e Ethan
com a índia Look. Por outro lado, quem mais senão Ford poderia imortalizar Mose
Harper (Hank Worden) um dos mais marcantes e engraçados personagens secundários
de um western clássico?
O pós-casamento do matrimônio que não aconteceu |
John Wayne e Jeffrey Hunter |
Suprema
interpretação - Tantas e tantas vezes John Wayne mostrou ser bom ator
derrubando os argumentos que era sempre o mesmo nos filmes independentemente do
personagem que interpretava. Como Ethan Edwards o Duke tem o supremo desempenho
de sua carreira, emocionando como o vingativo, preconceituoso rude e irritadiço
ex-confederado que sensibiliza o espectador, não raro até às lágrimas, quando a
porta se fecha ao final excluindo-o da civilização que se forma, ele que é o
mais desajustado personagem dos westerns de John Ford. Wayne é tão majestoso e
poderoso quanto o próprio Monument Valley. Jeffrey Hunter tem igualmente o
melhor desempenho de sua carreira, mesmo sofrendo a inevitável intimidação de
Wayne. Glenn Frankell, autor do livro “The Searchers” sobre as origens do filme
diz com propriedade que a relação Ethan-Martin é uma reprodução de como era a
relação entre Ford-Wayne. Lembre-se ainda que no livro de Alan LeMay é Martin
Pawley e não Ethan Edwards o principal personagem. Henry Brandon mereceria
muito mais tempo no filme com sua impressionante personificação como o sinistro
Cicatriz ele que quando entra em cena traz consigo a ameaça e o medo. Ford não
era o que se costuma chamar de ‘diretor de atores’, pouco se atendo a minúcias
interpretativas, ainda assim extraía excelentes performances de seus atores que
magicamente e sem muitos ensaios entendiam o que o Mestre queria. Vera Miles
como Laurie Jorgensen é um exemplo disso. Estupendo ator característico, Ward
Bond é o responsável por um momento de pura arte interpretativa silenciosa na
sequência do enlevo de Martha antes da partida de Ethan. Natalie Wood está encantadora
como índia num pequeno papel aos 16 anos de idade. E com que satisfação se
assiste a um elenco perfeito com a veterana Olive Carey e Dorothy Jordan, esta
esposa do produtor Merian C. Cooper e ainda Harry Carey Jr., Walter Coy, Hank
Worden, Antonio Moreno e John Qualen.
A maravilhosa cinematografia de Winton C. Hoch |
Beleza
insuperável de imagens – Não inteiramente satisfeito com a
trilha composta por Max Steiner, John Ford recrutou o grupo Sons of Pioneers que
contribuiu bastante para a magnífica música de “Rastros de Ódio”. Curiosamente,
o premiado Steiner realizou um trabalho verdadeiramente memorável mesclando
instrumentos de percussão com os de sopro que tanto admira e criando a adequada
atmosfera sonora especialmente para sequências passadas no Monument Valley.
Adaptou ainda o maestro-compositor austro-húngaro diversas canções
tradicionais, destacando “Lorena” para o lírico encontro de Ethan com Martha e
a família. No início e final ouve-se “The Searchers”, composta especialmente
por Stan Jones para o filme de Ford. Destaque ainda maior na parte técnica fica
para a exuberante fotografia de Winton C. Hoch que faz de “Rastros de Ódio” um
espetáculo difícil de ser esquecido pela beleza de suas imagens, superando o
igualmente maravilhoso “Legião Invencível”, que teve também a cinematografia de
Winton C. Hoch. Após três prêmios Oscar da Academia de Hollywood por “Joana
d’Arc” (1948), “Legião Invencível” e “Depois do Vendaval”, Winton C. Hoch sequer
foi lembrado por este seu trabalho.
Texas Rangers no Monument Valley; o retorno à fazenda dos Jorgensen |
John Wayne e John Ford |
Obra
de arte cinematográfica - A cada revisão “Rastros de Ódio”
parece melhor, maior e mais importante. Não por outra razão é um dos filmes
mais estudados da história do cinema pela excepcional geração de cineastas
formada nos anos 70 e 80, diretores a quem muito se deve também ao status
adquirido por este filme de John Ford através dos anos. Senão o melhor filme já
feito, um dos melhores, conforme atestam tantas enquetes, entre elas as
decenais da revista inglesa “Sight & Sound”. A parceria Ford-Wayne que
resultou em tantos brilhantes filmes atingiu com “Rastros de Ódio” seu ponto
mais alto, inquestionável verdadeira obra de arte cinematográfica. Esta resenha
crítica foi feita para comemorar o 60.º aniversário do lançamento de “Rastros
de Ódio” no Brasil, fato que ocorreu em março de 1957. Outras postagens
abordando diferentes aspectos desta obra-prima de John Ford podem ser lidos
neste blog nos seguintes links:
http://westerncinemania.blogspot.com.br/2015/02/westerntestemania-n-33-rastros-de-odio.html
http://westerncinemania.blogspot.com.br/2015/02/westerntestemania-n-33-rastros-de-odio.html
Hank Worden, John Qualen e Olive Carey; John Wayne |
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAcabei de ler. Que lindo! Como sou letrista, observo não só o conteúdo, mas a estrutura textual. Ficou impecável. Consegui sentir a paixão em cada palavra. Amei, Darci! <3 Depois lerei as outras. :D Beijos! Vivi
ResponderExcluirO maior clássico de John Ford que ganhou uma crítica à altura. Adoro seu site. Abraço.
ResponderExcluirTexto brilhante.Parabéns.Sou fã do blog.
ResponderExcluireste filme caracteriza o ator John Wayne como um dos
ResponderExcluirmaiores atores de Faroeste de todos os tempos ,sua imponente altura 1.93m,fazendo uma silhueta num arco é digno,de uma homenagem póstuma deste grande ator,vejo o filme diversas vezes ,parecendo que estou dentro dele ,lembrando das aventuras de " Kit o Pequeno Sheriff ",revista em quadrinhos de Faroeste ,lançada na Itália, nos idos anos 50 ,traduzida aqui no Brasil,pela Editora Vecchi,rua do Resende 144 São Cristovão RJ Brasil,tenho todos os 442 exemplares das 4 séries
Quando fui ver este filme, fiquei com receio, porque poderia ser um filme que exalta os homens brancos em detrimento aos índios. Tomei um susto: O filme é de uma complexidade única, sem igual,e praticamente Ethan é um personagem que consegue ser ao mesmo tempo herói e um vilão sanguinolento. É Martin, o descendente de índios, quem é o verdadeiro herói do filme ( tanto que é ele quem mata Cicatriz), por ter mais caráter do que o personagem de Wayne. Mas isto não diminui o papel do Duke: Ver como ele trata a esposa do irmão, que o trata como marido, em cenas ternas, e a dúvida, maravilhosa coisa inserida no roteiro, de que Debbie pode ser filha de Ethan é algo incrível! O fato de Ethan a querer matar mostra a complexidade do filme, provando que é uma obra prima em diversos aspectos, tanto por mostrar horizontalidades e verticalidades que os personagens apresentam de forma jamais vistas. Uma obra prima!
ResponderExcluirAcho “Rastros de Ódio” um filme de uma complexidade absurda, como disse o Saulo, o tipo de coisa que só John Ford poderia fazer, e é reducionismo demais classificá-lo como um filme racista. Mas ele ainda tem tons racistas, sim.
ResponderExcluirUma das coisas que me chamam a atenção no filme é que paradoxalmente Ethan é que melhor conhece — e de certa forma respeita — os índios, o que é exemplificado na cena em que ele atira nos olhos do índio que encontram morto. De certa forma isso implica aceitação às crenças dele, apenas vistas de maneira antagônica.
Tanto Ethan quanto Scar têm motivos para odiar seus inimigos. Mas no final, o Ethan que aprendemos a odiar é o homem grande o suficiente para perdoar e aceitar a filha (eu realmente acredito que Debbie é sua filha, o que justifica inclusive a sua obsessão em encontrá-la), enquanto Scar está disposto a matá-la em nome do seu ódio.
E sobre a atuação de Wayne, você diz tudo: “é tão majestoso e poderoso quanto o próprio Monument Valley”
Ah, ia esquecendo: no Netflix, há um filme de 1920 chamado "The Daughter of Dawn". É um filme do qual uma única cópia foi feita e que só foi exibido publicamente uma vez, no ano em que foi feito. Ele é estrelado por ninguém menos que White e Wandada Parker, filhos de Quanah Parker (por sua vez filho de Cynthia Ann Parker, que inspirou a Debbie do filme).
ResponderExcluirA história de sua recuperação é fascinante, e pode ser encontrada aqui: http://www.kansas.com/news/local/article32805255.html