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18 de julho de 2016

AUDAZES E MALDITOS (SERGEANT RUTLEDGE), JOHN FORD E O RACISMO NA CAVALARIA


Woody Strode
Aos 65 anos de idade, em 1960, John Ford lutava contra aqueles que o consideravam um diretor em decadência. Após “Rastros de Ódio” (The Searchers), Ford realizou cinco filmes e nenhum deles recebeu a costumeira aclamação de público e crítica que o veterano diretor se acostumara a ter. Ainda assim Ford aceitou um desafio que seria filmar um western passado a maior parte dentro de um tribunal militar. No elenco desse filme intitulado “Sergeant Rutledge” (“Audazes e Malditos” no Brasil) não haveria nenhum grande astro para atrair os espectadores e pior ainda, seria um filme sobre racismo. Menos mal que “Audazes e Malditos” focalizaria a amada Cavalaria que Ford tão maravilhosamente retratou na sua ‘Trilogia’ sobre os ‘Blue Bellies’ e essa foi uma das razões que o levou a aceitar o projeto. Contou também na decisão de Ford o fato de revisitar o Monument Valley, cenário natural de algumas de suas obras-primas e onde seriam filmadas algumas sequências do novo filme. Ford teria ainda a oportunidade de reunir um elenco quase todo ele formado por gente que dirigira muitas vezes nas últimas décadas, membros de sua famosa ‘Ford Stock Company’. E 400 mil dólares por mais esse ‘job of work’ (trabalho), como ele costumava dizer.


Acima Toby Michaels deitada;
Woody Strode
.
Assassinatos no Forte Linton - Willis Goldbeck é o autor da história que originalmente transcorria na II Guerra Mundial sendo depois reescrita pelo mesmo Goldbeck e passando a ter como cenário o Velho Oeste nos tempos das batalhas entre índios e a Cavalaria. A adaptação contou com a colaboração do próprio Ford e de James Warner Bellah, este último autor das histórias utilizadas por Ford na ‘Trilogia da Cavalaria’. Em “Audazes e Malditos” a tropa da 9.ª Cavalaria sediada no Forte Linton é predominantemente negra e comanda o forte o Major Dabney. Este é assassinado na mesma noite em que sua filha Lucy (Toby Michaels) é estuprada e estrangulada até a morte. O Sargento Braxton Rutledge (Woody Strode), que é negro, é visto deixando da cena do crime e fugindo do forte a cavalo e passa a ser procurado. O Tenente Tom Cantrell (Jeffrey Hunter) com uma patrulha captura Rutledge na estação de trens em Spindle e o Sargento que está ferido é trazido ao Forte Linton, onde é julgado por um tribunal militar. Contra todas as evidências, Cantrell, que é o advogado de defesa, acredita na inocência de Rutledge, ao menos no que se refere ao estupro e morte da filha do comandante, mais ainda após presenciar um ato de heroísmo de Rutledge num ataque Apache quando poderia ter escapado da patrulha. O Capitão Shattuck (Carleton Young) é o advogado de acusação que quer ver o Sargento negro ser responsabilizado pelos crimes, porém Cantrell descobre quem é o verdadeiro assassino de Lucy Dabney, provando ainda que Rutledge matara o Major Dabney em legítima defesa, terminando o tribunal por absolvê-lo.

Woody Strode e o pelotão de soldados
búfalos comandado por Jeffrey Hunter.
Os soldados búfalos - As lutas pelos direitos civis agitavam a sociedade norte-americana no final dos anos 50. Antes de o cinema norte-americano refletir mais profundamente sobre a questão do racismo, John Ford abordou o tema com este western inteiramente inovador. Dois anos antes, em 1958, “Acorrentados” (The Defiant Ones) havia chocado o público ao ver na tela Tony Curtis e Sidney Poitier como dois fugitivos algemados um ao outro. Em 1962 seria Gregory Peck como advogado em “O Sol Nasce para Todos” (To Kill a Mockinbird) a retomar o assunto. Realizado entre esses dois importantes filmes, a abordagem de Ford com “Audazes e Malditos” se dá em uma história passada no 9.º Regimento de Cavalaria, que, juntamente com 0 10.º Regimento, era integrado em sua quase totalidade por soldados negros sob o comando de oficiais brancos. Eram os chamados ‘soldados búfalos’ assim apelidados pelos índios por cobrirem-se com peles para se proteger do frio. Com “Audazes e Malditos” Ford faz constar que não só brancos lutaram na Guerra Civil e na Guerra contra os Índios, mostrando que, ao término da Civil War e com a decretação do fim da escravidão, muitos negros ingressaram no Exército onde procuravam ser tão ou mais valorosos que os soldados brancos. John Ford corrige com este filme uma omissão sua e do cinema de modo geral ao lembrar dos negros, fazendo-o de maneira digna, especialmente por externar o racismo, declarado ou disfarçado que nunca deixou de existir na sociedade norte-americana. E também pela primeira vez numa grande produção um negro é elevado á condição de herói da Cavalaria. Anos mais tarde libelo igualmente contundente foi mostrado com “Tempo de Glória” (Glory), filme de Edward Zwick, de 1989.

Jeffrey Hunter e Woody Strode

Woody Strode e Constance Towers
Equívoco fatal - “Audazes e Malditos” é um drama de tribunal que envolve o espectador ao mesmo tempo em que clama contra o preconceito. Em cada pequeno gesto ou atitude dos personagens brancos Ford denuncia o comportamento insensível, quando não cruelmente racista dos brancos que participam da história, mais que todos, o advogado acusador Capitão Shattuck. Este trata inicialmente Rutledge não por seu nome, mas chamando-o de ‘negro’. Admoestado pelo advogado de defesa Cantrell e pelo Coronel Fosgate (Willis Bouchey), que preside o tribunal, Shattuck evita repetir o insulto até não resistir em sua fala final enfatizando o adjetivo ‘negro’, certo que havia comprovado a culpa de Rutledge nos crimes. Ford magistralmente induz o espectador a testar seu próprio preconceito na sequência noturna na Estação de Spindle quando Mary Beecher (Constance Towers) é impedida de gritar pelo gigantesco e ameaçador Sargento negro. Essa curta sequência angustiante parece interminável ao aparentemente confirmar ser Rutledge um homem capaz de atrocidades. Pouco a pouco a impressão se desfaz e passa-se a acreditar na inocência do acusado até que uma reviravolta mostra que Rutledge foi sim obrigado a matar o comandante do forte. O Major Dabney havia disparado duas vezes contra Rutledge, acertando-o, acreditando ter o Sargento matado sua filha. Bem elaborado, a princípio, o roteiro colocou Rutledge na cena do crime deparando-se com a jovem Lucy Dabney nua e morta. O Sargento cobre a moça e nesse momento surge o aturdido pai que julga ser o negro o autor da sevícia fatal, tentando então matá-lo e provocando a reação de Rutledge.

Constance Towers, Carleton Young e Jeffrey Hunter em primeiro plano;
à mesa Chuck Roberson, William Henry, Willis Bouchey, Walter Reed e Judson Pratt.

Jeffrey Hunter
Desfecho comprometedor - Hollywood sempre gostou de filmes de tribunais com as características reviravoltas que esse tipo de filme normalmente apresenta. “Doze Homens e Uma Sentença” (12 Hungry Men) e “Anatomia de um Crime” (Anatomy of a Murder) realizados respectivamente em 1957 e 1958 tornaram-se clássicos no gênero e seduziram o público pelo inesperado apresentado em suas histórias. A trama de “Audazes e Malditos” é bem desenvolvida, sendo menos feliz no entanto quanto à solução simplista apresentada para um caso altamente intrincado. E isso se dá com a descoberta do Tenente Cantrell provando que o casaco acusador, com as iniciais C.H., não poderia pertencer ao jovem e pequeno Chris Hubble (Ed Shaw). E o pai do rapaz, o comerciante Chandler Hubble (Fred Libby), ser tomado pelo peso de sua consciência e confessar abruptamente ser o verdadeiro autor do estupro e morte da jovem é um desfecho frágil e inconvincente. “Audazes e Malditos” é um western dramático sobre racismo exemplarmente dirigido por Ford e que no entanto não teve o desfecho merecido pela falta de maior inspiração dos autores do roteiro.

Woody Strode
O truque de John Ford - O que faz “Audazes e Malditos” um western notável é a interpretação de Woody Strode como o Sargento negro vítima do ódio racial. Sidney Poitier e Harry Belafonte foram inicialmente considerados para interpretar Rutledge, mas Ford pretendia um ator que desse ao personagem a necessária espontaneidade que dificilmente com Poitier e Belafonte teria. Além de ser fisicamente uma figura altiva, Strode, um ex-jogador de American Football, teve que se submeter a um dos conhecidos truques do velho ‘Pappy’ Ford para a sequência principal de Rutledge no filme que é quando pressionado pelo acusador Capitão Shattuck, sofrido ele expressa o mais comovente diálogo do filme: “Eu não era nada, era um negro escravo. A 9.ª Cavalaria se tornou o meu lar, a minha  verdadeira liberdade e a minha dignidade.” Woody Strode contou que na noite anterior à filmagem dessa sequência, Ford o avisou que havia alterado a escala e que ele poderia desfrutar dessa noite livremente, sendo acompanhado, entre outros, por Chuck Roberson e Cliff Lyons, que ajudaram Strode a entornar litros de cerveja e tequila. Às seis horas da manhã, sonolento e com dor de cabeça, Strode foi acordado e avisado que deveria estar no set para a filmagem da aguardada sequência. “Diga a Mr. Ford que eu não tenho a mínima condição”, avisou o gigante negro, que teve como resposta: “Ele quer você assim mesmo...”. O resultado foi uma cena inesquecível, a maior da carreira de Woody Strode e graças ao velho mestre e suas artimanhas.

Woody Strode em seu maior momento em "Audazes e Malditos".

Willis Bouchey
Elenco com veteranas atrizes - O mais conhecido nome do elenco de “Audazes e Malditos” é Jeffrey Hunter, em seu terceiro filme sob a direção de John Ford. Hunter desempenha a contento, dentro de seus limites, o mesmo acontecendo como Constance Towers, personagem criado para que a história tivesse um nada necessário romance. Carleton Young é o excessivamente agressivo advogado de acusação e o restante do elenco parece atuar à vontade, todos conhecedores daquilo que Ford desejava. É assim nas sequências de comicidade que o Mestre não abria mão como quando Willis Bouchey é acusado de haver saqueado Atlanta ou ainda pedindo água a Judson Pratt, momentos descontraídos de um filme tenso. E Ford deu oportunidade ao público de rever as veteraníssimas Billie Burke e Mae Marsh, bem como Ruth Clifford, tantas vezes presente em seus filmes. O decatleta Rafer Johnson, medalha de ouro na Olimpíada de Roma (1960) tem uma pequena participação como um dos ‘buffalos soldiers’.

Jeffrey Hunter e Chuck Hayward; Mae Marsh e Ruth Clifford;
Jack Pennick e Billie Burke; Shug Fisher e Hank Worden.

Sequências filmadas em estúdio com
painéis pintados ao fundo.
Cansaço ou displicência - Outro belo e emocionante momento deste western de Ford é quando a tropa homenageia a ímpavida figura do Sergeant Rutledge, ao som da canção “Buffalo Soldier”, de autoria de Mack David e Jay Livingston. Biógrafos diversos citam a displicência de Ford durante as filmagens, inclusive optando pelas facilidades do estúdio no qual foram rodadas muitas sequências noturnas, visivelmente com cenário de fundo pintado. Chame-se a isso de cansaço ou displicência, mas “O Homem que Matou o Facínora” (The Man Who Shot Liberty Valance), igualmente rodado por Ford, em sua maior parte, em estúdio em 1962 resultou num dos maiores westerns de todos os tempos. Bert Glennon, cinegrafista que trabalhou com Ford em inúmeros clássicos, foi o responsável pela bonita fotografia criando um clima de filme noir nas sequência passadas dentro do forte. No Monument Valley, cenário preferido de John Ford, foram filmadas algumas poucas sequências, uma delas o confronto entre a patrulha do Tenente Cantrell e os Apaches. Sem dúvida pouco para o domínio que o diretor tinha sobre aquele espaço, ordenando a volta rápida para a sala onde decorreu o julgamento do sargento negro.

Dívida quitada - “Audazes e Malditos” fracassou nas bilheterias, o que raramente acontecia com um faroeste de John Ford isto porque certamente o público não queria ver um western que tratava de racismo e sem nenhum astro de maior importância no elenco. Racismo era (e ainda é) uma ferida aberta e Rutledge bem diz no filme que “...não teria chance alguma de ser inocentado num tribunal de brancos”. Ford pagou com “Audazes e Malditos” uma dívida antiga que tinha para com os negros, assim como pagaria mais tarde um débito, este ainda maior, para com os índios com seu último western.
Ao lado cena final com Constance Tower e Jeffrey Hunter
observados por Jon Ford.

Woody Strode e Juano Hernandez

Constance Towers e Jeffrey Hunter

Acima e abaixo pôsteres de "Audazes e Malditos" sem destaque para Woody Strode.




Um comentário:

  1. Depois de 20 anos revi hoje esse muito bom faroeste do mestre Ford!

    Hunter está muito bem, e Strode ótimo!

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