Woody Strode |
Aos 65 anos de idade, em 1960, John
Ford lutava contra aqueles que o consideravam um diretor em decadência. Após
“Rastros de Ódio” (The Searchers), Ford realizou cinco filmes e nenhum deles
recebeu a costumeira aclamação de público e crítica que o veterano diretor se
acostumara a ter. Ainda assim Ford aceitou um desafio que seria filmar um
western passado a maior parte dentro de um tribunal militar. No elenco desse
filme intitulado “Sergeant Rutledge” (“Audazes e Malditos” no Brasil) não
haveria nenhum grande astro para atrair os espectadores e pior ainda, seria um
filme sobre racismo. Menos mal que “Audazes e Malditos” focalizaria a amada
Cavalaria que Ford tão maravilhosamente retratou na sua ‘Trilogia’ sobre os
‘Blue Bellies’ e essa foi uma das razões que o levou a aceitar o projeto. Contou
também na decisão de Ford o fato de revisitar o Monument Valley, cenário
natural de algumas de suas obras-primas e onde seriam filmadas algumas
sequências do novo filme. Ford teria ainda a oportunidade de reunir um elenco
quase todo ele formado por gente que dirigira muitas vezes nas últimas décadas,
membros de sua famosa ‘Ford Stock Company’. E 400 mil dólares por mais esse ‘job
of work’ (trabalho), como ele costumava dizer.
Acima Toby Michaels deitada; Woody Strode. |
Assassinatos
no Forte Linton - Willis Goldbeck é o autor da
história que originalmente transcorria na II Guerra Mundial sendo depois
reescrita pelo mesmo Goldbeck e passando a ter como cenário o Velho Oeste nos
tempos das batalhas entre índios e a Cavalaria. A adaptação contou com a
colaboração do próprio Ford e de James Warner Bellah, este último autor das
histórias utilizadas por Ford na ‘Trilogia da Cavalaria’. Em “Audazes e
Malditos” a tropa da 9.ª Cavalaria sediada no Forte Linton é predominantemente
negra e comanda o forte o Major Dabney. Este é assassinado na mesma noite em que
sua filha Lucy (Toby Michaels) é estuprada e estrangulada até a morte. O
Sargento Braxton Rutledge (Woody Strode), que é negro, é visto deixando da cena
do crime e fugindo do forte a cavalo e passa a ser procurado. O Tenente Tom
Cantrell (Jeffrey Hunter) com uma patrulha captura Rutledge na estação de trens
em Spindle e o Sargento que está ferido é trazido ao Forte Linton, onde é julgado
por um tribunal militar. Contra todas as evidências, Cantrell, que é o advogado de defesa, acredita na
inocência de Rutledge, ao menos no que se refere ao estupro e morte da filha do
comandante, mais ainda após presenciar um ato de heroísmo de Rutledge num
ataque Apache quando poderia ter escapado da patrulha. O Capitão Shattuck
(Carleton Young) é o advogado de acusação que quer ver o Sargento negro ser
responsabilizado pelos crimes, porém Cantrell descobre quem é o verdadeiro
assassino de Lucy Dabney, provando ainda que Rutledge matara o Major Dabney em
legítima defesa, terminando o tribunal por absolvê-lo.
Woody Strode e o pelotão de soldados búfalos comandado por Jeffrey Hunter. |
Os
soldados búfalos - As lutas pelos direitos civis
agitavam a sociedade norte-americana no final dos anos 50. Antes de o cinema
norte-americano refletir mais profundamente sobre a questão do racismo, John
Ford abordou o tema com este western inteiramente inovador. Dois anos antes, em
1958, “Acorrentados” (The Defiant Ones) havia chocado o público ao ver na tela
Tony Curtis e Sidney Poitier como dois fugitivos algemados um ao outro. Em 1962
seria Gregory Peck como advogado em “O Sol Nasce para Todos” (To Kill a
Mockinbird) a retomar o assunto. Realizado entre esses dois importantes filmes,
a abordagem de Ford com “Audazes e Malditos” se dá em uma história passada no
9.º Regimento de Cavalaria, que, juntamente com 0 10.º Regimento, era integrado
em sua quase totalidade por soldados negros sob o comando de oficiais brancos.
Eram os chamados ‘soldados búfalos’ assim apelidados pelos índios por
cobrirem-se com peles para se proteger do frio. Com “Audazes e Malditos” Ford
faz constar que não só brancos lutaram na Guerra Civil e na Guerra contra os
Índios, mostrando que, ao término da Civil War e com a decretação do fim da
escravidão, muitos negros ingressaram no Exército onde procuravam ser tão ou
mais valorosos que os soldados brancos. John Ford corrige com este filme uma
omissão sua e do cinema de modo geral ao lembrar dos negros, fazendo-o de maneira
digna, especialmente por externar o racismo, declarado ou disfarçado que nunca
deixou de existir na sociedade norte-americana. E também pela primeira vez numa
grande produção um negro é elevado á condição de herói da Cavalaria. Anos mais
tarde libelo igualmente contundente foi mostrado com “Tempo de Glória” (Glory),
filme de Edward Zwick, de 1989.
Jeffrey Hunter e Woody Strode |
Woody Strode e Constance Towers |
Equívoco
fatal - “Audazes e Malditos” é um drama de tribunal que envolve o
espectador ao mesmo tempo em que clama contra o preconceito. Em cada pequeno
gesto ou atitude dos personagens brancos Ford denuncia o comportamento
insensível, quando não cruelmente racista dos brancos que participam da
história, mais que todos, o advogado acusador Capitão Shattuck. Este trata
inicialmente Rutledge não por seu nome, mas chamando-o de ‘negro’. Admoestado
pelo advogado de defesa Cantrell e pelo Coronel Fosgate (Willis Bouchey), que
preside o tribunal, Shattuck evita repetir o insulto até não resistir em sua
fala final enfatizando o adjetivo ‘negro’, certo que havia comprovado a culpa
de Rutledge nos crimes. Ford magistralmente induz o espectador a testar seu
próprio preconceito na sequência noturna na Estação de Spindle quando Mary
Beecher (Constance Towers) é impedida de gritar pelo gigantesco e ameaçador
Sargento negro. Essa curta sequência angustiante parece interminável ao
aparentemente confirmar ser Rutledge um homem capaz de atrocidades. Pouco a
pouco a impressão se desfaz e passa-se a acreditar na inocência do acusado até
que uma reviravolta mostra que Rutledge foi sim obrigado a matar o comandante
do forte. O Major Dabney havia disparado duas vezes contra Rutledge,
acertando-o, acreditando ter o Sargento matado sua filha. Bem elaborado, a
princípio, o roteiro colocou Rutledge na cena do crime deparando-se com a jovem
Lucy Dabney nua e morta. O Sargento cobre a moça e nesse momento surge o
aturdido pai que julga ser o negro o autor da sevícia fatal, tentando então
matá-lo e provocando a reação de Rutledge.
Constance Towers, Carleton Young e Jeffrey Hunter em primeiro plano; à mesa Chuck Roberson, William Henry, Willis Bouchey, Walter Reed e Judson Pratt. |
Jeffrey Hunter |
Desfecho
comprometedor - Hollywood sempre gostou de filmes de tribunais com as características
reviravoltas que esse tipo de filme normalmente apresenta. “Doze Homens e Uma
Sentença” (12 Hungry Men) e “Anatomia de um Crime” (Anatomy of a Murder)
realizados respectivamente em 1957 e 1958 tornaram-se clássicos no gênero e
seduziram o público pelo inesperado apresentado em suas histórias. A trama de “Audazes
e Malditos” é bem desenvolvida, sendo menos feliz no entanto quanto à solução simplista
apresentada para um caso altamente intrincado. E isso se dá com a descoberta do
Tenente Cantrell provando que o casaco acusador, com as iniciais C.H., não
poderia pertencer ao jovem e pequeno Chris Hubble (Ed Shaw). E o pai do rapaz, o
comerciante Chandler Hubble (Fred Libby), ser tomado pelo peso de sua
consciência e confessar abruptamente ser o verdadeiro autor do estupro e morte
da jovem é um desfecho frágil e inconvincente. “Audazes e Malditos” é um western
dramático sobre racismo exemplarmente dirigido por Ford e que no entanto não
teve o desfecho merecido pela falta de maior inspiração dos autores do roteiro.
Woody Strode |
O
truque de John Ford - O que faz “Audazes e Malditos” um
western notável é a interpretação de Woody Strode como o Sargento negro vítima
do ódio racial. Sidney Poitier e Harry Belafonte foram inicialmente considerados
para interpretar Rutledge, mas Ford pretendia um ator que desse ao personagem a
necessária espontaneidade que dificilmente com Poitier e Belafonte teria. Além de
ser fisicamente uma figura altiva, Strode, um ex-jogador de American Football,
teve que se submeter a um dos conhecidos truques do velho ‘Pappy’ Ford para a
sequência principal de Rutledge no filme que é quando pressionado pelo acusador
Capitão Shattuck, sofrido ele expressa o mais comovente diálogo do filme: “Eu não era nada, era um negro escravo. A
9.ª Cavalaria se tornou o meu lar, a minha
verdadeira liberdade e a minha dignidade.” Woody Strode contou que
na noite anterior à filmagem dessa sequência, Ford o avisou que havia alterado
a escala e que ele poderia desfrutar dessa noite livremente, sendo acompanhado,
entre outros, por Chuck Roberson e Cliff Lyons, que ajudaram Strode a entornar
litros de cerveja e tequila. Às seis horas da manhã, sonolento e com dor de
cabeça, Strode foi acordado e avisado que deveria estar no set para a filmagem
da aguardada sequência. “Diga a Mr. Ford
que eu não tenho a mínima condição”, avisou o gigante negro, que teve como
resposta: “Ele quer você assim mesmo...”.
O resultado foi uma cena inesquecível, a maior da carreira de Woody Strode
e graças ao velho mestre e suas artimanhas.
Woody Strode em seu maior momento em "Audazes e Malditos". |
Willis Bouchey |
Elenco
com veteranas atrizes - O mais conhecido nome do elenco de “Audazes
e Malditos” é Jeffrey Hunter, em seu terceiro filme sob a direção de John Ford.
Hunter desempenha a contento, dentro de seus limites, o mesmo acontecendo como
Constance Towers, personagem criado para que a história tivesse um nada necessário romance. Carleton Young é o excessivamente agressivo advogado
de acusação e o restante do elenco parece atuar à vontade, todos conhecedores
daquilo que Ford desejava. É assim nas sequências de comicidade que o Mestre
não abria mão como quando Willis Bouchey é acusado de haver saqueado Atlanta ou
ainda pedindo água a Judson Pratt, momentos descontraídos de um filme tenso. E
Ford deu oportunidade ao público de rever as veteraníssimas Billie Burke e Mae
Marsh, bem como Ruth Clifford, tantas vezes presente em seus filmes. O decatleta
Rafer Johnson, medalha de ouro na Olimpíada de Roma (1960) tem uma pequena
participação como um dos ‘buffalos soldiers’.
Jeffrey Hunter e Chuck Hayward; Mae Marsh e Ruth Clifford; Jack Pennick e Billie Burke; Shug Fisher e Hank Worden. |
Sequências filmadas em estúdio com painéis pintados ao fundo. |
Cansaço
ou displicência - Outro belo e emocionante momento
deste western de Ford é quando a tropa homenageia a ímpavida figura do Sergeant
Rutledge, ao som da canção “Buffalo Soldier”, de autoria de Mack David e Jay
Livingston. Biógrafos diversos citam a displicência de Ford durante as
filmagens, inclusive optando pelas facilidades do estúdio no qual foram rodadas
muitas sequências noturnas, visivelmente com cenário de fundo pintado. Chame-se
a isso de cansaço ou displicência, mas “O Homem que Matou o Facínora” (The Man
Who Shot Liberty Valance), igualmente rodado por Ford, em sua maior parte, em
estúdio em 1962 resultou num dos maiores westerns de todos os tempos. Bert
Glennon, cinegrafista que trabalhou com Ford em inúmeros clássicos, foi o
responsável pela bonita fotografia criando um clima de filme noir nas sequência
passadas dentro do forte. No Monument Valley, cenário preferido de John Ford,
foram filmadas algumas poucas sequências, uma delas o confronto entre a
patrulha do Tenente Cantrell e os Apaches. Sem dúvida pouco para o domínio que
o diretor tinha sobre aquele espaço, ordenando a volta rápida para a sala onde
decorreu o julgamento do sargento negro.
Dívida
quitada - “Audazes e Malditos” fracassou nas bilheterias, o que
raramente acontecia com um faroeste de John Ford isto porque certamente o
público não queria ver um western que tratava de racismo e sem nenhum astro de
maior importância no elenco. Racismo era (e ainda é) uma ferida aberta e
Rutledge bem diz no filme que “...não
teria chance alguma de ser inocentado num tribunal de brancos”. Ford pagou
com “Audazes e Malditos” uma dívida antiga que tinha para com os negros, assim
como pagaria mais tarde um débito, este ainda maior, para com os índios com seu
último western.
Ao lado cena final com Constance Tower e Jeffrey Hunter
observados por Jon Ford.
Woody Strode e Juano Hernandez |
Constance Towers e Jeffrey Hunter |
Acima e abaixo pôsteres de "Audazes e Malditos" sem destaque para Woody Strode. |
Depois de 20 anos revi hoje esse muito bom faroeste do mestre Ford!
ResponderExcluirHunter está muito bem, e Strode ótimo!