Alguns historiadores do gênero western como
Buck Rainey consideram a década de 40 ‘Os Anos de Ouro’ dos faroestes. Tal
afirmação não se sustenta diante do sem número de excelentes filmes realizados
nos anos 50, período em que as figuras lendárias do Velho Oeste eram ainda
mostradas de forma romanceada pelo cinema. O revisionismo foi a tônica da
década seguinte com linhas gerais traçadas por Sam Peckinpah, que iria se
transformar no mais importante diretor de westerns daquele período. Entre 1961
e 1973 Sam Peckinpah fez sete westerns e alguns temas eram constantes em seus
filmes: lealdade, traição e o melancólico fim dos tempos daqueles homens rudes
com a chegada da civilização. Especialmente este último tema fascinava o
diretor e, apesar de recorrente, nunca foi tão magnificamente tratado como em
“Pistoleiros do Entardecer” (Ride the High Country). Tanto que alguns dos
últimos e melhores westerns que o cinema apresentou, como “Os Imperdoáveis”
(Unforgiven) e “Pacto de Justiça” (Open Range), devem muito ao filme de
Peckinpah que lhes serviu de inegável inspiração e influência.
Joel McCrea e Randolph Scott |
Traição
e resignação - Partindo de um roteiro escrito por N.B. Stone Jr., mesmo
sem crédito “Pistoleiros do Entardecer” foi praticamente reescrito pelo próprio
Peckinpah para contar ao seu estilo a história do reencontro de dois
envelhecidos pistoleiros. Steve Judd (Joel McCrea) é um ex-homem da lei que,
aposentado, é contratado para transportar razoável quantidade de ouro desde um
campo de mineração chamado Coarse Gold para o banco da pequena cidade próxima.
Para esse trabalho Judd convoca Gil Westrun (Randolph Scott) amigo que como ele,
quando mais moço, também percorreu o Velho Oeste mantendo a lei e a ordem.
Westrun apresenta ao antigo amigo o jovem que o acompanha chamado Heck Longtree
(Ron Starr) para ajudar na perigosa missão. A real intenção de Westrun e
Longtree é se apoderar do ouro, mesmo sabendo do compromisso assumido por Judd
com o banco. A caminho de Coarse Gold, os três passam a noite na fazenda de
Joshua Knudsen (R.G. Armstrong), viúvo e pai da jovem Elsa (Mariette Hartley).
Elsa foge do pai tirânico e se junta aos três homens para chegar a Coarse Gold
onde vai se encontrar com Billy Hammond (James Drury) com quem tenciona casar. Após
o casamento Elsa percebe ser impossível conviver com Billy e com os costumes
selvagens da família composta por mais quatro irmãos. Judd, Westrun e Longtree
sequestram Elsa das mãos dos Hammonds e iniciam a viagem de retorno. No caminho
Judd descobre os planos de Westrum e Longtree ao mesmo tempo em que são
atacados pelos Hammonds. O encontro ocorre na propriedade de Joshua Knudsen que
havia sido morto pelos Hammonds. No confronto Steve Judd é ferido mortalmente,
os irmãos são exterminados e Westrun e Longtree decidem cumprir a missão
contratada por Judd e levar o ouro ao banco.
Randolph Scott como 'The Frontier Lawman'; a manga puída de Judd. |
Integridade
versus ceticismo - O que faz de “Pistoleiros do
Entardecer” um filme perfeito não são apenas as muitas e esplendidamente concebidas
sequências de ação. Esses momentos são desfechos naturais dos conflitos que vão
se encadeando na brilhante narrativa de Peckinpah que cria personagens
incrivelmente humanos. Na composição de cada um dos personagens é que o filme
de 94 minutos ganha dimensão rara em faroestes. Steve Judd é um homem íntegro e
sofrido que após anos de trabalho mal recompensado praticamente nada conseguiu para
seu final de vida. Os punhos e o colarinho de sua camisa estão puídos e os
únicos bens que Judd possui são o cavalo, a sela com arreios de prata e um
relógio de dois dólares, como escarnece o amigo Westrum. Judd vê no sucesso daquela
que poderá ser sua última missão mais uma retribuição moral que financeira. O cético
Gil Westrun não se deu melhor que o amigo após tantos anos alugando seu
revólver para a Lei e ganha a vida fantasiado como ‘O Homem da Lei da Fronteira’,
misto de William F. Cody e Wild Bill Hickok. A cabeleira, bigode e cavanhaque
postiços lhe dão a imagem com que tenta impressionar os frequentadores da feira
em que se exibe. Ao contrário de Judd, Westrum vê no ouro a ser transportado apenas
um modo de ganhar dinheiro, mesmo que conseguido desonestamente. O cinismo e o
oportunismo de Westrum contrasta com a dignidade de Judd que não perdoa o amigo
mais ainda no outono de suas vidas.
Joel McCrea (com óculos para leitura) e Randolph Scott com a bota furada do ex-marshall interpretado por McCrea. |
Mariette Hartley com Ron Starr e com James Drury. |
A díficil
libertação feminina - Elsa Knudsen é um admirável retrato
de mulher do Velho Oeste, maltratada pelo pai intolerante e ansiosa por liberar
sua sexualidade reprimida. Mesmo vendo no casamento com um semi-desconhecido um
horizonte novo para sua vida, Elsa cede ao assédio do galante Heck Longtree,
relação frustrada pelo atento Judd. Pior destino é reservado à moça com o iminente
abuso sexual que os quatro cunhados Hammonds esperam praticar, o que não
acontece porque outra vez Judd e ainda Westrum se unem para salvá-la da curra.
Joshua Knudsen, vestindo-se como pastor, citando a Bíblia e vendo o pecado em
cada ser humano é um personagem ao qual Peckinpah recorreria em outros filmes.
O terrível grupo Hammonds mescla o psicopata Henry (Warren Oates), o abobalhado
Sylvus (L.Q. Jones), o infantil Jimmy (John Davis Chandler), o Elder (John Anderson),
todos submetidos à maldade de Billy (James Drury).
Os irmãos Hammond: John Anderson, James Drury e Warren Oates; Oates armado com faca; L.Q. Jones, John Anderson, James Drury e Warren Oates; L.Q. Jones e John Anderson. |
R.G. Armstrong rezando e assassinado. |
Casamento
num bordel - “Pistoleiros do Entardecer” é composto por um conjunto de
sequências marcantes, a primeira delas a reunião no jantar à mesa de Joshua
Knudsen que cita provérbios bíblicos rebatidos por Judd. Tem lugar um pequeno
duelo entre Knudsen e Judd que demonstra também conhecer a Bíblia. O inesperado
confronto é encerrado pelo irônico Gil Westrum que diz a Elsa: “Você cozinha muito bem. Apetite: Capítulo
Um”. Adiante uma antológica sequência de casamento realizada no bordel “Kate’s
Place” com as prostitutas compenetradas pela seriedade da cerimônia conduzida
por um inebriado juiz de paz (Edgar Buchanan). E a felliniana Kate (Jenie
Jackson), com seus mais de cem quilos cuida para que todos sejam felizes no lupanar
que dirige. A voracidade carnal estampada nos olhares dos selvagens Hammonds
prestes a seviciar a pobre Elsa completa a delirante sequência de casamento. Mesmo
sem exercitar a violência como o faria em filmes posteriores, Sam Peckinpah cria
momentos fortes, um deles Knudsen morto como se estivesse orando no túmulo da
esposa. Olhos esbugalhados e rosto perfurado por um tiro ao lado da lápide da
esposa com a inscrição: “Vou julgá-las
como mulheres adúlteras são julgadas. Eu darei a elas sangue em forma de fúria
e ciúmes”. E a discreta mas convincente morte de Sylvus alvejado por Longtree não
prenuncia a maestria do confronto final.
O bordel da Kate; Kate (Jenie Jackson) e as garotas generosas; Edgar Buchanan; os noivos Mariette Hartley e James Drury; Warren Oates querendo mais que beijar a noiva. |
Scott e McCrea |
O lirismo da
morte - Após trair a confiança do amigo Judd e vê-lo em inferioridade para
enfrentar os Hammonds, Westrun percebe que a lealdade vale mais que meros onze
mil dólares em ouro e retorna para ajudar o amigo. Judd e Longtree já estão
feridos e o reforço é providencial. Entrincheirados numa vala Judd e Westrun
resolvem enfrentar os Hammonds cara a cara, como nos velhos tempos. O código de
honra é entendido pelos Hammonds que aceitam o desafio e a aproximação lenta
cria a tensão com a câmara de Peckinpah vendo a cena do alto. Nada de mocinhos
mais rápidos e certeiros pois todos os homens são realisticamente alvejados,
Judd duas vezes mais e mortalmente; Westrun ferido no ombro é o único sobrevivente.
A edição é perfeita e resta Judd com um sopro de vida. O lirismo da derradeira sequência
é tocante, com Judd pedindo para não ser visto morto pelos jovens Longtree e
Elsa e com Westrun sentindo uma dor ainda maior pela perda do companheiro de
cavalgadas. Poucas vezes um western mostrou sequência tão triste, tão profunda
em seu significado e mais cinematográfica.
O duelo dinamicamente coreografado por Sam Peckinpah. |
Randolph Scott |
Randolph Scott
irrepreensível - Muito contribuiram para a grandeza de “Pistoleiros do
Entardecer” as belíssimas imagens do cinegrafista Lucien Ballard. O mesmo não
pode ser dito da trilha sonora do veterano compositor George Bassman, por vezes
altissonante, excessivamente intrusiva. Joel McCrea e Randolph Scott se
completam excepcionalmente. McCrea sempre discreto fica com o personagem sério
e dramático; Scott, para muitos um ator de uma só expressão, encerra sua
carreira como Gil Westrun com irrepreensível interpretação. E bastante engraçado,
fantasiado de Buffalo Bill ou quando repete a lição que Judd dá em Longtree,
ajudando-o a se levantar para desferir outro formidável soco. Mariette Hartley
foi uma felicíssima escolha de Peckinpah para a aturdida jovem perdida num
mundo masculino de personalidades tão díspares. Ron Starr destoa da qualidade
do elenco e entende-se porque não fez carreira no cinema apesar desta grande
oportunidade. Em compensação quase todos os coadjuvantes são perfeitos, com
destaque para Warren Oates entre os irmãos Hammonds. Edgar Buchanan como o
bêbado Juiz de Paz domina a tela nos momentos em que aparece, excelente como de
hábito.
Edgar Buchanan e Jenie Jackson; Mariette Hartley. |
Ron Starr sendo socado duas vezes: por McCrea e por Scott. |
Joel McCrea e Randolph Scott |
Peckinpah
no panteão dos maiores diretores - Para muitos “Pistoleiros do
Entardecer” é o melhor western de Sam Peckinpah mesmo realizado quando o
diretor ainda não exercitava sua criatividade estilizando as sequências brutais.
Peckinpah passou a ser chamado de ‘O Poeta da Violência’ enquanto outros
preferiam dizer que Bloody Sam era ‘O John Ford da Era Vietnã’. Com seus filmes
seguintes Peckinpah inscreveria seu nome no hall dos maiores diretores
norte-americanos do gênero ao lado de John Ford, Howard Hawks e Anthony Mann.
Sete anos depois deste seu segundo western, Peckinpah dirigiria aquele que é um
dos maiores filmes da história da 7.ª Arte, “Meu ódio Será Sua Herança”, cujas
sementes estão em “Pistoleiros do Entardecer”.
Joel McCrea e Randolph Scott; L.Q. Jones e Warren Oates. |
Prezado Darci,
ResponderExcluirExcelente análise de um dos melhores westerns de todos os tempos. Tudo foi dito..
Mario Peixoto Alves