Acima Sergio Corbucci e Albert Band; Joseph Cotten e Gordon Scott em "5 Pistolas de Sangue" |
O produtor-diretor Albert Band, francês
de nascimento, fez carreira nos Estados Unidos, onde chegou a ser ator (fez pequeno
papel em “A Glória de um Covarde”/The Red Badge of Courage). Mudando-se para a
Itália, Band escreveu, dirigiu e produziu em 1965 o western “5 Pistolas com
Sede de Sangue” (Gli Uomini dal Passo Pesante), lançado nos Estados Unidos como
“The Tamplers”. Nesse filme Joseph Cotten é um sulista que não aceita a derrota
e faz desse fato uma bandeira motivada por seu fanatismo. Gordon Scott é um dos
quatro filhos de Cotten e que contraria o pai. Parece que Band gostou do tema
pois no ano seguinte, em 1966, o utilizou em “I Crudeli”, “Os Cruéis” no Brasil,
faroeste que produziu. Para dirigir o novo western Band chamou Sergio Corbucci
que estourara com “Django”, sucesso que fez dele um diretor apenas mesmo famoso
que Sergio Leone no subgênero que arrastava multidões aos cinemas do mundo
inteiro. O mesmo norte-americano Joseph Cotten repetiu o tirânico sulista e
para interpretar seus três filhos foram contratados os espanhóis Julián Mateos
e Ángel Aranda e o italiano Gino Pernice. O principal papel feminino coube à
brasileira Norma Bengell que fora levada para a Europa após o grande êxito
obtido com suas participações em “Os Cafajestes” e “O Pagador de Promessas”,
filmes nacionais que ultrapassaram fronteiras. Só a presença de Norma bastaria
para tornar este filme de Corbucci obrigatório, além, é claro da assinatura do
consagrado diretor.
Acima María Martín e o caixão; abaixo Norma Bengell e Júlian Mateos |
Um
caixão cheio de dólares - O Coronel Jonas (Joseph Cotten),
ex-oficial do Exército Confederado, é um dos muitos sulistas que não aceitaram
a derrota que lhes foi imposta. Para prosseguir na inglória luta o Coronel
Jonas com seus três filhos ataca um comboio militar que transporta mais de um
milhão de dólares que o Governo substituiu por notas novas. Dizimado o pelotão
que escoltava o comboio, os sulistas se apossam do dinheiro e o escondem em um
caixão de defunto que supostamente transportava o corpo de um Tenente sulista
chamado Ambrose Allen. Kitty (María Martín) é uma prostituta que o Coronel
Jonas contratou para se fazer passar por sua filha, viúva do Tenente morto e
cujo destino seria um cemitério no Texas, sua terra natal. Ben (Julián Mateos),
Nat (Ángel Aranda) e Jeff (Gino Pernice) são os três filhos do Coronel Jonas,
sendo que Jeff mata Kitty quando esta tenta fugir com a pequena diligência com
o caixão dentro. Ben vai à cidade mais próxima e contrata Claire (Norma Bengell)
outra saloon girl para substituir Kitty como a viúva Allen. O grupo é procurado
pela justiça e no trajeto se defronta sucessivamente com uma patrulha que os
procura, com bandidos mexicanos, com uma tropa da União, com índios e com um
mendigo traiçoeiro. Jeff e Nat se desentendem e matam-se um ao outro, ferindo
no tiroteio o próprio pai que, ao chegar às margens do Rio Hondo descobre que o
caixão fora trocado e que o dinheiro se perdera. O Coronel Jonas morre ao
chegar ao Rio Hondo, restando vivos do grupo somente seu filho Ben e Claire
Acima Joseph Cotten, Gino Pernice e María Martin; abaixo Gino Pernice e Júlian Mateos |
Drama
e violência na medida certa - Mesmo repisando um tema já abordado recentemente,
“Os Cruéis” é um dos roteiros mais ricos dentre aqueles considerados
importantes entre os westerns spaghetti. Patriarcas em desavença com seus
filhos resultaram em inúmeros faroestes famosos, entre outros “Almas em Fúria”
(The Furies), “Duelo ao Sol” (Duel in the Sun), “A Lança Partida” (Broken
Lance), “Um Certo Capitão Lockhart” (The Man from Laramie) e “Da Terra Nascem
os Homens” (The Big Country), porém o roteiro de Albert Band e Louis Garfinkle
não se limita aos conflitos entre pai e filhos, narrando uma aventura
envolvente com suas reviravoltas imprevisíveis. Louis Garfinkle era um
roteirista norte-americano cujo trabalho mais célebre foi o script de “O Franco
Atirador”, pelo qual concorreu ao Oscar. Possivelmente deve-se a Garfinkel,
creditado como autor de diálogos adicionais, algumas das excelentes frases
deste western de Sergio Corbucci. Uma delas quando Claire exclama: “Basta de matar, basta de fugir, chega de
medo”, contrariando a tônica principal dos westerns spaghetti que sempre
foi a exacerbada violência. A narrativa mescla admiravelmente momentos mais
dramáticos que exploram psicologicamente os personagens com aqueles em que
Corbucci era um mestre, as sequências de ação. Com 90 minutos de duração “Os
Cruéis” deveria ser um pouco mais longo e peca justamente por seu final
apressado e mal desenvolvido, isto após absorver inteiramente o espectador em
sua maior parte.
Acima Joseph Cotten |
Pai
e filhos em guerra - O Coronel Jonas é um homem
enlouquecido em sua delirante determinação de formar um novo Exército
Confederado e com ele reverter a vitória dos unionistas. Diz que sua ação
promoverá “O início de uma nova era, um
recomeço da guerra perdida”. Diz ainda que “O Exército sob meu comando nunca se deu por vencido”. Não sem
razão Jonas escolheu uma salamandra como símbolo de sua tropa, réptil capaz de
se defender de seus predadores e matá-los com sua toxina. Citando Deus a todo
momento como guia de suas ações, quem rege os atos insanos do Coronel Jonas é o
inconformismo com a derrota que o embruteceu a ponto de agredir aqueles a quem
comanda, seus filhos inclusive, e matar impiedosamente quem não comunga com sua
causa. Dos três filhos de Jonas o preferido é Ben que silenciosamente reprova a
violência do pai, ao contrário dos sádicos Jeff e Nat. A maior simpatia por Ben
deve-se a não ser ele cobiçoso como Nat ou não se excitar facilmente diante de
uma mulher como Jeff. Num filme em que não deveria haver heróis, Ben é o único
homem íntegro e por quem Claire acaba nutrindo afeição. A longa jornada em
direção ao Texas faz com que se exacerbem as diferenças e a desagregação é
inevitável, com o pai opressor precipitando o fim trágico de quase todo clã. Em
meio a esses quatro homens emerge uma admirável personagem feminina, o que é
pouco comum em faroestes e menos ainda nos westerns spaghetti.
Joseph Cotten; Júlian Mateos, Gino Pernice e Ángel Aranda |
Norma Bengell |
Uma
Claire enternecedora - Enquanto Kitty é uma alcoólatra que
quase põe a perder em seu início o projeto do Coronel Jonas, Claire é uma
jogadora acostumada a lidar com homens de toda espécie como são os
frequentadores de saloons. Assim chamada e imaginada em homenagem à esplêndida
Claire Trevor de “No Tempo das Diligências” (Stagecoach) que interpretou a
digna prostituta respeitada por John Wayne, a personagem vivida por Norma
Bengell é uma mulher de sentimentos virtuosos e atitudes corajosas. É Claire
quem evita que o caixão seja aberto por um xerife, numa das melhores sequências
do filme. Por sinal quase todas sequências mais destacadas contam com a
presença da atriz brasileira. Em outro momento brilhante Claire se sensibiliza
diante do sargento cego que era amigo do verdadeiro Tenente Ambrose Allen.
Singularmente, a beleza física de Norma Bengell é bem explorada por Corbucci,
numa sequência em que ela sequer faz uso da irresistível sensualidade que a
tornou famosa. É ela ainda quem provoca a inesperada e decisiva mudança na
história ao se vingar do Coronel Jonas pedindo que o ‘corpo’ seja enterrado no
Forte Brent, onde o finado oficial prestara serviço. Claire sabe que com esse
pedido assinou sua sentença de morte, mas o imaginativo roteiro lembra, através
de Jonas, que Claire desconhecia a obsessão do Coronel que coloca sua causa
acima de tudo. Os diálogos entre Claire e Jonas estão, igualmente, entre os
melhores deste filme sempre com Norma Bengell perfeita.
Tentativa de estupro feita por Gino Pernice; Norma Bengell com Júlian Mateos |
Acima Aldo Sambrell; Al Mulock; abaixo Cláudio Gora |
Criativas
frases e situações - O caixão de defunto que abrigara uma
metralhadora no western anterior de Sergio Corbucci ganha em “Os Cruéis” um
simbolismo notável pois com ele são enterradas as insensatas esperanças de que
a guerra seja revivida. Dissipa-se assim a impressão de oportunismo no uso da
macabra caixa de madeira tão comum em westerns spaghetti. Se a sucessão de
frases marcantes – “Mortos já não têm com
que se apressar”, diz o padre; “Você
não respeita nem mesmo os vivos”, diz o mendigo. “Você é o homem honrado que atira numa bandeira branca”, diz o
bandoleiro pedro – ratificam ser “Os Cruéis” um western esmerado em seu
roteiro, a mão de Corbucci se faz presente nas boas sequências de ação. O
assalto ao comboio yankee totalmente dizimado que abre o western é o momento
maior da parceria Corbucci-Benito Stefanneli, este coordenador das cenas de
ação, mas há ainda a bem elaborada luta no saloon e outra entre os irmãos
dentro de um riacho. Menos criativos são o ataque dos bandidos mexicanos e o
rápido tiroteio entre os irmãos Nat e Jeff. Destaque-se a primorosa sequência
do enforcamento dos dois mexicanos e o humor negro do caixão que se abre e dele
rola o corpo inerte de Pedro (Aldo Sambrell), um dos mexicanos enforcados. A
bizarra, desnecessária e inconvincente presença do mendigo destoa do conjunto
do filme, bem como a morte do Coronel Jonas, elaborada sem inspiração por
Corbucci.
Acima Norma Bengell e Joseph Cotten; abaixo Norma com Benito Stefanelli |
Norma
Bengell, a melhor do elenco - Mesmo nas obras-primas
cinematográficas nas quais Joseph Cotten atuou, ele não deixou sua marca, pouco
lembrando-se de suas participações. Cotten era assim mesmo, um bom ator sem
maior carisma e com uma tendência a aborrecer o espectador com seus
personagens, quase sempre fracos e hesitantes. Um de seus melhores momentos no
cinema foi como o pusilânime e permissivo marido de Dorothy Malone em “O Último
Pôr-do-Sol”, personagem que lhe caiu como uma luva por seu estilo
interpretativo. Cotten que em “Os Cruéis” deveria ter o destaque maior no
elenco vê Norma Bengell se sobressair e literalmente roubar-lhe o filme. Norma
faz com que Claire entre para a galeria dos inesquecíveis personagens femininos
dos westerns. Gino Pernice é o melhor entre os três irmãos e a espanhola María
Martín se sai bem como a irritante Kitty. Mais uma vez Aldo Sambrell tem
participação pequena, ainda que da maior importância na trama, ele que é um
ótimo ator de quem muito mais poderia ser extraído. Al Mulock faz lembrar o
velho Walter Huston de “O Tesouro de Sierra Madre”, evidentemente sem o talento
deste.
O caixão fora da diligência; o caixão destroçado vendo-se Aldo Sambrell |
Norma Bengell e Júlian Mateos |
Sem
herói no título - Enzo Barboni foi o responsável pela
cinematografia e Leo Nichols (Ennio Morricone) assinou a trilha sonora musical.
Desta vez Morricone ficou distante de criar uma trilha memorável e o tema
principal salientando o trompete de Nunzio Rotondo é estridente e tedioso. O
melhor desta trilha musical Morricone deixou para a sequência final da
desesperada morte do Coronel Jonas, ouvindo-se o Coral de Alessandro
Alessandroni e a etérea voz de Edda Dell’Orso. É um daqueles casos em que a
música é mais forte que a imagem. Com “Os Cruéis” Sergio Corbucci abandonou a
prática de personagens fortes no título do filme – ‘Silenzio’, ‘Django’,
‘Ringo’, ‘Navajo Joe’ e ‘Minnesota Clay’. Com isso perdeu o grande poder de
atração que esses nomes faziam junto ao público e este seu western rendeu muito
menos nas bilheterias e nunca foi dos mais lembrados. Mas não se impressione com
isso o fã de faroestes pois “Os Cruéis” é um belo western em que o muito bom
roteiro e Norma Bengell tornam imprescindível.
Este filme foi gentilmente cedido pelo
cinéfilo e colecionador Thomaz Antônio de Freitas Dantas.
Norma Bengell |
Pôsteres italiano, norte-americano e alemão de "Os Cruéis" |
Olá, Darci!
ResponderExcluirÉ uma pena que Norma Bengell não esteja mais entre nós para conferir esta resenha onde ela é bastante elogiada, com todo merecimento. Ela certamente ficaria muito feliz, até porque provavelmente esta seja a única resenha brasileira feita sobre este injustamente esquecido filme. E também é uma pena que depois de sua participação tão boa neste western, ela não tenha participado de outros. Penso diferente de você a respeito da trilha de Morricone, que foi justamente o que me fez ter interesse em assistir este spaghetti. Tarantino também gostou bastante, já que utilizou a trilha em seu "Django Livre". Realmente este é um western de grande destaque entre os spaghettis, devido ao roteiro bem elaborado, às reviravoltas, uma ótima participação feminina e às frases de efeito, sendo assim merecia ter mesmo um reconhecimento muito maior.
Valeu, Darci!