A roteirista Leigh Brackett e Howard Hawks. |
Nos anos 60 Howard Hawks viu seu
prestígio diminuir com filmes de menor qualidade artística. O razoável “Hatari”
foi o melhor deles e parecia que a idade irreversívelmente avisava o diretor que
era hora de se aposentar. John Wayne, por seu lado, lutava para provar que
havia vencido o maior inimigo de sua vida, o câncer que lhe retirou um pulmão
em 1964. Ambos sabiam que a parceria entre eles num western era infalível como ocorrera
em “Rio Vermelho” (Red River) e “Onde Começa o Inferno” (Rio Bravo). Além dessa
confiança, havia o salário de 750 mil dólares mais porcentagem nos lucros do
filme que o Duke iria receber. Hawks escolheu a história “The Stars in Their
Courses”, de autoria de Harry Brown e entregou a Leigh Brackett, sua
colaboradora em outros filmes para escrever o roteiro. Com orçamento de três
milhões, oitocentos e cinquenta mil dólares, Howard e uma equipe de 150 pessoas entre atores e
técnicos rumou para Old Tucson, cenário para o filme que recebeu o título de
“El Dorado”. Leigh Brackett bem que poderia ter desconfiado que, pelas
incontáveis sugestões de Hawks, ele pretendia fazer um faroeste muito parecido
com “Rio Bravo” com o roteiro adaptado da história de Harry Brown. No decorrer
das filmagens a contrariada Leigh Brackett disse a Hawks que ele poderia ser
creditado como autor da história, o que o diretor somente não fez porque teria
de pagar os direitos não só a Harry Brown como também à Warner Bros., detentora
dos direitos cinematográficos de “Rio Bravo”. Afinal a história de “El Dorado”
não podia sequer ser chamada de semelhante pois era idêntica à de “Rio Bravo”,
com pequenas variações.
Acima Eward Asner ao lado de Jim Davis; abaixo R.G. Armstrong. |
Os
maus contra os amigos bons - Em “El Dorado” Bart Jason (Edward
Asner) quer se apossar das terras do fazendeiro Kevin MacDonald (R.G.
Springsteen) e para isso tenta contratar o pistoleiro Cole Thornton (John
Wayne). Um dos filhos de MacDonald atira inadvertidamente contra Thornton e é
ferido por este, cometendo suicídio a seguir. Thornton é amigo de J.P. Harrah
(Robert Mitchum), o xerife de El Dorado, e após conversar com este Thornton rejeita
a oferta de Jason que então contrata os serviços de Nelse McLeod (Christopher
George), pistoleiro tão famoso, rápido e certeiro quanto Thornton. O bando sob
as ordens de Bart Jason é numeroso mas o maior problema de J.P. Harrah não é
esse e sim a bebida, já que vive permanentemente alcoolizado. Cole Thornton
decide auxiliar o amigo xerife, contando para isso com a ajuda do jovem amigo
Mississippi (James Caan) e de Bull (Arthur Hunnicutt), veterano batedor. Em
luta desigual o quarteto enfrenta e derrota Jason e seus homens, permitindo que
a paz volte a reinar em El Dorado.
Christopher George |
Fugindo
da tragédia - As filmagens de “El Dorado” já haviam se iniciado com as
sequências dos encontros de Thornton com Jason e com MacDonald e a morte de
Luke MacDonald (John Crawford). Foi então que Howard Hawks decidiu mudar tudo.
Hawks não queria que seu filme se tornasse uma ‘tragédia grega’ como estava se
encaminhando a partir do roteiro de Leigh Brackett. Do encontro em Sonora entre
Cole Thorton com Mississippi em diante o tom de “El Dorado” muda passando a ser
um western com situações mais agradáveis e com a maior parte das sequências
noturnas. Hawks começava os trabalhos às 17 horas e não raro as filmagens
avançavam até três ou quatro horas da madrugada. O diretor a cada dia
apresentava aos atores novos diálogos, a ponto de o ator Robert Donner ter
declarado que “o roteiro do filme era escrito na areia de Old Tucson”. Muitas
das falas dos atores principais, justamente as mais espirituosas, foram criadas
nos próprios sets de filmagem, aproximando “El Dorado” de um tom de comédia.
Questionado por Leigh Brackett que estava se autoplagiando em relação a “Rio
Bravo”, Howard Hawks respondeu que o que tinha dado certo poderia sim ser
repetido. E disse isso com a plena concordância de John Wayne.
Michele Carey e James Caan |
O
talento do diretor - Contados esses episódios de como se
desenvolveram as filmagens de “El Dorado”, fica a impressão que não havia um
rumo definido para o filme e que fatalmente este western redundaria num fiasco.
Entra em cena então o talento do diretor, secundado por um grupo de excelentes
atores, mostrando-se capaz de realizar um filme movimentado e divertido. Nem o
fato de o espectador ‘reconhecer’ a história prejudica “El Dorado” mesmo porque
este remake é mais dinâmico que o modelo produzido em 1959, com um número maior
de cenas de ação bem encenadas por Hawks. Muito mais espaço ganhou o personagem
do jovem membro do quarteto (Mississippi), habilidoso atirador de facas para
quem foi criado até mesmo um interesse romântico, Joey (Michele Carey), a filha
do ameaçado fazendeiro MacDonald. E a luta do xerife J.P. Harrah contra o vício
do álcool consegue ser ao mesmo tempo dramática e engraçada.
Duke e Mitchum com as bengalas dos lados errados. |
Heróis
alquebrados - Recuperado do câncer, John Wayne interpreta um personagem
vulnerável e que, atingido por uma bala que se aloja próximo à sua coluna,
sofre espasmos que lhe causam paralisia, resultando numa queda de cavalo e
impossibilidade momentânea de sacar com a mão direita. E o ébrio xerife vivido
por Robert Mitchum, forçado a usar uma muleta devido a um ferimento, está longe
da figura clássica de um heroico defensor da lei e da ordem. Aparentemente mais
velho e fisicamente perfeito é o excêntrico Bull com seu trompete, enquanto
Mississippi, que usa sua faca como ninguém, mal sabe empunhar um revólver. Os
quatro repetem o tema da amizade masculina comum aos filmes de Howard Hawks,
desta vez com a presença de uma personagem feminina resoluta e audaciosa, Joey a
filha do fazendeiro MacDonald. As nuances divertidas de “El Dorado” são aquelas
que, percebe-se, não constavam do roteiro original, como Mississippi repetindo
seu bizarro nome (Alan Bedillion Trehearne) ou o xerife J.P. Harrah perguntando
sempre quem é ele (Mississippi). Os muitos pedaços de sabão levados para o
banho do xerife Harrah e o entra-e-sai de mulheres tem claramente o humor
característico de Hawks .
James Caan e John Wayne; o banho de Robert Mitchum. |
Duke e Mitchum; Duke, Cann e Arthur Hunicutt. |
Pouca
seriedade - Nem tudo porém deu certo em “El Dorado” e é até aborrecido ouvir Mississippi declamar versos do poema ‘El Dorado’ de autoria de Edgar Allan
Poe. Pior que isso é ver James Caan pateticamente imitar um chinês lembrando os
piores momentos dos Três Patetas. E Hawks manteve no filme a estapafúrdia
sequência. Jamais decola a relação entre Cole Thornton e a viúva Maudie
(Charlene Holt) pois John Wayne só é convincente em cenas de amor com Maureen
O’Hara. Pior ainda é imaginar que uma mulher fútil possa ter levado um homem
como J.P. Harrah à derrocada moral. O clima de informalidade chegou a tal ponto
nas filmagens que o personagem de John Wayne cobra de Robert Mitchum que este
não se decide em qual lado usar a muleta. Mitchum conta em suas memórias que
trocara, sem querer, da direita para a esquerda o uso da muleta e ao alertar
Hawks depois das tomadas prontas, o diretor respondeu que “o público nos
cinemas nem iria notar”. A pouco inspirada sequência final, com Wayne e Mitchum
caminhando pela rua principal de El Dorado ambos estão com as respectivas
muletas do lado errado, fecha o filme com uma evidente e imperdoável galhofa. Antes
Mitchum pegara a muleta na delegacia e quando sai à rua está com uma roupa
inteiramente diferente, num erro de continuidade que poderia e deveria ser
evitado num filme levado mais a sério.
"Não adianta, Thornton, ele não vai sentir nada". |
Show
de Bob Mitchum - Entre os pontos altos de “El Dorado” está a destacada interpretação de Robert Mitchum, como não poderia deixar de ser, jamais se
intimidando com a presença de John Wayne. Perfeito como bêbado andrajoso alvo
das chacotas dentro do saloon e incrivelmente casual na sequência do banho com
as frases sugestivas “estaria mais à
vontade na estação ferroviária de El Paso” e “deveria cobrar ingresso durante meu banho”. John Wayne nada pode
fazer diante de um ator com a estatura artística de Mitchum e só mesmo a sólida
presença do Duke permite que Bob não roube todas as cenas. Em seu quarto
trabalho no cinema James Caan dá conta do recado, enquanto Arthur Hunnicutt tem
a missão impossível de criar um personagem próximo ao de Walter Brennan em “Rio
Bravo”. Edward Asner poderia ter sido muito mais exigido como o poderoso chefe
do bando, ficando para Christopher George os melhores momentos como o elegante
facínora capaz de ‘cortesias profissionais’. Paul Fix faz muito bem um irônico
médico e R.G. Armstrong aparece em um dos raros papéis em que não interpreta um
pregador intolerante. Michele Carey cavalga melhor do que atua e Charlene Holt
provoca a doce lembrança de Angie Dickinson. John Mitchum, irmão de Bob aparece
como bartender e Johnny Crawford é o adolescente que se suicida.
O artista plástcio Ola Wieghorst, como armeiro, em cena com John Wayne. |
Diversão
garantida - As telas exibidas durante os créditos de “El Dorado” são
de autoria do pintor sueco Olaf Wieghorst, que no filme interpreta o armeiro da
cidade de Cuervo, amigo de John Wayne. O tema musical principal é cantado
durante os créditos iniciais mas fica muito melhor quando executado pela
orquestra de Nelson Riddle, autor da trilha. Na maior parte do filme não há nem
mesmo música incidental e quando Riddle cria alguns poucos fundos musicais
deixa a impressão que a qualquer momento vai ser ouvida a voz de Sinatra, com
quem Nelson Riddle muito trabalhou. O cinegrafista Harold Rosson, da mesma
idade de Howard Hawks (então com 69 anos), estava aposentado quando foi chamado
pelo diretor para fazer a iluminação perfeita das muitas cenas noturnas
passadas em El Dorado. Este foi o último e magnífico trabalho de Rosson que de
sua filmografia de 150 títulos constam pérolas como “Cantando na Chuva”, “O
Segredo das Jóias”, “Um Dia em Nova York” e “O Mágico de Oz”. Agradável western,
“El Dorado” rendeu 12 milhões de dólares nos Estados Unidos, lançado simultaneamente a "Gigantes em Luta" (The War Wagon), outro sucesso de John Wayne. Mesmo sem a magia de “Rio Bravo” e com alguns senões, "El Dorado" é diversão
garantida e não podia ser diferente com a reunião de Wayne e Mitchum sob as
ordens de Howard Hawks.
Big Duke John Wayne em "El Dorado". |
Charlene Holt entre John Wayne e Robert Mitchum; Wayne e Mitchum, descontraídos. |
Cena de cantoria que Howard Hawks preferiu excluir da versão final de "El Dorado"; na sequência cantam juntos Charlene Holt e Robert Mitchum. |
Michele Carey que em "El Dorado" cavalga como verdadeira cowgirl; James Caan mostrando que é ruim de mira ao lado de John Wayne. |
Grande western. Bob Mitchum e Hawks sempre valem a pena. Mas prefiro RIO BRAVO.
ResponderExcluirAbraços
Que honra ter o amigo Antonio Nahud como leitor, você, Nahud, que edita aquele que está entre os melhores blogs sobre cinema do Brasil, onde conhecimento e elegância se misturam magicamente. Grande abraço do Darci.
ExcluirGosto muito de El Dorado, embora concorde com a quase unânime preferência dos cinéfilos e críticos por Rio Bravo. A presença de Robert Mitchum, em extraordionária atuação, é um aspecto fundamental para que El Dorado figure numa galeria de clássicos do western. Quanto a Hawks, esse é dos maiores! Tive o prazer de acompanhar a mostra Howard Hawks Integral no Cine Humberto Mauro em Belo Horizonte no ano de 2013. Darci, mais uma vez o parabenizo pelos textos maravilhosos sobre os dois clássicos de Hawks.
ResponderExcluirMárcio/MG
Olá, Márcio, obrigado pelas palavras elogiosas. Essa mostra deve ter sido um grande acontecimento cinematográfico pela importância da obra de Howard Hawks. Concordo com tudo que você disse. Grande abraço do Darci.
ExcluirFaroestaço. Divertido demais. Mas tô com a maioria, inferior a Rio Bravo. Em El Dorado tudo é mais construído, menos espontâneo, até irregular. Só que essa irregularidade, principalmente no roteiro, é praticamente imperceptível, devida a afiada maestria de Hawks na direção e um elenco, quase todo, harmonioso. Porém, não consegue passar a fluidez e a mágica sensação de uma enganosa simplicidade de Rio Bravo.
ResponderExcluirShow de matéria Darci. Várias curiosidades, como o "espertinho" do Hawks ser namorado da belíssima Holt,mas ela era tão fraquinha que até cortou cenas dela, e que teve até uma cena musical, provavelmente copiando a de Rio Bravo, mas se Mitchum arrassa na interpretação, duvido que sua a voz se compare com a de Dino,
Agora, meu caro Darci, “Hatari!” razoavel? Ui! Uma tremenda e deliciosa aventura daquela, com o “Passo do Elefantinho” e tudo mais. Hehehe! É um baita filmaço saboroso onde nada acontece e nada se conta em duas horas meia, e, mesmo assim, no final saio sempre com alma mais leve toda vez que assisto. Aí, você pode alegar Darci: “Não tem história, não tem roteiro.” Nesse caso parafraseio mestre Hawks quando Robert Mitchum, ao ser chamado para o filme, lhe perguntou qual era história de El Dorado: Ah, sem história, Darci... Hehehe!
Abração.
Robson
Robson, gosto muito e Hatari, especialmente a trilha sonora maravilhosa de Mancini. Tenho o LP comprado quando do lançamento do filme, penso que seja uma daquelas raridades absolutas. Mas John Wayne conquistando Elsa Martinelli, decididamente não dá. Grandes sequências de caçadas, mas o humor sem inspiração. Hawks jamais se prendeu a uma história contada linearmente e como Fellini observou anos mais tarde, os melhores filmes são aqueles em que parece que nada de especial acontece. 'Rio Bravo' é assim. - Abraço do Darci.
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