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5 de março de 2013

AO DESPERTAR DA PAIXÃO (Jubal) – UM CORTE PROFUNDO NA ALMA HUMANA



Orson Welles e Suzane Cloutier (Othello e
Desdêmona) em "Othello", de 1952.
Delmer Daves foi um dos mais importantes diretores de faroestes da década de 50. Quatro de seus westerns – “A Última Carroça”, “Galante e Sanguinário”, “A Árvore dos Enforcados” e “Ao Despertar da Paixão” – são tão bons que é tarefa difícil apontar qual o melhor. “Ao Despertar da Paixão” é estranhamente o menos citado destes faroestes e mais lembrado por ser baseado em “Othello”, de William Shakespeare. Três anos antes da produção de “Ao Despertar da Paixão”, Orson Welles conseguiu após quatro longos anos com o chapéu na mão, terminar seu “Othello”, fiel ao original de Shakespeare. O filme de Daves tem da tragédia do dramaturgo inglês, especialmente a inveja e a maldade do infamante personagem Iago. Difere, no entanto esse faroeste do original ao alterar a personalidade de Desdêmona, esposa de Othello e ainda quanto ao final da tragédia, na qual o Mouro de Veneza assassina Desdêmona, matando-se a seguir. A adaptação do texto de Shakespeare foi feita por Paul Wellman, autor também de “Os Comancheiros” e de “O Último Bravo”. O roteiro de “Ao Despertar da Paixão”, que teve a autoria de Russell S. Hughes em parceria com o próprio Delmer Daves, possibilitou ao diretor realizar um insólito western que foge dos temas clássicos do Velho Oeste para se concentrar na complexidade da alma humana.


Placa indicativa de Jackson Hole próximo
ao Grand Teton, cenário de grandes
faroestes como "os Brutos Também
Amam" e "Dança com Lobos".
Abaixo, destacada no detalhe a pick-up
da produção que aparece no filme.
O salário perdido de Jack Elam - Filmado em Jackson Hole, no Wyoming, mesmo cenário de “Os Brutos Também Amam”, “Ao Despertar da Paixão” foi o primeiro filme da parceria de três westerns entre Delmer Daves e Glenn Ford. O elenco reuniu Ernest Borgnine, então recém-premiado com o Oscar por sua atuação em “Marty”; Rod Steiger, que havia criado o personagem ‘Marty’ na televisão e fora indicado ao Oscar por “Sindicato de Ladrões”; e Charles Bronson que acabara de mudar seu nome artístico que antes era Charles Bushinsky. O principal papel feminino, ficou com a inglesa Valerie French em seu primeiro filme norte-americano, enquanto Felicia Farr, aos 23 anos de idade, fazia sua estréia em um filme importante. Ainda no elenco o mal-encarado Jack Elam que como toda a equipe ficou hospedado no Wort Hotel, em Jackson Hole, aos pés do majestoso Grand Teton. O Wort Hotel possui um espaço famoso chamado ‘Silver Dollar Bar’ onde grande parte da equipe passava as noites jogando pôquer. Segundo comentário de Peter Ford, filho de Glenn, Jack Elam deixou lá no ‘Silver Dollar’ todo o salário recebido por sua participação nesse filme. Delmer Daves era um profundo conhecedor da vida nos ranchos e fazendas e isso se reflete na esplêndida reconstituição que seu filme faz desse universo, ainda que em uma cena, quando Glenn Ford entra pela primeira vez na casa principal do rancho seja vista uma intrusa pick-up comprometendo o cenário.

Ernie, Valerie French e Glenn Ford;
Noah Beery Jr. e Rod Steiger.
Estilos interpretativos - O canadense Glenn Ford, aos 45 anos era o astro inconteste de “Ao Despertar da Paixão”, tendo atuado em sucessos recentes como “Sementes de Violência”, “Os Corruptos” e “Melodia Interrompida”. Glenn teve nesta produção a incômoda concorrência de Ernest Borgnine, que com seu talento roubava naturalmente as cenas nas quais participava e era muito admirado por Glenn Ford. Rod Steiger era um caso à parte pois como seguidor do ‘Método’ de atuar do Actor’s Studio, onde estudara, Rod levava um tempo enorme ‘incorporando’ seu personagem. Glenn Ford, por sua vez, era adepto das lições simples de Spencer Tracy, Gary Cooper e John Wayne, segundo as quais o personagem é que deveria se adaptar à personalidade do ator. Dos diferentes estilos interpretativos extraídos desses três atores, Delmer Daves  fez um faroeste que como nenhum outro se mostrou tão melodramático, com os atormentados personagens não conseguindo controlar seus intensos ciúmes e paixões. Embora com mais diálogos do que ação, o western de Davis prende a atenção do espectador ganhando contornos de verdadeira tragédia no Velho Oeste.

Ernest Borgnine e Valerie French;
Rod Steiger.
A mais nefasta das criaturas - Jubal Troop (Glenn Ford) torna-se cowboy do rancho de Shep Horgan (Ernest Borgnine), de quem ganha a simpatia. Horgan nomeia Jubal seu capataz, o que desagrada a um outro cowboy de nome Pinkum, apelidado ‘Pinky’ (Rod Steiger). Por outro lado, Mae (Valerie French), a esposa de Horgan, fica feliz com a escolha do marido pois seu interesse por Jubal só não é percebido pelo próprio Shep, apaixonado por Mae, sua linda esposa conquistada numa viagem ao Canadá. Mae é volúvel e insatisfeita não suportando os modos do marido Shep, a quem traía com Pinky e que agora tenta seduzir Jubal. O capataz, porém, se enamora da jovem Naomi (Felicia Farr), filha de um líder mórmon cuja caravana em direção à terra Prometida passa pelas terras de Shep Horgan. Jubal resiste ao assédio de Mae mas mesmo assim o invejoso Pinky leva Shep a crer que Mae e Jubal estão tendo um caso. Desesperada por ter sido rejeitada por Jubal, Mae mente a Shep dizendo a ele que o capataz esteve em sua cama numa ausência do marido. Cego pelo ódio Shep tenta matar Jubal mas acaba sendo morto por Jubal. Pinky conta o sucedido a Mae dando uma versão mentirosa da morte de Shep e mesmo assim Mae foge de Pinky que a persegue e a espanca com violência. A seguir Pinky induz as autoridades a acreditar que Jubal planejara matar Shep para ficar com sua esposa, não cabendo legítima defesa, o que levaria Jubal a ser condenado. Porém Mae, antes de falecer, relata a verdade e Pinky é preso pelo assassinato de Mae. Ao final Jubal segue seu destino agora em companhia de Naomi.

Valerie French e Glenn Ford;
Felicia Farr e Glenn.
Mais Hollywood que Shakespeare - A primeira metade de “Ao Despertar da Paixão” é um melodrama que se desenrola de forma não menos que excepcional. O personagem Pinky é incrivelmente real na caracterização da pessoa maledicente que faz da intriga sua razão de ser na vida. Pinky é neurótico, incapaz de sorrir e de aceitar as pessoas e todas suas atitudes são de recriminação, exalando inveja e ódio. Shep Horgan é o inverso: generoso, sorridente e otimista é incapaz de enxergar a maldade de Pinky e apaixonado por sua mulher não consegue conhecê-la minimamente, do que se aproveita Mae. Esta justifica sua promiscuidade com a infelicidade e monotonia que o marido trouxe a sua vida com o casamento, sobrando a ela divertir-se com os homens que achar interessantes. Em meio aos três personagens está Jubal, agradado pelo amigo Shep, assediado sexualmente por Mae e difamado pela inveja de Pinky. A tragédia é iminente e ela ocorre numa trama primorosamente conduzida por Delmer Daves. A partir da morte de Shep, porém, o filme cai um pouco devido às soluções encontradas para a finalização hollywoodiana da história, soluções incondizentes com a complexidade da primeira parte. Jubal, que havia sido ferido por Shep, é salvo pela família de mórmons de Naomi, a jovem com quem iniciou um namoro. O lenço, elemento vital na trama shakespeariana é reduzido a mero presente de Naomi a Jubal. E Pinky espanca Mae quase até a morte, o que só acontece após esta revelar a verdade dos fatos provando a inocência de Jubal e possibilitando o final feliz do filme que pretensamente aproximou o western de uma tragédia escrita por Shakespeare.

Ernest Borgnine
Borgnine, o Mouro do Wyoming - Independente das mudanças do roteiro que descaracterizam o texto escrito no século XVII, “Ao Despertar da Paixão” é um soberbo, incomum e belo western. Fotografado com maestria por Charles Lawton Jr. tanto nas sequências externas quanto nas muitas cenas fotografadas com pouca luz e que enfatizam o rosto dos personagens, especialmente a rudeza de Ernest Borgnine, dando-lhes maior dramaticidade. A trilha musical de David Raksin orquestrada por Maurice Stoloff pontua brilhantemente o ritmo do filme. Borgnine é o destaque absoluto do elenco, ainda que Daves tenha conseguido talvez a melhor entre tantas boas interpretações de Glenn Ford. Sempre citado como um ator apenas correto, Glenn comprova que era bem mais que isso com seu jeito discreto de atuar. E discrição é uma palavra que positivamente não faz parte do dicionário de Rod Steiger. Quem assistiu ao western-musical “Oklahoma” deve lembrar-se bem do antipático personagem ‘Jud’ criado por Steiger. Em “Ao Despertar da Paixão” o ator se supera e acrescenta a seu estilo narcisista de atuar a mais irritante das vozes escutadas num faroeste. A presença de Rod Steiger é compensada por um ótimo Charles Bronson e pela dupla Noah Beery Jr e John Dierkes como perfeitos cowboys. Um elenco dessa qualidade mereceria alguém como Susan Hayward para interpretar a ardente e sensual Mae, mas a muito bonita Valerie French se sai até que bem. Felícia Farr é sempre uma deliciosa imagem e boa atriz como comprovaria em mais dois westerns em que foi dirigida por Delmer Daves (“A Última Carroça” e “Galante e Sanguinário”).

Delmer Daves
Delmer Daves sem meias palavras - Se a década de 50 se notabilizou por dar ao gênero o que se convencionou chamar de ‘western adulto’, Delmer Daves com “Ao Despertar da Paixão” foi além dos limites que Anthony Mann havia atingido com seus memoráveis faroestes. Co-autor de um roteiro com frases como "Não chegue muito perto pois você pode se queimar", dita por Glenn Ford à provocante Valerie French enquanto segura um ferro de marcar gado. Ou quando Rod Steiger diz à mesma Valerie French "Suponho que você esteja precisando de lenha. Se a casa estiver fria peça ajuda ao Pinky", Delmer Daves coloca lascividade em cada palavra. Três anos após ‘Shane’ ter levado a imaginação do espectador à possibilidade iminente de um adultério, Daves, sem meias palavras, mostra que na alma humana sempre houve espaço para o desejo e para a maldade.

Shep, apaixonado por sua esposa Mae que provoca o capataz Jubal;
Pinky procura reconquistar a amante que o trocou por Jubal. 
A delicada beleza de Felicia Farr; os ótimos Charles Bronson e Noah Beery Jr.;
John Dierkes, um dos irmãos Ryker em Shane retorna ao Vale do Wyoming;
Rod Steiger e Glenn Ford, observados por Jack Elam.
De bônus em "Ao Despertar da Paixão" as perfeitas cavalgadas de Glenn Ford,
um dos melhores cavaleiros dos faroestes.

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