O livro de Will Cook e, abaixo, o verdadeiro Quanah Parker. |
Em 1960,
mesmo admirado pelos franceses, “Rastros de Ódio” ainda não havia recebido o
status de obra-prima cinematográfica. Os dois mais recentes westerns de John
Ford haviam sido “Marcha de Heróis” (The Horse Soldiers) e “Audazes e Malditos”
(Sergeant Rutlegde), respectivamente lançados em 1959 e 1960 e ambos recebidos
friamente pelo público e pela crítica. Em meados desse ano de 1960 John Ford
recebeu convite para dirigir mais um western e não rejeitou a proposta de 225
mil dólares mais 25% do lucro líquido por esse filme. Ajudou muito na decisão
de Ford quando o produtor Stanley Shpetner informou que James Stewart seria o
principal ator. Stewart e Ford nunca haviam trabalhado juntos e além de
Stewart, Richard Widmark e Shirley Jones também haviam sido contratados. O
filme seria baseado no livro “Comanche Captives”, de autoria de Will Cook e
Ford como diretor e produtor associado impôs a condição de escolher o
roteirista, não outro senão Frank S. Nugent, seu colaborador de muitos filmes.
O diretor e Nugent passaram um mês a bordo do ‘Araner’, o iate de John Ford, preparando
o roteiro e quando este ficou pronto, recebendo o título “Two Rode Together”,
Ford chegou a desistir do projeto, mas acabou convencido por Harry Cohn,
presidente da Columbia, a quem o diretor devia algum favor. A indisposição de
Ford com o filme era visível quando, em setembro de 1960, começaram as
filmagens em locação em Brackettville, no Texas. E tudo ainda iria piorar mais,
fazendo de “Two Rode Together” um dos menos inspirados trabalhos da fase final
da carreira do Homero das Pradarias.
Richard Widmark e James Stewart; abaixo Widmar, Stewart e Henry Brandon. |
Resgate de crianças brancas - O roteiro
de “Two Rode Together”, que no Brasil recebeu o título “Terra Bruta”, tem
algumas semelhanças com “Rastros de Ódio” pois trata da busca, anos depois, de
crianças brancas sequestradas pelos índios Comanches. Guthrie McCabe (James
Stewart) é o Marshal da cidade de Tuscosa e através do emissário Tenente Jim
Gary (Richard Widmark) recebe o convite para resgatar duas crianças que vivem
com os Comanches há nove anos. McCabe tem experiência nesse tipo de empreitada,
mas cobra 500 dólares por criança que ele venha a devolver aos brancos.
Relutante o Major Frazer (John McIntire) concorda com o preço estipulado e destaca
o Tenente Gary para acompanhar McCabe na busca. Outros desesperados colonos que
tiveram filhos capturados pelos índios pedem ajuda a McCabe. O chefe Comanche é
Quanah Parker (Henry Brandon), a quem McCabe conhece e propõe negociar os prisioneiros
por armas. Uma das crianças, uma menina, cresceu e se tornou esposa de guerreiro
Comanche tendo filhos com ele; um menino sequestrado aos seis anos tornou-se um
perfeito Comanche, com o nome Running Wolf (David Kent). McCabe e o Tenente
Gary retornam com Running Wolf e Elena (Linda Cristal), esta uma mexicana que
igualmente capturada era esposa de Stone Calf (Woody Strode), chefe de um grupo
de índios desafeto dos Comanches. Elena, por ter sido esposa de um índio, não é
bem recebida em Tuscosa e parte da cidade, acompanhada por McCabe que deixa de
ser o Marshal do lugar.
James Stewart e Henry Brandon. |
Anti-herói fordiano - O roteiro
de “Terra Bruta” é rico em situações variadas que poderiam ter resultado em um
excelente filme. Contrariam, alguns aspectos do roteiro, muito daquilo que John
Ford mostrou em seus idealizados personagens e comunidades representativas da
formação da sociedade norte-americana. Guthrie McCabe, o personagem
interpretado brilhantemente por James Stewart, longe daqueles criados na tela
por Henry Fonda e por John Wayne em westerns de Ford, é um mercenário e nada
heroico homem da lei. McCabe pouco se importa com o pequeno salário que recebe como
Marshal em Tascosa, uma vez que lhe pagam 10% de tudo que gere dinheiro na
cidade. É assim com o saloon local, cuja proprietária Belle Aragon (Annelle
Hayes), além dos favores amorosos, aposentos e comida, repassa a McCabe a
estipulada comissão. Sem nenhum rubor ou pudor McCabe cobra ‘por cabeça’ a ser
resgatada aos índios, pouco se importando com o sofrimento dos familiares das
vítimas. McCabe concorda até com a proposta de um pai canalha que, para aplacar
os reclamos da esposa, lhe pede para trazer qualquer jovem branco para
substituir o filho perdido para os Comanches. O cinismo de McCabe permeia cada
uma de suas atitudes e vítima principal desse cinismo é o Tenente Gary a quem o
dissoluto Marshal trata com desdém referindo-se ao irrisório soldo que a
Cavalaria lhe paga. McCabe armado de revólver atira em Stone Calf que está munido
apenas de uma faca, numa reação que resvala na covardia e que não eleva o
caráter do personagem. E assim como Ethan Edwards e Cicatriz tinham em comum o
ódio, McCabe e Quanah Parker são meros empreendedores, um por dinheiro e o
nativo pela manutenção do poder entre os Comanches.
Richard Widmark e John McIntire; à direita rara foto do grande Cliff Lyons em participação como ator, ao lado de Shirley Jones e Jeanette Nolan. |
Linchamento do índio branco Running Wolf. |
Racismo de túnica azul - Subtramas
interessantes compõem a história de “Terra Bruta”, como Marty Purcell (Shirley
Jones), que se sente responsável pela captura do irmão mais novo quando este
estava sob seus cuidados. Marty traja-se como rapaz, com calças e cabelo preso
para amenizar a falta do irmão diante do ressentido pai (Paul Birch). Harry
Wringle (Willis Bouchey) é o mais abjeto dos colonos, ele que suborna McCabe para
que qualquer jovem seja trazido em lugar de seu filho, mas ao ver que o Marshal
lhe trouxe um rebelde e violento branco tornado índio – Running Wolf – desfaz o
trato. Do grupo de colonos fazem parte os Cleggs, com o pai fanático religioso
(Ford Rainey) e os idiotizados filhos Ortho (Harry Carey Jr.) e Greeley (Ken
Curtis); a histérica senhora McCandless (Jeanette Nolan) e o marido (Cliff
Lyons), que tiveram o filho capturado. A reverenciada e gloriosa Cavalaria de
tantos e poéticos westerns de Ford é mostrada como um grupo de racistas de
túnicas azuis. E dela faz parte o hipopotâmico Sargento Posey (Andy Devine) a
denunciar a pouca exercitação na caserna. No entanto faltou a reconhecida
capacidade de Ford de retratar com perfeição cada personagem, desperdiçando-os
seja com excessos como o de Jeanette Nolan ou insípido como o personagem de
Shirley Jones. Mesmo o Tenente Jim Gary, interpretado pelo segundo nome do
elenco que é Richard Widmark, parece não ter que fazer no filme.
O baile no Forte e Running Wolf sendo preso. |
Baile de intrigas - As
clássicas sequências de baile presentes nos westerns de John Ford foram sempre
momentos de sublimação cinematográfica. Em “Terra Bruta” desenrola-se também,
no salão do Forte, um baile que desta vez é triste e palco de intriga e puro
racismo contra a presença da mexicana ex-esposa de um índio. Elena de la Madriaga é
humilhada pelos vistosos oficiais e suas elegantes esposas que não perdoam uma
mulher cuja mácula foi ter sido vítima dos índios. Infortúnio de Elena
que nos cinco anos em que serviu de esposa de Stone Calf não deu filhos ao
chefe índio, caso contrário sequer poderia ter retornado. Na discussão do
preconceito racial “Terra Bruta” acaba sendo mais profundo que “Rastros de
Ódio” pois enquanto a jovem Debbie volta para casa, Freda, a filha do sueco Ole
Knudsen (John Qualen) permanece com seus bebês junto aos comanches. E a
intolerância exacerbada pela própria cortesã do saloon faz com que Elena deixe
a cidade numa diligência ao lado do redimido (e empobrecido) Guthrie McCabe,
numa evocação ao inesquecível final de “No Tempo das Diligências” (Stagecoach).
Neste, de forma muito mais elevada, a prostituta Dallas e Ringo Kid partem para
um destino comum.
Widmark e Stewart; abaixo Andy Devine e sua enorme pan. |
Direção omissa - As situações cômicas
sempre surgiram nos filmes de John Ford de forma espontânea, ainda que sem
muita sutileza, não faltando críticas à mão pesada do diretor para a comédia.
“Terra Bruta” se inicia com tom decididamente cômico na chegada de um pelotão a
Tascosa, os diálogos entre James Stewart e Richard Widmark e ainda ambos com a
dona do saloon (Annelle Hayes). Segundo relato de James Stewart, Ford pouco
teve a ver com essas sequências, deixando a critério dos atores desenvolver os
diálogos. Exemplar dessa situação de descompromisso do diretor é a sequência em
que, a pedido de Ford, James Stewart se espreguiça na varanda do saloon, como
havia feito Henry Fonda em “Paixão dos Fortes” (My Darling Clementine). Stewart sem nenhum ensaio fez o que Ford pediu
e ao final procurou pelo diretor para saber se ele havia aprovado e o ‘Pappy’
havia simplesmente desaparecido dali. Adiante, outra sequência em que Ford ‘delegou’ aos
atores foram os quatro minutos sem corte em que Stewart e Widmark conversam
descontraidamente à beira de um rio.
Olive Carey e John McIntire; abaixo Jeanette Nolan e Cliff Lyons. |
Cresce o desinteresse - Fica-se a
imaginar então, como o filme seria melhor se Ford o dirigisse pra valer (com gusto). A
falta de inspiração e de interesse de John Ford fez de “Terra Bruta” um filme
que jamais cresce apesar das citadas possibilidades que o roteiro de Frank S.
Nugent permitia. Certo que repetir a majestade épica de “Rastros de Ódio” seria
esperar demais, mas nenhuma profundidade e a ausência da terna melancolia que
permeou a maior parte dos westerns de Ford promove uma certa decepção. Segundo
relato de seu neto Dan Ford no livro “Pappy”, John Ford sentiu demais a morte
de Ward Bond ocorrida em meio às filmagens (13/11/1960), que foram paralisadas
para que o diretor comparecesse aos funerais de Bond. E falando nesse ator,
amigo e membro da Ford Stock Company, John Ford deveria estar totalmente à
vontade entre Anna Lee, Olive Carey, Jack Pennick, os dois Chucks (Roberson e
Hayward), Danny Borzage, o genro Ken Curtis, o afilhado Harry Carey Jr., Willis
Bouchey, John Qualen e outros membros do grupo de atores e técnicos que
acompanhavam Ford em seus filmes. O maior destaque entre os atores coadjuvantes
é a presença de Cliff Lyons, lendário stuntman desta vez atuando como ator com papel
relevante.
James Stewart |
Um filme de James Stewart - James
Stewart domina todo o filme, tendo impressionado favoravelmente John Ford que o
chamou para seus dois últimos westerns nos anos seguintes. Menos brutal que
John Wayne, menos puro e romântico que Fonda, Stewart completou o trio de
atores que Ford mais gostou de dirigir. E Jimmy, que foi dirigido muitas vezes
por Frank Capra, Alfred Hitchcock e Anthony Mann, ao se referir a Ford disse
simplesmente: “O melhor de todos diretores, um
gênio”. Richard Widmark ficou longe de suas interpretações neuróticas e
tensas como o Tenente Gary. Henry Brandon apenas repetiu o Cicatriz de “Rastros
de Ódio”, menos assustador, é claro. John McIntire é sempre perfeito, o mesmo
não podendo ser dito de sua esposa Jeanette Nolan de quem foi exigida uma participação
irritantemente histérica. Linda Cristal acaba se saindo melhor que Shirley
Jones que, nesse mesmo ano criaria uma deliciosa prostituta que lhe rendeu um
Oscar em “Entre Deus e o Pecado”, ao lado de Burt Lancaster. Uma pena a quase
figuração da excelente Anna Lee, assim como de Ken Curtis e Harry Carey Jr. Sem
muito esforço Andy Devine é bastante engraçado com sua pança atingindo o limite
do exagero.
Henry Brandon como Quanah Parker. |
Ford, sem comparação - O tema
musical de George Dunning é monótono e os cenários naturais de Brackettville,
tão bem utilizados em “O Álamo”, são desperdiçados pela indolência de Ford em
possibilitar as pinturas que sua imaginação sempre criou. Sobre “Terra Bruta”
Ford exclamou “This is the worst piece of
crap I’ve done in 20 years” (Esta é a maior merda que eu fiz nos últimos 20
anos). “Terra Bruta” foi mal nas bilheterias e é um dos westerns menos
lembrados de John Ford, tendo agradado a William K. Everson que nele viu muitas
qualidades. E o próprio Everson disse, certa vez, que o grande problema dos
faroestes é eles serem comparados aos westerns de John Ford. Pior quando se
compara um filme como “Terra Bruta” com a incrível coleção de grandes obras
legadas ao cinema pelo Mestre John Ford.
Foto de John Ford durante as filmgens de "Terra Bruta", vendo-se James Stewart observando. |
Pôster norte-americano de "Terrra Bruta". |
Darci, como é bom visitar sua página! Nela temos a oportunidade de conhecer filmes que até então nunca tínhamos ouvido falar. Eu desconhecia TERRA BRUTA, realmente existem milhares de semelhanças com RASTROS E ÓDIO em! E não só no elenco! Será que existe disponível em DVD no nosso pobre mercado nacional? Apesar de o próprio diretor considerar o filme ruim, só pelo fato de ser dele, e ainda trazer no elenco STEWART e WIDMARK, já vale a pena! O elenco de apoio, sempre presente nos filmes de FORD também são dignos de nota. Mais uma ótima postagem! Parabéns!
ResponderExcluirJefferson, não tenho inteira certeza se "Terra Bruta" foi lançado aqui em DVD. Minha cópia veio de... Portugal. A legenda é típica da linguagem da Terrinha. Nos Estados Unidos foi lançado um DVD primoroso com muitas informações. O que Ford dizia não deve ser levado em consideração pois muitas vezes ele dizia uma coisa diferente do que pensava. De fato, que elenco, heim! - Darci
ExcluirUm western muito bom, apesar que, da fase final de mestre Ford, considero somente “Crepúsculo de Uma Raça” mais fraco, por ser um tanto desigual, mas comparável a “Marcha de Heróis”, outro faroeste que, como “Terra Bruta”, dizem ter tido uma produção atribulada. O assisti várias vezes na adolescência, na extinta TV Manchete e depois na Band, fazendo parte da fase “amarga” do diretor, que se iniciou com “Rastros de Ódio”, onde sua temática, personagens e o tom dos filmes, tornam-se mais críticos, dúbios, desesperançados, desajustados. Chamo de fase amarga, pois me lembro daquele documentário sobre Ford, dirigido por Peter Bogdanovich, em que este pergunta ao mestre se ele percebia que com o passar do tempo sua visão do western foi se tornando cada vez mais amarga, comparando, por exemplo, “Caravana de Bravos” com “O Homem que Matou o Facínora”. No “melhor” estilo carrancudo dele, Ford responde que não e dizia não saber do que Bogdanovich falava. Rsrsrs. Ford podia até negar, mas concordo com Martin Scorcese e Bogdanovich, que o “Homero das Pradarias”, dava sua visão sobre a América e suas mudanças em seus faroestes. E pra não fugir a regra, vou discordar novamente do seu Darci, quanto a música, pelo menos a música-tema, ou main title, que veio logo a minha cabeça ao ver esta matéria, ou seja, pra mim é bem legal. Acho que no dia que em concordamos sobre este tema, as trilhas sonoras, vai ser o dia que vai acabar a seca aqui em Sampa, de tanto que vai chover. Hahaha! Abraço.
ResponderExcluirRobson
Robson
ExcluirDiscordar faz parte das discussões. Nenhum problema nisso, mas para acabar com a seca eu bem que poderia rever meu comentário sobre a trilha de George Dunning, bastante aborrecida na minha opinião. E por falar em aborrecimento, imagino o que Bogdanovich teve que passar com John Ford... Mas Peter conta que Ford era dos poucos que pronunciava seu nome corretamente.
Darci