UMA REVISTA ELETRÔNICA QUE FOCALIZA O GÊNERO WESTERN

27 de julho de 2020

OS BANDEIRANTES (THE COVERED WAGON) – PRIMEIRO VERDADEIRO WESTERN-ÉPICO



Nos tempos atuais em que há centenas e centenas de cinéfilos que jamais assistiram a um western é bom lembrar que este gênero, nas primeiras décadas do cinema, era dominante na preferência dos espectadores. Os estúdios tinham na produção de faroestes com duração ao redor de 60 minutos uma das suas mais rendosas sustentações e entre os astros mais bem pagos de Hollywood estavam cowboys como William S. Hart, Tom Mix e Harry Carey. Mesmo considerando que William S. Hart estrelou e dirigiu filmes acima da média como “As Portas do Inferno” (Hell’s Hinges), de 1916, os westerns ficavam distantes do conceito de cinema de qualidade, categoria reservada para cineastas como David W. Griffith e seus épicos, Charles Chaplin e mesmo europeus como os expressionistas F.W. Murnau ou Robert Wiene. O gênero western, ainda que estimado pelo público espectador, era considerado apenas cinema de entretenimento e não levado na devida conta pelos críticos. Tudo mudou com a produção e lançamento, em 1923, de “Os Bandeirantes” (The Covered Wagon), longa-metragem com duração de 98 minutos e que, de imediato, se transformou em sucesso de crítica e de público, tornando-se a maior bilheteria do ano nos Estados Unidos. E o mais importante: fez com que os faroestes passassem a ser olhados de modo diferente, agora muito mais respeitoso.


Acima Emerson Hough e Jack Cunningham;
abaixo Jesse L. Lasky e James Cruze
Inédita superprodução - Baseado em livro de Emerson Hough, autor de histórias que narravam aventuras passadas no Oeste e com adaptação do experiente roteirista Jack Cunningham, a direção e “Os Bandeirantes” coube a James Cruze, que até então nada havia dirigido que chamasse maior atenção ao seu nome. Quem quer conhecer melhor a filmografia de Cruze descobre que a maioria dos seus filmes foram dados como perdidos, o que dificulta ainda mais uma avaliação do seu trabalho como diretor. Estranhamente, até por ser um faroeste, a Paramount optou por produzir este western como uma superprodução que seria rodada em locações e ao custo estimado de 700 mil dólares que ao final chegou aos 800 mil. A título de comparação, “O Garoto”, de Chaplin, foi produzido em 1921 custando ao final 250 mil dólares sendo que Chaplin era sinônimo de investimento garantido. Jesse L. Lasky, o poderoso sócio fundador da Paramount fez questão de assumir pessoalmente a produção executiva do filme e de cara se defrontou com problemas na formação do elenco principal. Isto porque Mary Miles Minter, pensada para interpretar a heroína, teve seu nome relacionado ao assassinato de um conhecido diretor e foi descartada. Como havia ainda a disposição da Paramount de não gastar com astros que cobravam muito, o papel acabou nas mãos de Lois Wilsonl.

Acima Mary Miles Minter e Lois Wilson;
abaixo Ernest Torrence e Karl Brown
Formação do elenco - J. Warren Kerrigan, ator que contracenara com Lois Wilson em duas dezenas de filmes seria o principal nome masculino da jornada épica descrita em “Os Bandeirantes” e, mais uma vez, iria namorar a atriz em um filme. Como terceiro nome do elenco e completando o triângulo amoroso da história, foi chamado Alan Hale, ator de 30 anos de idade e no cinema desde os 20 anos. Hale se destacara como ‘Little John’ nas aventuras de Robin Hood filmada em 1922 e estrelada por Douglas Fairbanks e voltaria a interpretar esse mesmo papel na famosa versão de 1938 com Errol Flynn como protagonista. O clássico “David, o Caçula”, de Henry King alcançara enorme êxito em 1922 e o escocês Ernest Torrence havia sido um dos destaques desse filme, sendo escalado para “Os Bandeirantes”. Também como importante coadjuvante, interpretando o caçador Jim Bridger, juntou-se a Torrence (um batedor da caravana) o já veterano Tully Marshal, e a Charles Ogle que atuou como o chefe da expedição. A difícil missão de comandar a equipe de cinegrafistas coube ao jovem Karl Brown, então com apenas 26 anos mas acumulando bastante experiência tendo trabalhado como assistente em “Intolerância”. No entanto o que levou a Paramount a confiar em Karl Brown foram as técnicas cinematográficas que ele havia criado como a dupla impressão de negativos e projeção com modelos miniaturizados, técnicas então revolucionárias.

Delmer Daves
Preocupação com a autenticidade - O enorme grupo de técnicos e mais os atores rumou para as locações que se desenvolveram em Utah, Arizona, Oregon, Deserto de Sonora na Califórnia e Nevada, enquanto o produtor Jesse L. Lasky controlava à distância as despesas com esse western, uma verdadeira superprodução se considerado o conjunto que o envolveu. Os índios que são vistos em “Os Bandeirantes” são todos eles indígenas de verdade demonstrando a preocupação da produção com a autenticidade. Lasky acreditava em novos talentos e assim como o jovem Karl Brown respondeu pela cinematografia, a outro técnico ainda mais jovem chamado Delmer Daves, de apenas 18 anos de idade, foi atribuído chefiar o departamento de acessórios e adereços também visando a maior genuinidade de tudo que seria visto na tela. Não consta da biografia de Delmer Daves qualquer outro trabalho anterior nessa área mas o certo é que praticamente nenhum detalhe escapou ao jovem futuro diretor de tantos westerns clássicos.

Bizões duplicados pela técnica
do cinegrafista Karl Brown
Rebanhos e manadas - Um grupo de conselheiros técnicos e historiadores foi igualmente contratado. O número de pessoas envolvidas nas locações chegou a três mil e em alguns locais onde durante o dia o calor passava de 40 graus, baixando à noite para temperaturas negativas. A essas despesas se juntaram às dos 500 carroções que descendentes dos pioneiros ainda mantinham como recordação e que foram alugados para as filmagens. Enormes rebanhos de gado, mil cavalos, 200 mulas igualmente foram transportados para os locais de filmagens. E até mesmo búfalos que já não mais existiam em rebanhos tão grandes quanto o necessário foram simulados por truques da ainda incipiente cinematografia. Naquele tempo não vigiam as normas de proteção aos animais e pelo menos dois cavalos morreram em sequências mais perigosas como a da travessia de um rio. Nunca é demais lembrar que os épicos de D.W. Griffith foram quase totalmente filmados em estúdio, enquanto a colossal produção de “Os Bandeirantes” obrigou a um estúdio ambulante através de inóspitas regiões.

Centenas de cavalos na travessia de um rio

Lançamento e impacto - Findas as filmagens e após a fase de edição, o lançamento de “The Covered Wagon” ocorreu nos Estados Unidos em março de 1923. O sucesso foi estrondoso e para muitos foi considerado o mais importante de todas as produções cinematográficas norte-americanas. Para exibição no Brasil o sugestivo título original foi substituído por “Os Bandeirantes”, isto porque na primeira metade do século passado os bandeirantes de nossa História eram mostrados como heróis desbravadores, o que certamente atrairia mais público para ver o filme. Em Portugal, onde poucos sabiam o que seria um ‘bandeirante’, o título escolhido foi o muito mais apropriado: “A Caravana Gloriosa”.

Belos pôsteres anunciando o western épico

Westward, Ho! - Uma caravana liderada por Jesse Wingate (Charles Ogle) parte de Wesport, no Kansas, com destino ao Oregon, onde os aventureiros se instalariam buscando vida melhor. A esse grupo de desbravadores junta-se uma segunda caravana chefiada por Will Banion (J. Warren Kerrigan) e que tem como batedor William Jackson (Ernest Torrance). Pelo caminho, a imensa e agora duplicada caravana, se defronta com problemas de toda ordem como as inevitáveis intempéries, as difíceis travessias de rios e escaladas de morros e os ataque de índios. Os mais fracos da caravana são vencidos pelas adversidades e algumas famílias optam por retornar ao Kansas e em determinado momento surge a notícia da descoberta de ouro em abundância na Califórnia, o que faz com que mais membros da caravana desistam de chegar ao Oregon. Molly Wingate (Lois Wilson), a filha de Jesse Wingate está pronta para se casar com Sam Woodhull (Alan Hale), mas ao conhecer Will Banion se interessa por ele, fica indecisa e acaba desistindo do casamento. O inconformado Woodhull usa de violência e de intrigas para manchar a reputação de Banion mas é este quem termina por conquistar o amor de Molly após se descobrir que Banion é, de fato, um homem íntegro. Banion é reintegrado ao seu posto no Exército, deixando de pairar dúvidas sobre sua conduta como oficial. Afinal a caravana cumpre seu objetivo e os pioneiros iniciam a tão sonhada nova vida no Oregon, quase dois mil quilômetros distante do ponto de partida.

J. Warren Kerrigan e Lois Wilson
Um ator sem nenhum carisma - A saga dos pioneiros de “Os Bandeirantes” foi filmada em forma de documentário ao qual foi inserida uma subtrama amorosa com desfecho por demais previsível. Porém é preciso lembrar que este é um filme de 1923 e como tantos outros o enredo foge de maior complexidade. O grande pecado deste épico, porém, reside na escolha do ator principal, J. Warren Kerrigan, incapaz de criar empatia com o espectador e que cansa a cada vez que entra em cena com sua insipidez e excesso de maquiagem. Quase o mesmo pode ser dito de Lois Wilson e ambos contribuem negativamente para que qualquer tipo de emoção seja transmitida pelos personagens. Prevaleceu a ideia de a epopeia ser mais importante que as clássicas tramas amorosas e para isso as inexpressivas atuações de Kerrigan e Lois Wilson contribuíram ainda que involuntariamente. Por sorte outros tipos do filme são mais vivos e interessantes como o batedor Jackson, o caçador Bridger e a senhora Wingate (Ethel Wales), mãe de Molly, todos eles dando mais sabor às histórias paralelas à epopeia dos pioneiros. Sem dúvida um western, no entanto um filme menos preocupado com as ações típicas do gênero e ressaltando como o arado, ao invés de armas  é que seriam responsáveis pelo crescimento e grandeza do país.

Ernest Torrence, Tully Marshall e Alan Hale

A divisão da grande caravana: parte dela
preferiu a ilusão da riqueza fácil
Cenário magnífico - O momento crucial do triângulo amoroso se dá quando da chega a Fort Bridger quando o diretor procurou criar um suspense com a noiva sendo alvejada por uma flecha que anuncia o ataque dos índios. Faltou a James Cruze maior habilidade para tirar proveito dessa situação dramática. Se a trama amorosa não convence, por outro lado a longa jornada que é o assunto principal do épico impressiona a cada etapa que é vencida pela gigantesca caravana magnificamente fotografada na amplidão das terras e obstáculos a serem vencidos. A escolha do local onde ocorre o ataque dos nativos à caravana foi de rara felicidade e é geograficamente esplendoroso, propiciando imagens que dificilmente serão esquecidas com o círculo de carroções se fechando entre altas formações rochosas, cenário simplesmente espetacular.


Alguns poucos risos - Num tempo em que a comicidade no cinema atingia seu auge com Chaplin e Buster Keaton, James Cruze buscou atenuar o aspecto fortemente documental de “Os Bandeirantes” com encenação de sequências pretensamente engraçadas com as participações do batedor Jackson e do montanhês Bridger. Embora careteiro, o que não era considerado excessivo à época, Torrance (Jackson) é divertido, assim como Tully Marshal (Bridger) e só não provocam mais risos devido à mão pesada de Cruze para a comédia, ele que, entre outros cômicos, dirigiu algumas vezes Roscoe ‘Fatty’ Arbuckle, o ‘Chico Bóia’. O momento mais engraçado se dá quando o sisudo Jesse Wingate diz (a fala aparece num letreiro) que “se o líder Mórmon Brigham Young conseguiu chegar até aqui com suas esposas, eu também posso com meus carroções”. E a frase soa mais jocosa ainda quando se sabe que James Cruze era Mórmon...

A pilhéria com os Mórmons

O verdadeiro Jim Bridger
O caso Jim Bridger - Entre os muitos montanheses que ajudaram a desbravar as novas terras norte-americanas, um dos mais famosos foi Jim Bridger. As referências a ele são sempre como tendo sido um homem fortíssimo, alegre, contador de histórias e muito requisitado como batedor por conhecer como poucos regiões selvagens nas quais somente os destemidos e experientes sobreviviam. Jim Bridger tornou-se uma lenda e teve participação na história escrita por Emerson Hough, mas apresentado de modo pouco condizente com o que ele fora na realidade. O Jim Bridger vivido por Tully Marshall é espirituoso e brincalhão, porém beberrão e irresponsável, como na sequência em que faz desafio de pontaria com William Jackson. Bridger também é mostrado com duas esposas índias, ele que foi casado com três índias mas em períodos diferentes. Os descendentes de Jim Bridger não gostaram e processaram a Paramount solicitando uma indenização de um milhão de dólares pelos danos à imagem do célebre montanhês. Ao final do processo a Justiça deu ganho de causa à família. Inúmeras localidades e escolas norte-americanas homenagearam o caçador, explorador e guia com o nome ‘Jim Bridger’. Entre os muitos atores que personificaram Bridger em filmes ou séries de TV estão Van Heflin, Raymond Hatton, Harry Shannon, Dennis Morgan e Karl Swenson.

Tully Marshall. à direita Ernest Torrence, Guy Oliver e Tully Marshall

Western pioneiro - Além da referência a Brigham Young há uma outra  menção feita a Abraham Lincoln também na tentativa de dar maior credibilidade à história e sua localização no tempo. Porém a acurácia falhou ao mostrar os carroções, mesmo após os desafios da longa jornada, desfilarem com suas lonas impecáveis, sem rasgos ou as inevitáveis sujeira e desgates. Impressionante ao tempo em que foi lançado pelas imagens majestosas, “Os Bandeirantes” é um filme ao qual falta emoção. Assiste-se admirado por sua feitura, mas nunca com impacto maior capaz de enternecer ou fazer vibrar o espectador. Mesmo assim uma obra imprescindível não só ao gênero mas também ao cinema. Filme sobre pioneiros que foi o pioneiro ao mostrar de modo épico o desbravamento da América, abrindo caminho para “O Cavalo de Ferro” (The Iron Horse) que John Ford filmaria no ano seguinte e para os muitos westerns que abordariam o mesmo tema nas décadas seguintes.


Técnicos enfrentando as dificuldades das locações

6 comentários:

  1. Olá, Darci!
    Ficou simplesmente excelente e bastante completa esta resenha sobre o primeiro western épico! Muitas curiosidades que eu desconhecia foram expostas brilhantemente por você, como a participação do iniciante Delmer Daves como aderecista.
    Conheço sobre o escândalo que envolveu o nome da atriz Mary Miles Minter à misteriosa morte do diretor William Desmond Taylor, mas não sabia sobre ela ter sido a primeira escolha para o papel da mocinha deste filme. Por causa desse incidente até hoje não esclarecido, encerraram-se precocemente as carreiras dela e de Mabel Normand, sendo que Mary tinha apenas 20 anos de idade (ela viveria até os 82). Escândalos dessa magnitude insistiam em bater à porta da Paramount à época, a começar por aquele caso envolvendo o Chico Bóia, que também teve a carreira arruinada, ainda que tivesse conseguido provar sua inocência nos tribunais. Em 1920, a atriz Olive Thomas morreu depois de beber acidentalmente bicloreto de mercúrio, que seu marido, o ídolo das matinês Jack Pickford, estava usando como tratamento tópico para a sífilis; havia rumores de que tinha sido um suicídio. Em 1923, o ator/diretor Wallace Reid morreu devido à sua dependência de morfina. Em 1924, o ator/escritor/diretor Thomas H. Ince morreu misteriosamente a bordo do iate de William Randolph Hearst.
    Achei injusto a Paramount levar multa de 1 milhão de dólares (que prejuízo!!) por causa do papel de Tully Marshal, que 7 anos depois viveu um personagem bastante parecido em "A Grande Jornada" (1930), que é quase um remake de "Os Bandeirantes".
    Sobre o cinegrafista Karl Brown, ele aparece já idoso dando depoimento em alguns episódios da fundamental série de documentários "Hollywood: A Celebration of the American Silent Film". Neste episódio 9, dedicado aos grandes westerns mudos, incluindo, claro, o da atual resenha, aparecem em raras entrevistas também algumas lendas do gênero como Tim McCoy, Yakima Canutt e John Wayne: https://www.youtube.com/watch?v=MLuigo4yqjw
    Parabéns pela bela matéria! Aquele abraço!!

    ResponderExcluir
  2. Nosso blog acabou-se? Caso positivo ...uma pena.

    ResponderExcluir
  3. Gostaria de saber de Darci Fonseca,nunca mais escreveu o blog .

    ResponderExcluir