Nos tempos atuais em que há centenas e
centenas de cinéfilos que jamais assistiram a um western é bom lembrar que este
gênero, nas primeiras décadas do cinema, era dominante na preferência dos
espectadores. Os estúdios tinham na produção de faroestes com duração ao
redor de 60 minutos uma das suas mais rendosas sustentações
e entre os astros mais bem pagos de Hollywood estavam cowboys como William S.
Hart, Tom Mix e Harry Carey. Mesmo considerando que William S. Hart estrelou e
dirigiu filmes acima da média como “As Portas do Inferno” (Hell’s Hinges), de
1916, os westerns ficavam distantes do conceito de cinema de qualidade,
categoria reservada para cineastas como David W. Griffith e seus épicos,
Charles Chaplin e mesmo europeus como os expressionistas F.W. Murnau ou Robert
Wiene. O gênero western, ainda que estimado pelo público espectador, era
considerado apenas cinema de entretenimento e não levado na devida conta pelos
críticos. Tudo mudou com a produção e lançamento, em 1923, de “Os Bandeirantes”
(The Covered Wagon), longa-metragem com duração de 98 minutos e que, de
imediato, se transformou em sucesso de crítica e de público, tornando-se a
maior bilheteria do ano nos Estados Unidos. E o mais importante: fez com que os
faroestes passassem a ser olhados de modo diferente, agora muito mais
respeitoso.
Acima Emerson Hough e Jack Cunningham; abaixo Jesse L. Lasky e James Cruze |
Inédita
superprodução - Baseado em livro de Emerson Hough, autor de histórias que
narravam aventuras passadas no Oeste e com adaptação do experiente roteirista
Jack Cunningham, a direção e “Os Bandeirantes” coube a James Cruze, que até
então nada havia dirigido que chamasse maior atenção ao seu nome. Quem quer
conhecer melhor a filmografia de Cruze descobre que a maioria dos seus filmes
foram dados como perdidos, o que dificulta ainda mais uma avaliação do seu
trabalho como diretor. Estranhamente, até por ser um faroeste, a Paramount
optou por produzir este western como uma superprodução que seria rodada em
locações e ao custo estimado de 700 mil dólares que ao final chegou aos 800
mil. A título de comparação, “O Garoto”, de Chaplin, foi produzido em 1921
custando ao final 250 mil dólares sendo que Chaplin era sinônimo de
investimento garantido. Jesse L. Lasky, o poderoso sócio fundador da Paramount fez
questão de assumir pessoalmente a produção executiva do filme e de cara se
defrontou com problemas na formação do elenco principal. Isto porque Mary Miles
Minter, pensada para interpretar a heroína, teve seu nome relacionado ao
assassinato de um conhecido diretor e foi descartada. Como havia ainda a disposição
da Paramount de não gastar com astros que cobravam muito, o papel acabou nas
mãos de Lois Wilsonl.
Acima Mary Miles Minter e Lois Wilson; abaixo Ernest Torrence e Karl Brown |
Formação
do elenco - J. Warren Kerrigan, ator que contracenara com Lois
Wilson em duas dezenas de filmes seria o principal nome masculino da jornada
épica descrita em “Os Bandeirantes” e, mais uma vez, iria namorar a atriz em um
filme. Como terceiro nome do elenco e completando o triângulo amoroso da
história, foi chamado Alan Hale, ator de 30 anos de idade e no cinema desde os
20 anos. Hale se destacara como ‘Little John’ nas aventuras de Robin Hood
filmada em 1922 e estrelada por Douglas Fairbanks e voltaria a interpretar esse
mesmo papel na famosa versão de 1938 com Errol Flynn como protagonista. O
clássico “David, o Caçula”, de Henry King alcançara enorme êxito em 1922 e o
escocês Ernest Torrence havia sido um dos destaques desse filme, sendo escalado
para “Os Bandeirantes”. Também como importante coadjuvante, interpretando o caçador
Jim Bridger, juntou-se a Torrence (um batedor da caravana) o já veterano Tully
Marshal, e a Charles Ogle que atuou como o chefe da expedição. A difícil missão
de comandar a equipe de cinegrafistas coube ao jovem Karl Brown, então com
apenas 26 anos mas acumulando bastante experiência tendo trabalhado como assistente
em “Intolerância”. No entanto o que levou a Paramount a confiar em Karl Brown
foram as técnicas cinematográficas que ele havia criado como a dupla impressão
de negativos e projeção com modelos miniaturizados, técnicas então
revolucionárias.
Delmer Daves |
Preocupação
com a autenticidade - O enorme grupo de técnicos e mais os
atores rumou para as locações que se desenvolveram em Utah, Arizona, Oregon, Deserto
de Sonora na Califórnia e Nevada, enquanto o produtor Jesse L. Lasky controlava
à distância as despesas com esse western, uma verdadeira superprodução se
considerado o conjunto que o envolveu. Os índios que são vistos em “Os
Bandeirantes” são todos eles indígenas de verdade demonstrando a preocupação da
produção com a autenticidade. Lasky acreditava em novos talentos e assim como o
jovem Karl Brown respondeu pela cinematografia, a outro técnico ainda mais
jovem chamado Delmer Daves, de apenas 18 anos de idade, foi atribuído chefiar o
departamento de acessórios e adereços também visando a maior genuinidade de
tudo que seria visto na tela. Não consta da biografia de Delmer Daves qualquer
outro trabalho anterior nessa área mas o certo é que praticamente nenhum
detalhe escapou ao jovem futuro diretor de tantos westerns clássicos.
Bizões duplicados pela técnica do cinegrafista Karl Brown |
Rebanhos
e manadas - Um grupo de conselheiros técnicos e historiadores foi
igualmente contratado. O número de pessoas envolvidas nas locações chegou a
três mil e em alguns locais onde durante o dia o calor passava de 40 graus,
baixando à noite para temperaturas negativas. A essas despesas se juntaram às
dos 500 carroções que descendentes dos pioneiros ainda mantinham como
recordação e que foram alugados para as filmagens. Enormes rebanhos de gado,
mil cavalos, 200 mulas igualmente foram transportados para os locais de
filmagens. E até mesmo búfalos que já não mais existiam em rebanhos tão grandes
quanto o necessário foram simulados por truques da ainda incipiente
cinematografia. Naquele tempo não vigiam as normas de proteção aos animais e
pelo menos dois cavalos morreram em sequências mais perigosas como a da
travessia de um rio. Nunca é demais lembrar que os épicos de D.W. Griffith
foram quase totalmente filmados em estúdio, enquanto a colossal produção de “Os
Bandeirantes” obrigou a um estúdio ambulante através de inóspitas regiões.
Centenas de cavalos na travessia de um rio |
Lançamento
e impacto - Findas as filmagens e após a fase de edição, o lançamento
de “The Covered Wagon” ocorreu nos Estados Unidos em março de 1923. O sucesso
foi estrondoso e para muitos foi considerado o mais importante de todas as
produções cinematográficas norte-americanas. Para exibição no Brasil o sugestivo
título original foi substituído por “Os Bandeirantes”, isto porque na primeira
metade do século passado os bandeirantes de nossa História eram mostrados como
heróis desbravadores, o que certamente atrairia mais público para ver o filme.
Em Portugal, onde poucos sabiam o que seria um ‘bandeirante’, o título
escolhido foi o muito mais apropriado: “A Caravana Gloriosa”.
Belos pôsteres anunciando o western épico |
Westward, Ho! - Uma caravana liderada por Jesse
Wingate (Charles Ogle) parte de Wesport, no Kansas, com destino ao Oregon, onde
os aventureiros se instalariam buscando vida melhor. A esse grupo de
desbravadores junta-se uma segunda caravana chefiada por Will Banion (J. Warren
Kerrigan) e que tem como batedor William Jackson (Ernest Torrance). Pelo
caminho, a imensa e agora duplicada caravana, se defronta com problemas de toda
ordem como as inevitáveis intempéries, as difíceis travessias de rios e
escaladas de morros e os ataque de índios. Os mais fracos da caravana são
vencidos pelas adversidades e algumas famílias optam por retornar ao Kansas e
em determinado momento surge a notícia da descoberta de ouro em abundância na
Califórnia, o que faz com que mais membros da caravana desistam de chegar ao
Oregon. Molly Wingate (Lois Wilson), a filha de Jesse Wingate está pronta para
se casar com Sam Woodhull (Alan Hale), mas ao conhecer Will Banion se interessa
por ele, fica indecisa e acaba desistindo do casamento. O inconformado Woodhull
usa de violência e de intrigas para manchar a reputação de Banion mas é este
quem termina por conquistar o amor de Molly após se descobrir que Banion é, de
fato, um homem íntegro. Banion é reintegrado ao seu posto no Exército, deixando
de pairar dúvidas sobre sua conduta como oficial. Afinal a caravana cumpre seu objetivo
e os pioneiros iniciam a tão sonhada nova vida no Oregon, quase dois mil
quilômetros distante do ponto de partida.
J. Warren Kerrigan e Lois Wilson |
Um
ator sem nenhum carisma - A saga dos pioneiros de “Os
Bandeirantes” foi filmada em forma de documentário ao qual foi inserida uma
subtrama amorosa com desfecho por demais previsível. Porém é preciso lembrar
que este é um filme de 1923 e como tantos outros o enredo foge de maior
complexidade. O grande pecado deste épico, porém, reside na escolha do ator
principal, J. Warren Kerrigan, incapaz de criar empatia com o espectador e que
cansa a cada vez que entra em cena com sua insipidez e excesso de maquiagem.
Quase o mesmo pode ser dito de Lois Wilson e ambos contribuem negativamente
para que qualquer tipo de emoção seja transmitida pelos personagens. Prevaleceu
a ideia de a epopeia ser mais importante que as clássicas tramas amorosas e
para isso as inexpressivas atuações de Kerrigan e Lois Wilson contribuíram
ainda que involuntariamente. Por sorte outros tipos do filme são mais vivos e
interessantes como o batedor Jackson, o caçador Bridger e a senhora Wingate
(Ethel Wales), mãe de Molly, todos eles dando mais sabor às histórias paralelas
à epopeia dos pioneiros. Sem dúvida um western, no entanto um filme menos
preocupado com as ações típicas do gênero e ressaltando como o arado, ao invés
de armas é que seriam responsáveis pelo
crescimento e grandeza do país.
Ernest Torrence, Tully Marshall e Alan Hale |
A divisão da grande caravana: parte dela preferiu a ilusão da riqueza fácil |
Cenário
magnífico - O momento crucial do triângulo amoroso se dá quando da
chega a Fort Bridger quando o diretor procurou criar um suspense com a noiva sendo
alvejada por uma flecha que anuncia o ataque dos índios. Faltou a James Cruze
maior habilidade para tirar proveito dessa situação dramática. Se a trama
amorosa não convence, por outro lado a longa jornada que é o assunto principal
do épico impressiona a cada etapa que é vencida pela gigantesca caravana magnificamente
fotografada na amplidão das terras e obstáculos a serem vencidos. A escolha do
local onde ocorre o ataque dos nativos à caravana foi de rara felicidade e é
geograficamente esplendoroso, propiciando imagens que dificilmente serão
esquecidas com o círculo de carroções se fechando entre altas formações
rochosas, cenário simplesmente espetacular.
Alguns
poucos risos - Num tempo em que a comicidade no cinema atingia seu auge
com Chaplin e Buster Keaton, James Cruze buscou atenuar o aspecto fortemente
documental de “Os Bandeirantes” com encenação de sequências pretensamente
engraçadas com as participações do batedor Jackson e do montanhês Bridger.
Embora careteiro, o que não era considerado excessivo à época, Torrance
(Jackson) é divertido, assim como Tully Marshal (Bridger) e só não provocam
mais risos devido à mão pesada de Cruze para a comédia, ele que, entre outros
cômicos, dirigiu algumas vezes Roscoe ‘Fatty’ Arbuckle, o ‘Chico Bóia’. O
momento mais engraçado se dá quando o sisudo Jesse Wingate diz (a fala aparece
num letreiro) que “se o líder Mórmon Brigham Young conseguiu chegar até aqui
com suas esposas, eu também posso com meus carroções”. E a frase soa mais jocosa
ainda quando se sabe que James Cruze era Mórmon...
A pilhéria com os Mórmons |
O verdadeiro Jim Bridger |
O
caso Jim Bridger - Entre os muitos montanheses que
ajudaram a desbravar as novas terras norte-americanas, um dos mais famosos foi
Jim Bridger. As referências a ele são sempre como tendo sido um homem
fortíssimo, alegre, contador de histórias e muito requisitado como batedor por
conhecer como poucos regiões selvagens nas quais somente os destemidos e
experientes sobreviviam. Jim Bridger tornou-se uma lenda e teve participação na
história escrita por Emerson Hough, mas apresentado de modo pouco condizente
com o que ele fora na realidade. O Jim Bridger vivido por Tully Marshall é
espirituoso e brincalhão, porém beberrão e irresponsável, como na sequência em
que faz desafio de pontaria com William Jackson. Bridger também é mostrado com
duas esposas índias, ele que foi casado com três índias mas em períodos
diferentes. Os descendentes de Jim Bridger não gostaram e processaram a
Paramount solicitando uma indenização de um milhão de dólares pelos danos à
imagem do célebre montanhês. Ao final do processo a Justiça deu ganho de causa
à família. Inúmeras localidades e escolas norte-americanas homenagearam o
caçador, explorador e guia com o nome ‘Jim Bridger’. Entre os muitos atores que
personificaram Bridger em filmes ou séries de TV estão Van Heflin, Raymond
Hatton, Harry Shannon, Dennis Morgan e Karl Swenson.
Tully Marshall. à direita Ernest Torrence, Guy Oliver e Tully Marshall |
Western
pioneiro - Além da referência a Brigham Young há uma outra menção feita a Abraham Lincoln também na
tentativa de dar maior credibilidade à história e sua localização no tempo.
Porém a acurácia falhou ao mostrar os carroções, mesmo após os desafios da
longa jornada, desfilarem com suas lonas impecáveis, sem rasgos ou as
inevitáveis sujeira e desgates. Impressionante ao tempo em que foi lançado
pelas imagens majestosas, “Os Bandeirantes” é um filme ao qual falta emoção.
Assiste-se admirado por sua feitura, mas nunca com impacto maior capaz de
enternecer ou fazer vibrar o espectador. Mesmo assim uma obra imprescindível
não só ao gênero mas também ao cinema. Filme sobre pioneiros que foi o pioneiro
ao mostrar de modo épico o desbravamento da América, abrindo caminho para “O
Cavalo de Ferro” (The Iron Horse) que John Ford filmaria no ano seguinte e para
os muitos westerns que abordariam o mesmo tema nas décadas seguintes.
Técnicos enfrentando as dificuldades das locações |
Olá, Darci!
ResponderExcluirFicou simplesmente excelente e bastante completa esta resenha sobre o primeiro western épico! Muitas curiosidades que eu desconhecia foram expostas brilhantemente por você, como a participação do iniciante Delmer Daves como aderecista.
Conheço sobre o escândalo que envolveu o nome da atriz Mary Miles Minter à misteriosa morte do diretor William Desmond Taylor, mas não sabia sobre ela ter sido a primeira escolha para o papel da mocinha deste filme. Por causa desse incidente até hoje não esclarecido, encerraram-se precocemente as carreiras dela e de Mabel Normand, sendo que Mary tinha apenas 20 anos de idade (ela viveria até os 82). Escândalos dessa magnitude insistiam em bater à porta da Paramount à época, a começar por aquele caso envolvendo o Chico Bóia, que também teve a carreira arruinada, ainda que tivesse conseguido provar sua inocência nos tribunais. Em 1920, a atriz Olive Thomas morreu depois de beber acidentalmente bicloreto de mercúrio, que seu marido, o ídolo das matinês Jack Pickford, estava usando como tratamento tópico para a sífilis; havia rumores de que tinha sido um suicídio. Em 1923, o ator/diretor Wallace Reid morreu devido à sua dependência de morfina. Em 1924, o ator/escritor/diretor Thomas H. Ince morreu misteriosamente a bordo do iate de William Randolph Hearst.
Achei injusto a Paramount levar multa de 1 milhão de dólares (que prejuízo!!) por causa do papel de Tully Marshal, que 7 anos depois viveu um personagem bastante parecido em "A Grande Jornada" (1930), que é quase um remake de "Os Bandeirantes".
Sobre o cinegrafista Karl Brown, ele aparece já idoso dando depoimento em alguns episódios da fundamental série de documentários "Hollywood: A Celebration of the American Silent Film". Neste episódio 9, dedicado aos grandes westerns mudos, incluindo, claro, o da atual resenha, aparecem em raras entrevistas também algumas lendas do gênero como Tim McCoy, Yakima Canutt e John Wayne: https://www.youtube.com/watch?v=MLuigo4yqjw
Parabéns pela bela matéria! Aquele abraço!!
Nosso blog acabou-se? Caso positivo ...uma pena.
ResponderExcluirGostaria de saber de Darci Fonseca,nunca mais escreveu o blog .
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