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5 de fevereiro de 2020

CHOQUE DE ÓDIOS (WICHITA) – WYATT EARP: E A LENDA CONTINUA



Daniel B. Ullman; Jacques Tourneur
Wyatt Earp é um personagem histórico e polêmico que foi muitas vezes levado ao cinema de modo, para dizer o mínimo, discutível. E o maior culpado pela imagem do famoso homem da lei edificada em filmes foi Stuart N. Lake, espécie de biógrafo oficial de Earp e que se distanciava da verdade a cada linha que escrevia sobre o biografado. A história e roteiro de “Choque de Ódios” (Wichita), de autoria do prolífico escritor-roteirista Daniel B. Ullman, contou com a consultoria de Stuart N. Lake, o que garante que o Wyatt Earp desta nova aventura será muito parecido com o mítico personagem que o cinema mostrou nos anos 30, 40 e 50, inclusive em uma série de TV. O curioso é que, mesmo ganhando uma falsa imagem irrepreensível de herói austero e humano, os westerns tendo Wyatt Earp como protagonista têm, como regra serem muito bons, um deles uma obra-prima que foi “Paixão dos Fortes” (My Darling Clementine) de John Ford. Quem dirigiu “Choque de Ódios” foi o francês Jacques Tourneur, que construiu uma excelente reputação com bons filmes em gêneros diversos, de clássicos do terror até “Fuga do Passado”, um dos melhores ‘noir’ já filmados. Joel McCrea que em sua carreira interpretou Buffalo Bill, Sam Houston e Bat Masterson é Wyatt Earp neste western de 1955.


Joel McCrea; Robert J. Wilke e Walter Sande
Pacificando Wichita - Deixando a atividade de caçador de búfalos, Wyatt Earp (Joel McCrea) ruma a Wichita com 2.460 dólares no bolso tencionando se estabelecer como comerciante. Wichita está prestes a ganhar uma estrada de ferro o que favorecerá os criadores de gado no transporte do rebanho para outras regiões do país. Ao mesmo tempo em que Earp chega à cidade dezenas de vaqueiros texanos também adentram Wichita com a intenção de se divertir, diversão que sempre se transforma em desordem e não raro com mortes de inocentes. Mal entrara na cidade e Wyatt Earp evita um assalto a banco, recebendo por isso convite do prefeito para ser o xerife de Wichita e impor a lei e a ordem. Ele aceita e age com rigor prendendo alguns vaqueiros, o que contraria interesses de homens poderosos homens de negócio, um deles Doc Black (Edgar Buchanan). Inicialmente Wyatt conta somente a ajuda do jovem Bat Masterson (Keith Larsen), porém os irmãos de Earp, Jim (John Smith) e Morgan (Peter Graves) surgem para reforçar o grupo do xerife que agora tem de enfrentar a revolta dos vaqueiros contra sua gestão. Além destes o comerciante e o proeminente Sam McCoy (Walter Coy) também se voltam contra Earp que, afinal, comprova ser fundamental para a paz que Wichita precisa ser imposta a lei e a ordem na cidade. Earp se casa com Laurie McCoy (Vera Miles), filha de Sam McCoy e, após pacificar Wichita, Earp e a esposa partem para Dodge City, em nova etapa de sua vida como homem da lei.

Joel McCrea; McCrea e Walter Coy
Fugindo dos lugares comuns - “Choque de Ódios” é um western com todas as características de filme ‘B’, seja na metragem bem como na composição do elenco, mas a Allied Artists apostou alto na parte técnica ao produzir com este faroeste sua primeira película no processo Cinemascope e também em cores. E o estúdio fez feliz escolha ao entregar a direção a Jacques Tourneur que realizou um faroeste que do início ao fim prende o espectador. Tourneur foge dos lugares comuns do gênero e dá ênfase a detalhes marcantes como a morte do menino atingido por uma bala perdida e o desespero da mãe com a criança morta no colo. Em outra sequência, esta verdadeiramente admirável, Doc Black alicia dois homens com aparência de pistoleiros para que executem Wyatt Earp num saloon. A cena é concebida de tal maneira que gera um invulgar suspense desfeito com a revelação de quem são os dois supostos pistoleiros. Sequências como essas produzem a atmosfera incomum aos westerns e que tornam “Choque de Ódios” um faroeste quase perfeito.

Joel McCrea
Duelos rápidos - O ‘quase’ fica por conta de alguns pequenos senões que o filme apresenta, a começar pela canção interpretada por Tex Ritter e que não possui a força da balada “High Noon” de “Matar ou Morrer”. Ainda que o autor dos versos seja o mesmo Ned Washington, falta a vibração da melodia de Dimitri Tiomkin pois a canção “Wichita” tem música composta por Hans J. Salter. Os versos são insossos e Tex Ritter não transmite a mínima emoção, aquilo que Frankie Laine fazia com maestria. Há ainda a questão de Joel McCrea, aos 49 anos de idade parecer velho demais para ser o par romântico da jovem Vera Miles. Hollywood tinha a mania de desconsiderar a diferença de idade e são muitos os westerns em que Gary Cooper, Randolph Scott e James Stewart namoraram moças que mais pareciam suas filhas. O vilão verdadeiro do filme é Edgar Buchanan e são mal aproveitados atores como Robert J. Wilke, Jack Elam e mesmo Lloyd Bridges, sempre ótimos como homens maus, especialmente Wilke e Elam. Por fim, era de se esperar que os irmãos Earp e mais Bat Masterson travassem momentos mais intensos de confronto com os oponentes, mas Tourneur procurou ser econômico nesse aspecto. O duelo final entre Wyatt Earp e o vaqueiro Gyp Clements (Bridges) chega a frustrar por não ser melhor elaborado. E vale lembrar que, por ser um filme para ser exibido em programa duplo, a metragem de 81 minutos não permitiu um trabalho ainda mais elaborado do diretor.

Texanos desordeiros - A rigor só há um vilão neste western e ele é Doc Black, comerciante que sequer mantém uma quadrilha e a quem não interessa que os vaqueiros deixem de visitar a cidade. O assalto a banco é praticado por bandidos de passagem e os cowboys texanos com seus maus modos não chegam a ser exatamente foras-da-lei. A insurreição se dá porque o xerife anterior era fraco e seu desconhecido substituto decreta a ‘lei do desarmamento’, o que significa um insulto àqueles acostumados a carregar seus Colts para se defender ou para intimidar. Os texanos são vistos aqui como desordeiros e fica-se a imaginar a insatisfação daquele Estado diante dessa imagem, não raramente citado em tom de deboche nos filmes. O Wyatt Earp da história é relutante em aceitar a insígnia e prestar juramento, só o fazendo porque sua consciência falou mais alto ao ver a criança morta. Outro fator, este implícito, é o interesse de Earp pela bela jovem Laurie McCoy (curiosamente Vera Miles tem o mesmo nome da personagem da que interpreta em “Rastros de Ódio”, seu filme seguinte). Vera Miles estava com 26 anos em 1955, enquanto Joel McCrea chegava aos 50 e sabe-se que Wyatt Earp passou por Wichita, lá permanecendo por uma temporada, quanto estava com a idade de 26 anos.

Joel McCrea e Vera Miles

Joel McCrea
Xerife contra o jogo e a bebida - Subliminarmente “Choque de Ódios” antepõe interesses capitalistas aos dos cidadãos. Wyatt Earp tem que lutar não só contra os vaqueiros embriagados mas tem como adversários homens que temem ver seus negócios deixarem de prosperar. Quando chega a Wichita o jornalista Whiteside (Wallace Ford) elogia o recém chegado Wyatt por não ser mais um forasteiro disposto a investir no jogo, bebida (e prostituição), como outros o fizeram. Justamente Wyatt Earp que tinha irrefreável inclinação pelas cartas. Wichita caminhava para se tornar outra cidade do vício e o estoico xerife é quem impede e com isso desperta a ira dos capitalistas. O título nacional exagera ao denominar o filme como “Choque de Ódios”. Earp não tem ódio, tanto que só mata em última instância, não hesitando, no entanto, em prender os desordeiros.

Sam Peckinpah e Joel McCrea
Não atire, sou só o caixa Sam Peckinpah! - Além de um tanto maduro para interpretar o jovem Wyatt Earp, falta ao sóbrio Joel McCrea o carisma que outros atores (Fonda, Lancaster e mais tarde Kurt Russell) deram ao personagem. Vera Miles pouco tem a fazer e o trio de veteranos Wallace Ford, Edgar Buchanan e Carl Benton Reid, além de Walter Coy tem momentos e falas bem melhores. E é uma pena, como já foi dito, que não se dimensionasse os papeis de Robert J. Wilke, Jack Elam e Lloyd Bridges, todos relativamente obscuros no filme e com poucas oportunidades de mostrar talento. John Smith e Peter Graves tem igualmente participações pequenas. Uma curiosidade é a presença de Sam Peckinpah como o caixa do banco assaltado, ele que alguns anos depois realizaria alguns dos melhores westerns do cinema, um deles, estrelado por Joel McCrea e que foi “Pistoleiros do entardecer” (Ride the High Country). “Choque de Ódios” recebeu, merecidamente, um Golden Globe de ‘Melhor Drama em Locações Externas’ e as belas imagens do cinegrafista Harold Lipstein são acompanhadas pela música de Hans J. Salter, da escola de Max Steiner. Este desaparecido western demorou anos para ser redescoberto e isso só ocorreu com seu lançamento em DVD, reafirmando o talento de Jacques Tourneur, um diretor que merece sempre a maior atenção. Grande programa!



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