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28 de abril de 2013

RENEGANDO MEU SANGUE (Run of the Arrow) – WESTERN MENOS INSPIRADO DE SAM FULLER


Quando filmou “Renegando meu Sangue”, em 1957, Samuel Fuller já era reconhecido como um cineasta controvertido. Pelo inusitado dos temas seus filmes nunca deixavam de impressionar, o que ocorrera nos dois primeiros westerns escritos e dirigidos por Fuller. Esses filmes foram “Eu Matei Jesse James” (I Shot Jesse James) e “O Barão Aventureiro” (The Baron of Arizona). Sob o ponto de vista de Fuller, Robert Ford fez um bem à humanidade ao assassinar o perverso Jesse James. E o Barão do Arizona não conquistara esse título com a violência típica vista em tantos filmes, mas sim através da forja de documentos centenários. Em “Dragões da Violência” (Forty Guns), seu quarto faroeste, Fuller mescla poder, corrupção e amor no Velho Oeste, onde os homens são subjugados por uma mulher forte e resoluta. “Renegando meu Sangue”, filmado no mesmo ano de “Dragões da Violência” é também um western estranho e insólito.


Rod Steiger e Marlon Brando em cena de
"Sindicato de Ladrões".
Complexo de Marlon Brando - Produzido pela moribunda RKO em parceria com a Global Enterprises (empresa do próprio Samuel Fuller), “Renegando meu Sangue” teve de ser ser distribuído pela Universal Pictures devido à falência da RKO. Fuller queria Gary Cooper para liderar o elenco deste faroeste, mas teve que se contentar com Rod Steiger, ator com ‘complexo de Marlon Brando’ e que tinha acessos de estrelismos como se fosse o próprio Brando. Depois de brilhar na televisão como ‘Marty’, personagem que daria um Oscar a Ernest Borgnine, Rod Steiger chamou a atenção no cinema como o irmão de Marlon Brando em “Sindicato de Ladrões”, atuação que lhe valeu fama e uma indicação ao Oscar. A partir daí Rod Steiger passou a ser uma dor de cabeça para quem o dirigisse, ‘construindo’ os personagens que interpretava do jeito que entendia. Foi assim que Steiger quase destruiu “Ao Despertar da Paixão” (Jubal) com sua atuação excessiva e com uma insuportável tonalidade vocal. E Steiger se superou em “Renegando meu Sangue”, fazendo com que Sam Fuller, durante as filmagens, mordesse raivosamente seus inseparáveis charutos. Além de Rod Steiger havia ainda a bela Sara Montiel para comprometer este terceiro faroeste de Fuller.

O'Meara dispara contra o Tenente Driscoll
e em seguida come sobre o corpo inerte.
O último tiro da Guerra Civil - O próprio Samuel Fuller escreveu e dirigiu a história do soldado O’Meara (Rod Steiger) da Infantaria de um Regimento da Virginia. Esse soldado de origem irlandesa,não se conforma com a derrota sulista e consequente rendição assinada pelo General Lee passando a renegar sua pátria. O’Meara havia disparado o último tiro da Guerra Civil contra um certo Tenente Driscoll (Ralph Meeker), da Cavalaria da U.S. Army. O’Meara abandona seus parentes, amigos e o Estado da Virginia, rumando para o Oeste, levando consigo, como souvenir, a bala do último tiro extraída do Tenente Driscoll, ferido não mortalmente. Em contato com os índios Sioux, O’Meara passa a admirar a cultura dos nativos e torna-se um deles ao se casar com Yellow Moccasin (Sara Montiel) e ao ficar amigo do chefe Blue Buffalo (Charles Bronson). Recuperado do ferimento e obstinado por uma promoção no Exército, o Tenente Driscoll se vê incumbido de construir o Forte Abraham Lincoln em pleno território Sioux. Para isso Driscoll confronta os índios que em número infinitamente superior aniquilam sua tropa. Aprisionado, torturado e prestes a ter a garganta cortada, Driscoll é morto por O’Meara que dispara a mesma bala com a qual ferira o Tenente anteriormente, matando-o desta vez. Com isso, piedosamente, O’Meara livra Driscoll da tortura e da morte violenta, prática comum dos Sioux. Essa atitude demonstra que O’Meara nunca poderá ser um autêntico Sioux e o ex-rebelde confederado segue para um novo caminho acompanhado de sua esposa índia.

Acima a rendição de Lee (montado em Traveller), com
Ulysses S. Grant à esquerda; abaixo O'Meara com
sua mãe, interpretada por Olive Carey.
Rebelde sem causa - “Renegando meu Sangue” é um filme supervalorizado, menos por suas qualidades e mais por ser outro western pró-índio, na linha iniciada com “O Caminho do Diabo” (Devil’s Doorway) e “Flechas de Fogo” (Broken Arrow), ambos de 1950. Cita-se frequentemente que este western de Samuel Fuller seria ainda o inspirador de “Dança com Lobos” (Dances with Wolves), com o qual tem algumas poucas similaridades. A crise de identidade do personagem O’Meara e seu encontro com outra cultura a qual passa a admirar seria vista de forma muito mais coerente (e poética) em “Lawrence da Arábia”. A rebeldia de O’Meara é justificada por ele não aceitar a tirania ianque que gosta de impor ordens aos derrotados na guerra. Não se explica, no entanto, por qual razão alguém tão rancoroso e ressentido não tenha seguido outros rebeldes e imigrado para a América do Sul, como fizeram tantos sulistas. Segundo Fuller, o personagem odioso e vingativo de O’Meara é também “burro e teimoso” e só mesmo alguém assim pode dar ouvidos ao batedor Walking Coyote (Jay C. Flippen), Sioux que trabalha para o Exército como batedor. Walking Coyote é um índio alcoólatra que abandonou sua tribo, onde, segundo diz, poderia ter sido chefe, apenas não tendo sido por “não tolerar ter que fazer política”, o que, por suas palavras, ocorre também entre os índios.

O Tenente Driscoll (Ralph Meeker), personagem
calcado no General Custer.
Sequência imaginativa - Admirável em “Renegando meu Sangue” é a capacidade de Samuel Fuller de realizar sequências de grande efeito visual com os escassos recursos financeiros que teve à sua disposição. As sequências de ação, especialmente o grande ataque final dos Sioux, são estupendas com excelente uso dos dublês, entre eles Chuck Roberson. E esse extraordinário stuntmen, que tem pequeno papel interpretando um sargento da Cavalaria, participa de uma imaginativa sequência em que salva o indiozinho Silent Tongue (Billy Miller) da areia movediça. O garoto é salvo mas o sargento é quem é engolido pela areia movediça na qual entra literalmente de cabeça, vendo-se por último suas pernas desaparecendo naquela armadilha natural. Cena típica de Sam Fuller que muito provavelmente ficou ma memória de Sergio Leone pois para se salvar da areia movediça o indiozinho mudo toca freneticamente sua gaita de boca. O tenente Driscoll, destilando seu ódio pelos índios é um esboço da personalidade doentia do General Custer. Menos vaidoso que o comandante do 7.º Regimento de Cavalaria, é certo, mas capaz de criar seu próprio Little Big Horn e levar à morte quase toda sua tropa.

Sequência espetacular em que o pequeno indiozinho mudo afunda lentamente na
areia movediça e toca desesperado sua gaita de boca tentando ser ouvido.
Um sargento da Cavalaria (Chuck Roberson) pendura-se perigosamente num
galho de árvore e retira o menino, balançando-o e jogando- na margem do
poço de areia movediça. O galho quebra-se e o sargento cai de cabeça
não conseguindo se salvar.

Jay C. Flippen com a horrenda peruca;
Charles Bronson no auge de sua forma
física, H.M. Wynant e Rod Steiger.
Descuidos de Sam Fuller - O título original “Run of the Arrow” faz referência a um cruel jogo Sioux que permite a seus prisioneiros tentar escapar correndo descalços por uma planície pedregosa em direção a uma flecha disparada e fincada no solo. Após o prisioneiro ter ultrapassado a flecha, um guerreiro calçado com mocassins persegue velozmente o prisioneiro, dando fatalmente cabo de sua vida. Se o prisioneiro escapar recebe a liberdade como prêmio. E Fuller tenta fazer o espectador acreditar que o gorducho Rod Steiger com os pés ensanguentados seja mais rápido que o atlético e feroz Sioux Crazy Wolf (H.M. Wynant). E o jogo se repete de forma invertida, com Steiger correndo atrás de um descalçado Crazy Wolf. Lembrado por ser o primeiro filme norte-americano a mostrar sangue na tela, “Renegando meu Sangue” é também lembrado por castigar o sempre correto coadjuvante Jay C. Flippen fazendo-o usar a mais bizarra peruca já vista em um western, modelo ‘Moe Howard’, dos Três Patetas e que ornava a cabeça do nosso ‘Zacarias’ dos Trapalhões. A intenção de Fuller de ressaltar o caráter nobre e leal dos índios é desnecessariamente enfatizada com a exibição da beleza física dos nativos, apolíneos como Blue Buffalo (Charles Bronson) e Crazy Wolf. E há ainda a atriz Sara Montiel que após aparecer bem em “Vera Cruz” surge tão bela quanto insonsa como índia Sioux em “Renegando meu Sangue”. Sem falar Inglês, a atriz foi dublada por Angie Dickinson. Certamente a espanhola Sarita foi uma imposição que Fuller teve que aceitar, pois Hollywood queria fazer dela uma nova Dolores Del Río. Após três filmes norte-americanos e um casamento anulado com Anthony Mann, Sara Montiel voltou para a Espanha onde se consagrou em melodramas musicais de enorme sucesso de público. 

O'Meara (Rod Steiger) com Yellow Moccasin Sara Montiel, sua esposa Sioux.

Sam Fuller, com o charuto, ao lado do cinegrafista
Joseph Biroc, com quem fez quatro filmes.
Western desigual - O elenco de “Renegando meu Sangue” tem ainda Brian Keith, contraponto ao overacting de Rod Steiger e à cansativa arrogância que Ralph Meeker dá a seu personagem. Charles Bronson com o corpo untado e luzidio é uma pálida imagem do astro que viria a ser alguns anos depois. Os veteranos Olive Carey e Tim McCoy têm pequenos papéis, assim como Frank DeKova e Carleton Young. Diferentemente de “Dragões da Violência” que é um completo exercício de como operar uma câmara cinematográfica, “Renegando meu Sangue” é um filme mais contido nesse aspecto, ainda que o cinegrafista seja o mesmo excelente Joseph Biroc do western com Barbara Stanwyck. A música de Victor Young pontua discretamente este terceiro faroeste de Fuller, exceto na impactante cena inicial, o que é típico do diretor. O final aberto diz ao espectador ‘O fim desta história só pode ser escrito por você’. Bastante desigual, alternando momentos de grande criatividade com outros verdadeiramente ridículos, “Renegando meu Sangue” merece ser visto justamente por ser um filme de Samuel Fuller. Os filmes desse diretor são polêmicos porque possibilitam discussões e novas descobertas a cada revisão. O difícil, porém, é aguentar por mais de uma vez o sotaque irlândes de Rod Steiger expresso com a mais irritante das vozes.

Sara Montiel acima ao lado de Rod Steiger durante pausa das filmagens.
Abaixo lindíssima na fase espanhola de enorme sucesso com "La Violetera",
"Meu Último Tango" e "Carmen de Ronda". Ao lado já idosa mas muito vaidosa.
Sarita Montiel faleceu em Madri no último dia 8 de abril (2013), aos 85 anos de idade.

8 comentários:

  1. Mais uma bela resenha, Darci. Ainda não vi esse western, mas vou tentar remediar isso logo que possível. As questões levantadas e, claro, os nomes envolvidos no mesmo, fazem dele obrigatório a qualquer amante do gênero. Para mim, Rod Steiger teve, em Giù la testa, uma de suas melhores atuações. Gosto muito dela, ao contrário da que você comenta, de Jubal. O papel no western de Leone tinha outro dono certo, e era o páreo duríssimo do Eli Wallach. Gosto tanto do Eli que chego a acreditar que só com um cara como ele seria possível pensar em algo que ficasse melhor. Ah, a talentosa Sarita, realmente era belíssima! Mann, Cooper... foram homens de sorte.

    Grande Abraço!

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    1. Olá, Vinicius
      Obrigado pelo elogio. É inegável que Rod Steiger era um ator talentoso e o que não falta são filmes para comprovar isso. Mas Steiger se excedia muitas vezes no uso do 'Método'. Eli Wallach nunca mais falou com Leone depois que foi 'trocado' por Rod Steiger em Giù la Testa e tenho certeza que o filme ficaria ainda melhor com Eli.
      Um abraço do Darci

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  2. Depois de tantas barbas & bigodes, é um prazer ver que o blog voltou ao normal. Assisti esse filme há pouco tempo e concordo com você. Ele é mesmo muito desigual, cheio de boas intenções, mas com falhas na realização. E, sim, Rod Steiger está insuportável. Sarita Montiel, apesar da beleza jovem , não deixa marca nenhuma. Agora, foi covardia sua mostrar ela velhinha. Isso não se faz com as beldades do cinema, Darci!

    Um abraço
    José Tadeu

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    1. Tadeu e seu afiado humor...
      Essa de barbas & bigodes é muito boa. E de fato o que houve foi uma 'barberagem' da parte do editor quanto às fotos arquivadas no Picasa do Google.
      Hesitei em mostrar Sarita envelhecida, mas é sempre uma curiosidade, nunca mórbida, vermos como ficaram nossos ídolos ao envelhecer. Alguns se reclusam permanentemente pois querem perpetuar a imagem dos dias de glória, o que considero uma grande bobagem. Ver Brigitte Bardot em foto recente não vai mudar o que ela significou quando brincava com o imaginário dos homens.
      Você disse tudo: quando Rod Steiger quer ser charo ele se torna insuportável.
      Um abraço do Darci

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  3. Com a devida licença, alguns dos pontos negativos levantados pelo texto são absolutamente irrelevantes para a avaliação geral do filme. A peruca do Walking Coiote, a barriguinha do Rod Steiger etc. E o filme é menos pró-índio e mais sobre a crise de consciência do protagonista (e do próprio EUA por extensão), que não sabe qual bandeira deve defender.

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  4. Olá, Régis
    Não precisa pedir licença para discordar dos comentários feitos. Muito boas e pertinentes as suas observações sobre o filme de Sam Fuller.
    Darci

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  5. Olá, Darci!
    Vi este filme agora há pouco. Realmente ele alterna momentos bons e outros nem tanto. Concordo que o sotaque irlandês do protagonista deixou a desejar. Gostaria de fazer algumas observações sobre a resenha que acabo de ler: Nas fotos em que 'O'Meara dispara contra o Tenente Driscoll
    e em seguida come sobre o corpo inerte', na verdade, na 1ª foto, O'Meara estava prestes a disparar no General Grant, que acabara de vencer a guerra. Provavelmente você estivesse disso e usou aquele close (foto) apenas para ilustrar a matéria. E não é fato que este seja o primeiro filme americano a mostrar sangue na tela. Em "Jesse James" (1939), de Henry King, a personagem Mrs. Samuels (Jane Darwell) aparece ensangüentada quando morta pelos inescrupulosos da Ferrovia.
    Um filme nota 7.
    Aquele abraço!

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