Anthony Mann já havia filmado uma
tragédia familiar no Velho Oeste, com “Almas em Fúria”, em 1950. Cinco anos depois
e após uma parceria de quatro westerns com James Stewart, Mann decidiu se aproximar
mais uma vez do tema com aquele que seria o quinto e último faroeste da
parceria, “Um Certo Capitão Lockhart” (The Man from Laramie). Com alguns personagens
bastante próximos da peça “Rei Lear”, de William Shakespeare, é notória a
intenção de Mann em dar uma dimensão trágica a este faroeste. Para isso contou
com a ajuda dos roteiristas Philip Yordan e Frank Burt que produziram um
roteiro em que estão um barão de gado seu filho e seu capataz, cowboys
pretendentes a herdar a vasta extensão de terras do velho barão. Assim como
Gloucester, no drama de Shakespeare, o barão fica cego e seus filhos, um ilegítimo, se
enfrentam mortalmente. No entanto o principal personagem do filme é o homem do
Forte Laramie, o Capitão Lockhart.
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Donald Crisp |
O PODEROSO WAGGOMAN - Will Lockhart
(James Stewart) é um capitão do Exército norte-americano destacado para a
missão de descobrir o contrabandista de armas que vende rifles de repetição
para os apaches. Disfarçado de transportador de suprimentos comerciais Lockhart encontra o que restou de uma patrulha dizimada pelos apaches, sendo
que um dos soldados mortos é seu próprio irmão mais jovem. Agora com dupla
razão para cumprir sua missão, Lockhart chega com uma carga de tecidos à cidade
de Coronado, no Novo México. A carga é entregue à comerciante Barbara Waggoman
(Cathy O’Donnell) que sugere a ele que, para não retornar com as carroças vazias,
recolha sal que há em abundância numa área próxima, de propriedade de seu tio Alec Waggoman (Donald Crisp). A região faz parte do império de Waggoman,
poderoso barão de gado em cujas terras “pode-se viajar por três dias até
encontrar os limites”. Waggoman tem um filho chamado Dave (Alex Nicol), moço
arrogante e violento. Dave ao ver Lockhart enchendo as carroças de sal faz com
que seus homens lacem e imobilizem Lockhart, queimem as carroças e matem as
mulas que puxavam as carroças. Lockhart é salvo com a chegada de Vic Hansbro
(Arthur Kennedy), o capataz do velho Waggoman e pretendente a parte da herança do
barão.
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O belo poster italiano excedendo na violência com animais queimados vivos. |
VINGANÇA OBSESSIVA - De retorno a
Coronado Lockhart se encontra com Dave e lhe aplica uma surra. Vic vem em
socorro de Dave e nova luta feroz ocorre, aparteada com a chegada de Waggoman.
Ao tomar conhecimento da atrocidade cometida pelo filho, o velho indeniza Lockhart com 600
dólares e diz a ele que saia da cidade. Porém o incógnito capitão é contratado
como capataz por Kate Canady (Aline MacMahon), proprietária da única fazenda da região que não pertence a
Waggoman. Enquanto investiga quem vende armas para os índios, Lockhart é
atacado novamente por Dave que brutal e covardemente dispara seu revólver a queima-roupa em
direção à palma da mão de Lockhart. Alec Waggoman, que então perdera a quase
totalidade da visão, revela a Vic sua intenção de tornar Dave seu único
herdeiro o que faz com que cresça o conflito entre Dave e Vic que são os reais
contrabandistas de armas. Dave decide vender de uma só vez uma enorme partida
de armas aos apaches, no que é obstado por Vic que sabe que isso provocará
ataques dos índios, a mobilização do Exército e o fim do negócio escuso de
ambos. Vic mata Dave mas o velho Wagonnman descobre as armas, o que faz com que
Vic tente assassinar o velho fazendo-o cair
com seu cavalo do alto de uma ribanceira. Alec Waggoman sobrevive e
conta a verdade a Lockhart. Este obriga Vic a destruir as armas sob as vistas
dos apaches que matam o contrabandista. Cumprida a missão e vingado o irmão,
Will Lockhart retorna ao Forte Laramie.
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A chamada do poster norte-americano diz: "Ele viajou mil milhas para matar um homem que ele nunca tinha visto". |
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Alex Nicol e Arthur Kennedy |
ENREDO TORTUOSO - Um ano antes, em
1954, tema parecido já havia sido filmado com “A Lança Partida” (Broken Lance)
de Edward Dmytryk. E em 1956 novamente um drama de Shakespeare seria adaptado
para o faroeste com “Ao Despertar da Paixão” (Jubal), de Delmer Daves, desta
vez com personagens semelhantes a Othelo (Ernest Borgnine), Iago (Rod Steiger)
e Cássio (Glenn Ford). Porém “Um Certo Capitão Lockhart” foi a mais bem
sucedida aproximação de um western com uma obra do dramaturgo inglês na
combinação dos conflitos emocionais com trama excepcionalmente complexa para o
gênero. Some-se a isso o extraordinário aproveitamento do então recém lançado
processo Cinemascope que permitiu a Anthony Mann, com seu cinegrafista Charles
Lang, um perfeito aproveitamento dos cenários naturais do Novo México, onde transcorre quase toda a história. O enredo sinuoso de Philip Yordan-Frank Burt lembra um filme
policial e os personagens complexos e consistentes dão à trama um tom obscuro e envolvente. Lá estão o tirânico barão de gado, o filho
histérico e mesmo assim preferido, o ambíguo personagem de Arthur Kennedy,
justo por vezes mas também invejoso, cruel e movido pela ambição. Os próprios
cowboys que acompanham Dave (Alex Nicol) em relances apanhados pela câmara de Mann expressam nos
olhares a comiseração pelos atos brutais do filho do patrão.
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Jack Elam (acima) e Aline MacMahon (abaixo). |
ELENCO COM VETERANOS - O elenco de “Um
Certo Capitão Lockhart” é quase todo ele bom, exceção feita a Alex Nicol e
Cathy O’Donnell. Alex nem sempre convincente como o sádico e destemperado Dave
Waggoman. Cathy O’Donnell com a habitual fragilidade que transmite para seus
personagens. Cathy, que faleceu precocemente em 1970, aos 46 anos de idade, é
mais lembrada por seu trabalho em “Os Melhores Anos de Nossas Vidas”, “Chaga de
Fogo” e em “Ben-Hur”, todos sob a direção de seu cunhado William Wyler. Mas há os
veteranos Donald Crisp, Aline MacMahon e Wallace Ford com ótimas atuações.
Coube a Crisp alguns dos melhores momentos do filme como no enterro de seu
filho Dave e no ataque cego em que montado a cavalo desfere contra Lockhart,
atirando a esmo e descarregando o revólver sem enxergar o oponente. Presença de
Jack Elam repetindo o mal-encarado traiçoeiro de outros filmes e ainda James Millican, de
“Matar ou Morrer”, como xerife cumpridor da lei. Pequenas participações de
Frank DeKova (como padre) e Eddy Waller (como médico).
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Acima Donald Crisp e no centro Arthur e James Stewart e a valorização do novo formato Cinemascope; abaixo Kennedy, Cathy O'Donnell e Wallace Ford. |
OS DEMÔNIOS SOLTOS DE JAMES STEWART - Anthony
Mann revelou um novo James Stewart para o cinema em “Winchester 73”, mostrando
que o ator era capaz de ser cruel, desumano, furioso e até bestial. Nos filmes
seguintes essa persona de Stewart, diferente do protótipo do herói do Oeste, foi
se aperfeiçoando até transcender a uma intensidade de caracterização, como Will
Lockhart, raramente vista nas telas. Jimmy disse certa vez que os espectadores
se identificavam com ele, mas sonhavam sempre ser como John Wayne. Mas que outro
ator poderia expressar componentes humanos como dor, angústia, sofrimento,
humilhação e ódio melhor que Stewart? Normalmente o vilão rouba as cenas,
quando não o filme, como faziam Dan Duryea, Lee Marvin, Lee J. Cobb, Ernest
Borgnine, Arthur Kennedy e outros. No entanto desviar a atenção de James Stewart é
quase impossível e mesmo um ator da competência de Arthur Kennedy quando contracena com Stewart parece que o está assistindo atuar. Como Will Lockhart,
James Stewart solta todos os demônios necessários para compor esse incomum
personagem. Para isso pouco uso fez de seu dublê, sendo arrastado, espancado e
demonstrando sua habilidade como cavaleiro nessa magistral
performance.
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Sequências brutais de "Um Certo Capitão Lockhart". |
SUCESSO DE BILHETERIA – As filmagens de
“Um Certo Capitão Lockhart” tiveram início com as locações no Novo México no
dia 29/9/1954, prolongando-se até 26/10/1954. Os interiores foram filmados nos
estúdios da Columbia em duas semanas. Quando
lançado, em 31 de agosto de 1955, o western de Anthony Mann chocou o público
pela violência de algumas cenas, como quando James Stewart é arrastado passando com o
corpo sobre uma pequena fogueira depois de ver suas mulas serem mortas a tiros.
Considerado o faroeste mais violento dos anos 50, são muito fortes também as cenas
em que Donald Crisp é atirado por Arthur Kennedy do alto de uma ribanceira, a morte de Kennedy a tiros e flecha e,
mais brutal que qualquer outra cena, aquela em que Alex desfere um tiro a queima-roupa
na palma da mão de Lockhart. Mesmo excessivamente violento para 1955, “Um Certo
Capitão Lockhart” foi o western de maior bilheteria naquele ano em que James Stewart
se tornou o Top-Ten Moneymaker Star, desbancando John Wayne do 1.º lugar.
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Anthony Mann no dia de seu casamento com a atriz espanhola Sara Montiel. |
O GRANDE DIRETOR DA DÉCADA - Este foi o
faroeste favorito de James Stewart, mas mesmo assim a dupla Mann-Stewart não
voltou mais a se encontrar em outro western (leia neste blog a postagem ‘O Fim
de uma Parceria e de uma Amizade’), o que significou grande perda para o cinema. Mann e Stewart deixaram, no entanto,
um conjunto incomparável de faroestes no qual se destacam acima dos demais “O Preço
de um Homem” (The Naked Spur) e “Um Certo Capitão Lockhart”. Tanto este como aquele
contrapõem o homem à natureza, em pontos sempre mais altos, rochas principalmente, como que mostrando
seus personagens endurecidos como seres acima e distantes dos homens comuns. Esse
simbolismo merece também ser aplicado, de modo geral, aos demais westerns de
Anthony Mann, o principal diretor do gênero da década de 50. De um total que
quase 900 faroestes produzidos nesse decênio, pelo menos quatro de Anthony Mann estão entre os dez melhores, o que o coloca ao lado de John Ford no panteão dos
mais respeitados diretores de faroestes de todos os tempos.
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Cathy O'Donnell e James Stewart; ao lado o cavalo 'Pie' que Stewart adorava e usava em todos seu filmes. |
Darci,
ResponderExcluirBela resenha para um belo filme. Gosto muito desse western. Acho, como você, a interpretação do Jimmy excelente. Das centenas de filmes baseados, ou adaptações da obra de Shakespeare, e, no caso específico de Rei Lear, Um certo capitão Lockhart é dos meus preferidos, assim como Ran, de Kurosawa. O filme só me parece se perder um pouco na construção da relação entre as personagens, que, a certa altura, perde em profundidade, prejudicando o que poderia ter resultado em um filme perfeito. Gosto demais da fotografia também, inclusive pelo competente uso do Technicolor e do Cinemascope. Há muitas cenas antológicas, como a caminhada para a briga no curral, ou a do sal, que ilustra o cartaz italiano, que parece misturar fogo com uma avalanche de catchup, claramente já mostrando o jeitão meio spaghetti de ser que dominaria o gênero na década seguinte. Ah, não vou deixar de ver texto sugerido, “O Fim de uma Parceria e de uma Amizade”.
Abraço!
Vinícius Lemarc
Vinicius - Não fosse por aquilo que você lembrou e ainda pelo final pouco convincente, o Capitão Lockhart disputaria na minha opinião com O Preço de um Homem como o melhor da parceria. Suas considerações são sempre perfeitas.
ResponderExcluirUm abraço do Darci
Excelente como todos os outros westerns da dupla Mann/Stewart que marcou o genero e legou ao cinema estes classicos.
ResponderExcluirCleber
Conheci-o em 2013 e revi ontem! Ótimo vide seu roteiro, direção, elenco, trilha e paisagens! Redondinho! Portanto, mais do que indicado! E por favor, assistam em widescreen!
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