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27 de novembro de 2012

CINE SAUDADE – ARCHIMEDES LOMBARDI E SUA TRUNCADA CARREIRA COMO ATOR


Archimedes Lombardi é uma personalidade bastante conhecida no ambiente cinematográfico paulistano no qual mantém, de longa data, laços de amizade com atores, diretores e escritores. Archimedes é o presidente da Associação Brasileira de Colecionadores de Filmes em 16mm e há décadas promove semanalmente sessões que exibem filmes raros de sua coleção. Os frequentadores da Biblioteca Municipal ‘Roberto Santos’, no bairro do Ipiranga em São Paulo, são os felizardos que assistem aos filmes projetados pelo Archimedes ao som do barulhinho mágico e nostálgico de um antigo projetor. Quem conhece Archimedes sabe que sua coleção, assim como seu gosto pessoal é o mais eclético possível, indo dos faroestes aos filmes nacionais. Quem priva da amizade de Archimedes Lombardi sabe também que escutará saborosas histórias sobre gente do cinema. Mas o que poucos sabem porque nunca foi contado, é que esse cinéfilo por pouco não se tornou ator, numa história que merece ser lembrada.

A famosa Rua do Triunfo, em São Paulo.
A lendária Rua do Triumpho - O cinema nacional conheceu nos anos 60 talvez seu mais criativo momento, começando a década ganhando a Palma de Ouro em Cannes, com “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte. Os anos 60 viram surgir Glauber Rocha e toda a geração do Cinema Novo e do Cinema Underground (udigrud, como se dizia). E havia também o cinema feito por aqueles que se reuniam numa região atípica de São Paulo. Nessa região compreendida pelas Estações da Luz, Sorocabana e a antiga Rodoviária, funcionava também a zona do meretrício paulistano, daí o apelido de ‘Boca do Lixo Paulistana’ dado à área compreendida por algumas ruas. Havia quem chamasse o local de 'Quadrilátero do Amor'. A Rua do Triumpho era onde se concentravam as distribuidoras e os principais escritórios das produtoras e o pessoal ligado ao cinema. Para muitos, porém, o verdadeiro escritório eram o ‘Bar Soberano’ ou o ‘Bar do Ferreira’, do outro lado da rua. O cinema ali projetado e produzido foi chamado de 'Cinema da Boca'. E foi lá que Archimedes Lombardi iniciou sua grande aventura cinematográfica.

Milton Ribeiro em figurinha do álbum 'Ídolos da Tela'
e como cangaceiro.
A amizade com Milton Ribeiro - Nascido na pequena cidade de Santo Anastácio, no extremo Oeste de São Paulo, cidade próxima de Presidente Prudente, Archimedes aos 18 anos de idade se mudou para São Paulo. Na capital paulista Archimedes empregou-se como gráfico, profissão que já exercia em Santo Anastácio, onde não perdia nenhuma sessão no único cinema local. São Paulo, então conhecida como ‘A cidade que mais cresce no mundo’, possuía mais de uma centena de cinemas e Archimedes já havia entrado em muitos deles para ver filmes de seus ídolos. O moço de Santo Anastácio frequentava assiduamente os cinemas do bairro da Colina Histórica, o Ipiranga, onde residia. Mas Archimedes gostava também do luxo e conforto dos cinemas da Cinelândia Paulistana, no centro da cidade. O cinema que mais o impressionava era o Cine República, com sua gigantesca tela de 250 m2, considerada a mais larga do mundo. Apaixonado por faroestes, Archimedes foi num sábado ao Cine República que exibia a reprise de “Um Certo Capitão Lockhart”, filme que ainda não havia assistido. Após a sessão, Archimedes saiu do cinema e atravessou a famosa Praça da República quando avistou Milton Ribeiro, ator de quem era fã desde que assistira “O Cangaceiro”, lá em Santo Anastácio. Archimedes não teve dúvidas e se aproximou do ator, cumprimentando-o. Milton ficou surpreso quando o rapaz vestido com terno e gravata tirou do bolso uma carteira e de tirou de dentro dela algumas figurinhas do álbum “Ídolos da Tela”. Arquimedes mostrou os cromos de seus atores preferidos: Gary Cooper, Amedeo Nazzari, John Wayne, Eliana e a figurinha dele, Milton Ribeiro.

Jornal da semana em que o Cine República reprisou "Um Certo Capitão Lockhart".

Acima o 'Rei da Boca' Polo Galante;
abaixo Carlão Reichenbach.
Archimedes descobre o Cinema da Boca – Milton Ribeiro convidou Archimedes para tomar um refrigerante no Restaurante Salada Paulista, na Avenida Ipiranga, e percebeu o desejo daquele rapaz de olhos azuis de conhecer o pessoal que fazia cinema. Milton pediu a Archimedes que se encontrasse com ele na semana seguinte quando o levou à Rua do Triumpho, mais precisamente ao ‘Bar Soberano’. Milton era muito querido e conhecido de todos, apresentando o jovem Archimedes a figurões do ‘Cinema da Boca’ como Oswaldo Massaini, José Mojica Marins, o ‘Zé do Caixão’ e Antonio Polo Galante. Este último tinha o apelido de ‘Rei da Boca’. Archimedes se emocionou quando foi apresentado a Carlos Miranda, o Vigilante Rodoviário, tão ídolo para ele quanto o próprio Milton Ribeiro. Archimedes foi também apresentado a pessoas de quem ele nunca tinha ouvido falar como Carlos Bierrenbach, que todos chamavam de ‘Carlão’, um diretor chamado Ody Fraga e um outro de nome esquisito, um tal Ozualdo Candeias. Com 1,80m de altura e expressão de homem mau acentuada por seus olhos claros, Archimedes foi logo sondado para ser ator recebendo promessas de participações em futuros projetos.

Acima Ozualdo Candeias e abaixo seu clássico
"A Margem", cujo cenário é o Rio Tietê.
O convite de Ozualdo Candeias - Mesmo sem ter ainda dirigido nenhum filme, Ozualdo Candeias era uma das personalidades mais destacadas do ‘Bar Soberano’ e falava a todos do projeto de seu primeiro filme que se chamaria “A Margem”. Candeias já tinha tudo pronto para iniciar seu filme, faltando apenas completar o elenco de apoio, sendo que um dos papéis menores ele reservara justamente para Archimedes Lombardi.  Convidado por Candeias, que prometeu lhe pagar cinco mil cruzeiros pelo trabalho de um dia, Archimedes viu na proposta uma oportunidade de se tornar conhecido pois havia no ar a certeza que Candeias faria um filme marcante. Archimedes perguntou a Candeias qual seria seu papel e pediu ao diretor uma sinopse do roteiro para estudar a composição do seu personagem. Candeias acalmou o ansioso Archimedes dizendo que ele participaria de uma única sequência, no início do filme e que no próprio dia da filmagem lhe explicaria o que fazer em cena. Ozualdo Candeias pediu ainda a Archimedes para ele estar na quarta-feira seguinte na Rua Conselheiro Nébias, num prédio onde funcionavam conjuntos de escritórios pois ali seria rodada a sequência. Archimedes comemorou o ‘contrato’ tomando uma Seven-Up no ‘Bar Soberano’ com o amigo Milton Ribeiro, enquanto este tomava uma Brahma. O famoso ator, batendo nas costas de Archimedes Lombardi, dizia a todos que era o padrinho artístico do moço de Santo Anastácio.

A atriz Lucy Rangel com quem Archimedes
Lombardi deveria contracenar.
A sequência do estupro - Em meados dos anos 60, a maioria dos jovens de São Paulo havia aderido à contracultura, com muito rock e até mesmo o uso de drogas como maconha e anfetaminas. Começava-se a falar num tal de LSD que ninguém sabia direito o que era. Mas Archimedes Lombardi fazia a linha do rapaz ‘quadrado’, influenciado que era pela igreja que frequentava bastante na época. No dia aprazado, às nove horas da manhã, Archimedes estava no endereço dado por Candeias, vestindo terno e gravata, como o diretor lhe pedira. Candeias então explicou a sequência a Arquimedes que deveria simular que estava trabalhando, sozinho, numa sala de escritório. Pela porta aberta da sala entraria uma vendedora de café (a atriz Lucy Rangel) que lhe serviria um cafezinho. Archimedes deveria parar de teclar a Remington e olhar de forma lânguida e fixa para a moça do café, por quem tinha forte atração. Levantando-se, Archimedes fecharia a porta por dentro e agarraria Lucy Rangel, tentando beijá-la na boca e no pescoço. Lucy procuraria escapar mas o forte Archimedes a dominaria, colocando-a sobre a mesa e tentaria estuprá-la. A câmara de Candeias iria fechar no rosto da moça, finalizando a sequência. Após ouvir toda a orientação do diretor, Archimedes disse a ele que não poderia fazer aquela cena pois suas convicções religiosas não permitiriam. O incrédulo Candeias viu seu ator pedir licença, se despedir e se retirar do prédio da Rua Conselheiro Nébias.

Publicidade de "As Libertinas" e abaixo José Mojica
Marins em "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver".
O assunto do momento no ‘Bar Soberano’ - Esse fato esdrúxulo tornou-se o grande assunto do ‘Bar Soberano’, com cada um contando a história à sua maneira. Em algumas versões dizia-se que Archimedes tentara uma vez fazer a cena, mas no momento de agarrar e levantar a saia de Lucy Rangel começara a chorar. Passou-se mais de um mês sem que Archimedes retornasse ao ‘Bar Soberano’ e quando por lá apareceu, um tanto envergonhado, cada um dos frequentadores, jocosamente, tinha uma proposta de trabalho para Archimedes. ‘Carlão’ queria Archimedes em seu filme de estreia “As Libertinas” e ‘Zé do Caixão’ convidou Archimedes para atuar em “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver”. Até o discreto Walter Hugo Khouri falou a Archimedes que tinha um papel para ele em “Corpo Ardente”, seu próximo filme. Objetivo mesmo foi Polo Galante que disse a Archimedes: “Você como ator vai dar um ótimo gráfico!” Em seguida Galante encomendou a Archimedes alguns impressos para sua produtora.

Roberto Duval (acima) e Átila Iório.
Homenzarrão de voz suave e melíflua - Archimedes seguiu o sábio conselho de Antônio Polo Galante e decidiu então abandonar sua carreira de ator dedicando-se apenas ao ramo gráfico. Dentro de pouco tempo diversas empresas como a Embrafilmes, a Polifilmes, a Cinedistri e outras encomendavam trabalhos gráficos a Archimedes. “A Margem” tornou-se num clássico do cinema brasileiro e Candeias um dos mais prestigiados diretores do 'Cinema da Boca'. Archimedes que se tornara empresário do ramo gráfico atendeu às produtoras por mais de 20 anos, fazendo novos amigos como Sérgio Reis, David Cardoso e outros. O caso de amor de Archimedes com o cinema dura até hoje, quase 50 anos depois da malfadada experiência como ator, o que foi uma pena. Com seu corpanzil incompatível com sua voz suave e melíflua, certamente Archimedes Lombardi estaria hoje entre os grandes homens maus do cinema nacional, ao lado de Átila Iório, Roberto Duval e claro, seu ídolo e amigo Milton Ribeiro, o eterno Capitão Galdino Ferreira.


Archimedes Lombardi com os amigos Anselmo Duarte, Milton Gonçalves,
Antonio Leão e Carlos Miranda, o Vigilante Rodoviário.
Archimedes em versão cowboy e assistindo a um de seus westerns favoritos.

Archimedes e Antônio Leão visitando Carlos Miranda em sua casa em
Águas da Prata; abaixo Archimedes em foto publicada no jornal
Folha de S. Paulo em reportagem de página; Archimedes e um
 dos muitos prêmios já recebido por sua dedicação ao cinema.

3 comentários:

  1. E o amigo Archimedes continua até hoje sendo um ótimo gráfico !! A carreira de ator foi muito curta ! Abraço !!

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  2. Olá, Darci!

    Muito interessante esse trecho da história do Archimedes! É muito difícil alguém ter a coragem que ele teve, mas eu sinceramente admiro esse tipo cada dia mais raro de atitude. Cada vez mais as pessoas acham que o importante é ser celebridade, sem se importar com os meios. Creio que o melhor é se sentir realmente bem fazendo o que se gosta e com alguma sorte obter reconhecimento e notoriedade pelas qualidades. Também tenho apreço pela ideia das exibições públicas de filmes raros que ele promove. Tenho quase nada, guardadas as proporções, penso nesse tipo de coisa.
    Ah, os meus parabéns pelas tantas visitas do Westerncinemania. É um blog obrigatório para os cinéfilos.

    Abraço!

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  3. Olá, Vinicius - Já disse e repito, elogio seu é meio assim como uma medalha. Archimedes é uma pessoa única e sua simplicidade é emocionante. E as pessoas citadas como Carlão Bierrenbach, Anselmo Duarte, Sergio Reis, Carlos Miranda e outras sempre demonstraram uma enorme consideração com o Archimedes, apesar de ele não ter seguido a carreira de ator. O colecionador Arquimedes é responsável por encontrar raridades antes que ela virem vassoura. Falo dos filmes em 16mm. - Um abraço do Darci

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