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13 de novembro de 2015

EMBRUTECIDOS PELA VIOLÊNCIA (ALONG THE GREAT DIVIDE) – KIRK DOUGLAS EM WESTERN MEDIANO


Kirk Douglas como músico em "Êxito Fugaz";
abaixo como pugilista em "O Invencível".
Kirk Douglas havia assinado um contrato com a Warner Bros. e devia fazer um filme por ano para o estúdio pelo próximo quinquênio. Mas com a carreira em ascensão Kirk queria se ver livre desse compromisso e fez uma proposta indecente a Jack Warner: faria um filme de graça para a Warner Bros. desde que o estúdio rasgasse aquele contrato. Até hoje não se sabe o que levou Jack a topar o negócio e abrir mão daquele que, ao lado de Burt Lancaster, era o mais promissor ator de Hollywood. Warner disse ao ator que ele então deveria fazer um western intitulado “Along the Great Divide”, passando a maior parte do filme em cima de um cavalo, ele Kirk que jamais montara em sua vida. Mas Kirk também nunca havia tocado trompete e aprendeu para interpretar um músico em “Êxito Fugaz”; para atuar em “O Invencível” aprendeu a lutar boxe. Em seus próximos filmes Kirk Douglas mostraria habilidades de malabarista, de piloto de corridas e tocaria banjo e cantaria surpreendentemente bem em “Homem sem Rumo” (Man Without a Star). Não havia desafio que Kirk não superasse e aprender a montar cavalo foi até fácil e prazeroso, mas como ele mesmo conta, foi difícil trabalhar com Raoul Walsh, o diretor do seu primeiro faroeste. Segundo Douglas, Walsh fazia tudo às pressas, pouco orientando atores e cinegrafista e do jeito que a produção transcorreu “Along the Great Divide” não poderia resultar num filme além de regular.


A infindável caminhada pelo deserto;
abaixo Ray Teal, John Agar e Douglas.
Travessia mortal - Escrito por Walter Doninger, também autor do roteiro em parceria com Lewis Meltzer, este filme recebeu no Brasil o título “Embrutecidos pela Violência”. O Marshal (delegado federal) Len Merrick (Kirk Douglas) salva o velho rancheiro Tim Keith (Walter Brennan) da forca devendo levá-lo para ser julgado em Santa Loma. Tim, apelidado de ‘Pops’, foi acusado de haver matado o filho do criador de gado Ed Roden (Morris Ankrum). Roden e seus cowboys perseguem Merrick que a caminho de Santa Loma está acompanhado pelos assistentes Billy Shear (John Agar) e Lou Gray (Ray Teal), além de Ann Keith (Virginia Mayo), filha de Pops. Num confronto com o grupo de Roden, Billy Shear é morto, enquanto Dan Roden (James Anderson), o outro filho do barão de gado é capturado por Merrick. Para evitar serem perseguidos, Merrick decide fazer um caminho mais difícil até Santa Loma, através do deserto. Na travessia do ‘Great Divide’ o grupo fica sem água e tem início o questionamento por parte de Gray, Ann e do próprio Pops, se Merrick necessita cumprir cegamente a lei a ponto de colocar a vida de todos em risco. Conseguem afinal chegar a Santa Loma onde num julgamento rápido Pops é condenado à morte por enforcamento, mas antes que isso aconteça Merrick descobre que o que ocorreu de fato foi um fratricídio pois o verdadeiro autor do assassinato foi o invejoso Dan Roden e não o velho Pops. Roden tenta fugir mas antes mata o próprio pai, sendo em seguida morto por Merrick. Pops ganha a liberdade e o marshal retorna ao lado de Ann, por quem se apaixonara.

Acima Walter Brennan; abaixo Kirk.
Comandado pela consciência - Um dos mais importantes diretores norte-americanos, Raoul Walsh realizara em sequência, antes de “Embrutecidos pela Violência” o excelente “Golpe de Misericórdia” (Colorado Territory), com Joel McCrea e Virginia Mayo e o clássico drama policial “Fúria Sanguinária”, com James Cagney e a mesma Virginia Mayo. Talvez por isso e lembrando ainda de outros grandes filmes de Walsh, Kirk Douglas esperasse muito mais do diretor que como John Ford usava um tapa-olho. E o exigente ator tem razão pois “Embrutecidos pela Violência” se ressente de um melhor desenvolvimento do personagem de Douglas, bem como de seu relacionamento com a heroína interpretada por Virginia Mayo. A obsessão do Marshal Merrick em levar a qualquer custo um prisioneiro que sequer teve sua culpa comprovada, acusado que foi de assassinato, é injustificável, com ele tentando explicar que sua obrigação é encaminhar o prisioneiro a julgamento, independente de ser ele culpado ou não. O roteiro optou por fazer de Merrick um homem atormentado por seu passado, cuja único indício é que o pai de Merrick gostava da canção “Down in the Valley” que ele não suporta ouvir ser cantada justamente por lembrar seu genitor. Quando Pops descobre isso passa a torturar Merrick entoando a canção a todo momento. Sentindo-se atraído pela filha do velho Pops, o Marshal a ela confia seu segredo: assistente que era do pai homem da lei, Merrick não o acompanha em uma missão parecida com a atual, missão na qual o pai acaba morto. Nada, no entanto, suficiente para justificar seu comportamento desumano, teimoso e ilógico.

Kirk Douglas com Virginia Mayo.
Romance desnecessário - Com meros 88 minutos de duração, Raoul Walsh poderia ter discutido melhor a questão de até onde o cumprimento de uma obrigação é mais importante que vidas que são ceifadas por esse capricho revestido de dever. O mesmo Kirk Douglas interpretou personagem em situação semelhante em “Duelo de Titãs” (Last Train from Gun Hill), com a diferença que o delegado desse filme tinha provas da culpa do assassino de sua mulher. E nesse clássico de John Sturges, o personagem de Douglas não coloca nenhuma outra vida em risco além da sua na perigosa missão de conduzir o prisioneiro. Outro ponto fraco de “Embrutecidos pela Violência” é o despertar do interesse de Merrick pela jovem Ann e a inicial rejeição por parte da moça, bem como a própria presença dessa personagem feminina, necessária unicamente para que pudesse ser criado o sempre presente e inevitável romance. Inevitável até certo ponto pois em “O Tesouro de Sierra Madre”, John Huston mostrou como é possível dispensar uma situação romântica tão a gosto do público mantendo o interesse da história. E o filme de Walsh deixa escapar o poder de sedução que uma mulher bonita poderia despertar nos homens ao seu redor em tão longo trajeto. Mas se este western tem defeitos, possui também qualidades.

Kirk Douglas e Virginia Mayo.

De cima para baixo:
Walter Brennan, RayTeal
e Morris Ankrum.
Trio de admiráveis coadjuvantes - Em raros filmes se pode ver um elenco tão coeso quanto “Embrutecidos pela Violência”, com os personagens secundários de Ray Teal, Morris Ankrum e Walter Brennan impondo-se admiravelmente e crescendo em importância na história. Brennan, desta vez com dentes superdimensiona o personagem do velho Pops, sendo ainda, como não poderia deixar de ser, responsável pelos poucos momentos engraçados do filme. Outro excepcional ator característico, Ray Teal é o ambíguo assistente que entende não ser obrigado a se submeter ao desumano esforço que Merrick exige de todos. E com presença menor na tela, Morris Ankrum se agiganta a cada sequência em que surge com seu obstinado desejo de vingança e posterior desespero com o delineamento da tragédia familiar que envolveu seus filhos. Mais uma vez Caim e Abel num western, como em “Duelo ao Sol” (Duel in the Sun) e em “Um Certo Capitão Lockhart” (The Man from Laramie). No entanto o superior trabalho de Brennan, Teal e Ankrum, de modo algum significa que Kirk Douglas não teve, como de hábito, atuação de alto nível dando ao seu personagem acentuada tensão psicológica. Virginia Mayo é sempre um deleite e sua beleza por vezes impede que se perceba a boa atriz que era, com ótimo desempenho neste filme. John Agar em uma de suas melhores interpretações é morto na metade do filme.

Down in the Valley - Atração à parte neste western é o aproveitamento da dolente balada folclórica “Down in the Valley”, tradicional do cancioneiro western norte-americano e que ganha contornos macabros entoada por Walter Brennan em muitas sequências. Virginia Mayo e mesmo Kirk Douglas também cantam alguns versos, ele acanhadamente, muito diferente de como, com espalhafato, faria ao cantar em “Rio da Aventura” (The Big Sky), “Homem sem Rumo” (Man Without a Star) e “O Último Pôr-do-Sol” (The Last Sunset), sem contar as vezes que cantou em não-westerns. “Down in the Valley” também conhecida por “Birmingham Jail” foi gravada por incontáveis artistas, sendo uma das mais conhecidas a gravação de Burl Ives. O extraordinário cantor Otis Redding fez uma versão soul dessa canção que também merece ser conhecida. A escolha bastante apropriada de “Down in the Valley” deve-se exatamente por seus versos fazerem menção a uma situação de enforcamento com o vento soprando sob a cabeça pendente do condenado. Abaixo alguns dos versos que são ouvidos no filme:

     Down in the valley, the valley so low
     Hang your head over, hear the Wind blow
     Hear the wind blow dear, hear the wind blow
     Hang your head over, hear the wind blow

     If you don’t love me, love whom you please
    Throw your arms ‘round me give my heart ease,
    Give my heart ease dear, give my heart ease
    Throw your arms ‘round me, give my arms ease

Com sua voz inimitável Walter Brennan gravou alguns álbuns fazendo pungentes ou alegres declamações, com relativo sucesso com a música “Old Rivers” (1962) e sendo bastante conhecida sua gravação “Gunfight at the OK Corral”.

Walter Brennan cantando ao lado de Virginia Mayo; Douglas à direita.


Virginia Mayo; abaixo James Anderson
rendido por Kirk Douglas.
O cenário de Alabama Hills - “Embrutecidos pela Violência” tem bela fotografia em preto e branco de Sid Hickox, com imagens que dramatizam ainda mais a canícula a que o grupo é exposto. Uma pena que muitas sequências externas tenham sido claramente filmadas em estúdio, denotando uma economia que compromete o filme. Por outro lado Raoul Walsh e Hickox valorizam sobremaneira o cenário de Alabama Hills, em Lone Pine, na Califórnia. Walsh gostava de filmar nesse local, onde em 1941 rodou parte de “Seu Último Refúgio”, com Humphrey Bogart. A trilha sonora musical é de David Buttolph que usa como leit-motiv “Down in the Valley”. Um dos grandes atores da história do cinema, Kirk Douglas escreveria seu nome com letras de ouro no gênero western com os clássicos que atuou nas décadas de 50, 60 e 70. O início com “Embrutecidos pela Violência” poderia ter sido mais memorável se Raoul Walsh estivesse mais inspirado e mais interessado. Dono de sua vida artística, nunca mais Kirk Douglas voltou a filmar com Walsh e enquanto a carreira do ator atingiu o patamar dos grandes astros, Raoul Walsh dirigiu ainda 20 filmes, alguns deles decididamente indignos de compor a filmografia do diretor de “Um Punhado de Bravos” e “O Intrépido General Custer” (They Died with their Boots on).

Kirk Douglas a cavalo e com Virginia Mayo e Walter Brennan.

Com Kirk Douglas o ambiente é sempre descontraído nas filmagens: Kirk rindo com
Walter Brennan; à direita Kirk fazendo acrobacias sobre um cavalo.

A cópia de "Embrutecidos pela Violência" foi gentilmente cedida pelo cinéfilo Marcelo Cardoso.

2 comentários:

  1. Gostei bastante deste western, um dos melhores do Kirk que já vi até agora.
    Cleber

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  2. Caro Darci, permita-me discordar respeitosamente de tuas opiniões a respeito deste admirável western. Ao contrário de você, não penso que seja 'injustificável', 'obsessão' e tampouco um 'capricho revestido de dever' o fato de Len Marrick levar Pop Keith ao julgamento. Len como delegado queria, além de "corrigir" aquele erro do passado que vitimou seu pai, nada mais do que cumprir seu papel como homem da lei e não deixar que naquela região, que estava sob sua autoridade, houvessem desordens com rancheiros querendo fazer justiça com as próprias mãos. E graças a essa atitude de Len, uma injustiça deixou de acontecer, ou seja, a vida de Pop foi acertadamente preservada. Também não considero desnecessário o romance entre Len e Ann, pois como você mesmo descreveu, esse é um acontecimento praticamente inevitável, além de necessário na maioria das vezes, no cinema western. Gostei muito de todas as atuações e considerei a história muito bem construída por Walsh, onde houve de minha parte um considerável interesse em saber como iria terminar tudo aquilo depois da magnífica jornada pelo deserto, repleta de intempéries que iam além das forças da natureza. E o que falar do final? Realmente não poderia ter sido melhor. Quando tudo se encaminhava para um doloroso e injusto desfecho, Len descobre a verdade e trata de revelar e caçar o verdadeiro assassino. Pode-se afirmar sem exagero que está entre os finais surpreendentes e satisfatórios dos westerns, quase tão bom quanto àquele de "Estigma da Crueldade". E como 'prêmio' Len ganha a admiração e o amor da adorável Ann e Pop declama aquela descontraída frase: "É encrenca ter um homem da lei na família". Sendo assim, acompanho a opinião do amigo Cléber (que me mandou a cópia do filme) logo acima: "um dos melhores do Kirk que já vi até agora". Um abraço!

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