UMA REVISTA ELETRÔNICA QUE FOCALIZA O GÊNERO WESTERN

7 de janeiro de 2016

“A HERANÇA DA ALTA MOGIANA”, DOCUMENTÁRIO SOBRE A PRODUÇÃO DE FAROESTES DAQUELA REGIÃO PAULISTA


Acima Maurício Morey, ator do
Ciclo Campineiro; no centro
Alberto Ruschel e MiltonRibeiro
em "O Cangaceiro"; abaixo Jorge
Karan em "Meu Nome é Tonho".
Os mais importantes ciclos brasileiros de filmes que se aproximaram do gênero western foram o ‘Nordestern’ (filmes sobre o cangaço), o ‘Western Feijoada’ (faroestes produzidos pelo pessoal do Cinema da Boca com estilo que copiava os westerns spaghetti) e o ‘Faroeste Caboclo’. Este último iniciado nos anos 50 por Antoninho Hossri com o filme "Da Terra Nasce o Ódio" naquele que foi chamado de Ciclo Cinematográfico Campineiro. Posteriormente, como lembra o jornalista Rodrigo Pereira, esse ciclo se expandiu por cidades como Piracicaba, Jundiái e São João da Boa Vista. Dos Nordestern, o mais famoso é o premiado “O Cangaceiro”, que Lima Barreto filmou para a Vera Cruz em 1953, alcançando distribuição e êxito internacional. Os Westerns Feijoada tiveram em Toni Vieira um nome lendário pelos muitos filmes em que atuou e dirigiu, isto quando o Cinema da Boca tentava faturar no rastro do sucesso dos westerns spaghetti. Dessa fase, no entanto, “Meu Nome é Tonho”, de Ozualdo Candeias, é o grande clássico e o mais admirável entre os faroestes nacionais, isto porque Candeias, distanciando-se das contrafações europeias, se acercou do Western Caboclo, aquele faroeste com sabor da nossa cultura e da realidade do nosso interior. Quando parecia que nada mais aconteceria nesses segmentos do cinema nacional eis que numa região próxima à capital paulista (São Paulo), ainda que timidamente, é retomada a produção de westerns, num misto entre o ‘Feijoada’ e o ‘Caboclo’.

Toni Cardi
Faroestes na Alta Mogiana - Criada em 1872 a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, tinha seu trajeto iniciando na Estação de Campinas até chegar a Mogi-Mirim, daí ser ‘Mogiana’ o nome popular da linha férrea. Ampliada aos poucos, a Mogiana estende-se até Ribeirão Preto em 1880, chegando posteriormente a Minas Gerais. A região que tinha Ribeirão Preto como ‘capital regional’ ganhou o nome de ‘Alta Mogiana’, congregando inúmeros municípios vizinhos. Em 1972, em Ribeirão Preto, foi filmado “Conflito em San Diego”, primeiro western realizado na Região da Alta Mogiana. Mais ou menos nessa mesma época a cidade de Dourado, relativamente próxima de Ribeirão Preto, serviu de cenário para “Pedro Canhoto, o Vingador Erótico”, western concebido pelo Cinema da Boca. Esses dois filmes, ambos longa-metragens, não podem, a rigor, serem considerados projetos autênticos que caracterizassem um Ciclo Western da Alta Mogiana. De certo modo isso viria a ocorrer quase 40 anos depois com três curta-metragens (“Voltei do Inferno”, “A Morte Vai para o Inferno” e “Maldito Ouro Azul”) e com um vídeo-clip (“Duelo de Amor”) realizados com a estética do faroeste.

Acima Eduardo Sbordoni e Cássio Morais;
abaixo a Estação de Bueno de Andrada.
Surge um documento cinematográfico - Atento a esse insólito movimento, o ribeiropretano Milton Martins, produtor audio-visual da televisão, produziu o documentário “A Herança da Alta Mogiana”. Excelentemente realizado, o filme de Martins conta com comentários oportunos e informações precisas por parte de Rodrigo Pereira (jornalista e pesquisador) e Getúlio Alho (ator e escritor), profundos conhecedores de cinema em geral e mais especificamente daqueles rodados na Alta Mogiana. Além deles, são muitas as entrevistas feitas por Milton Martins com atores, diretores e pessoas ligadas aos filmes abordados. Martins focaliza os seis filmes interligando-os com a presença dos personagens ‘Alberto Sanches’ (interpretado por Cássio Morais) que, na Estação de Bueno de Andrada, aguarda a chegada do menino ‘Nicolas Sanches’ (Eduardo Sbordoni) para lhe entregar uma missiva. Enquanto espera, Alberto tira de sua mala um exemplar em tudo semelhante à história em quadrinhos “Tex” e vai lendo cada uma das aventuras do gibi. Cada aventura tem o título e personagens dos filmes exibidos no documentário. Com esse inovador roteiro, Milton Martins faz alusão também à criação de Giovanni Bonelli e Aurelio Gallepini, editada ininterruptamente há quase 70 anos.

Em destaque Milton Martins; à direita Rodrigo Pereira e Getúlio Alho.

O baterista Netinho, ídolo da Jovem Guarda.
“Conflito em San Diego” - Em 1972 Dino Zizzi produziu e Maurício Miguel dirigiu “Conflito em San Diego”, western que deveria ter no elenco todos os membros do grupo “Os Incríveis”. Durante as filmagens as desavenças entre os cinco músicos atingiram um ponto crítico e logo em seguida o grupo se separou. Mingo, Risonho, Manito e Nenê não permaneceram em Ribeirão Preto e só o baterista Netinho (Luiz Franco Thomaz) participou do filme todo. Com 78 minutos de duração, “Conflito em San Diego” aborda a disputa por terras tão comum aos filmes do gênero, mesmo os nacionais, e que teve seu modelo maior em “Os Brutos Também Amam” (Shane), amado clássico norte-americano de 1953. Diversas são as sequências de violência no filme de Maurício Miguel, num tempo em que Sam Peckinpah e os westerns europeus ditavam as regras do gênero. “Conflito em San Diego” ficou nas prateleiras por nove anos, até que foi lançado em 1981, tendo no elenco as presenças de José Veloni e de Carlos Spíndola, o Biriba. Spíndola concedeu entrevista a Milton Martins relembrando passagens das filmagens desse western que demorou seis meses para serem completadas, segundo depoimento anterior do falecido José Veloni.

José Veloni e Os Incríveis participando de "Conflito em San Diego".

A cavalo arrastando uma caixa a la Django Carlos Spíndola, o 'Biriba'.

Heitor Gaiotti em destaque no pôster.
“Pedro Canhoto, o Vingador Erótico” Realizado na cidade de Dourado, quase ao mesmo tempo que “Conflito em San Diego”, um outro western teve produção igualmente acidentada. Com o título “Pedro Canhoto, o Vingador Erótico” esta produção, comprova que, se fazer filmes no Brasil é uma grande aventura, rodar faroestes é para pessoas de coragem ilimitada. Dirigido pelo italiano radicado no Brasil Raffaele Rossi, o louro herói ‘Vingador Erótico’ busca vingar a morte de seus pais vítimas da ambição desmedida de um rico coronel proprietário de terras. Segundo conta o protagonista Toni Cardi, foi a generosidade de alguns habitantes de Dourado que permitiu que o elenco e técnicos praticamente sobrevivessem durante a epopéia que foram as filmagens. Dirce Semensato, que no filme interpreta uma mulher violentada por bandidos, relembra o extremo carinho e respeito que recebeu de todo o elenco. É citado ainda o famoso pôster desse western, no qual estaria a imagem de Lee Van Cleef, mas havia quem garantisse ser o rosto desenhado de Heitor Gaiotti, ator que poderia ser dublê do ator norte-americano, tamanha a semelhança entre ambos. Mais uma vez é Rodrigo Pereira quem esclarece que o pôster nacional foi 'emprestado' do western "Vamos a Matar Sartana", de 1971. O desenhista bem que tentou reproduzir o rosto do ator  espanhol George Martin que estrela esse filme. “Pedro Canhoto, o Vingador Erótico” foi objeto de resenha mais completa neste blog.

Milton Martins com Toni Cardi em foto recente.

Dirce Semensato atualmente e como atriz em "Pedro Canhoto, o Vingador Erótico".

Abaixo 'Manguaça', 'Cachaça' e 'Pileque'.
“O Maldito Ouro Azul” – Um grupo de alunos do Centro Universitário Barão de Mauá, de Ribeirão Preto, se propôs a realizar um curta-metragem em 2009 e a ideia inicial era a mais esdrúxula possível. Com roteiro e cinematografia de Milton Martins e direção de Ricardo Ninin, o projeto escolar teve o título “O Maldito Ouro Azul”, e partia de uma situação de ficção-científica transportada para uma cidade onde estava enterrada uma caixa com o material radiativo Césio 137 (o ouro azul). Muitíssimo bem produzido e rodado em Ribeirão Preto, neste faroeste-caboclo-sci-fi há cenas de saloon, xerife tentando proteger a cidade, não faltam luta e tiroteio coreografados graficamente e o personagem principal chama-se ‘Walker’, misto do ‘Walker’ de Lee Falk (O Fantasma) e dos estranhos de tantos e tantos westerns. E não falta também comicidade provocada pelo trio de bandidos ‘Manguaça’, ‘Cachaça’ e ‘Pileque’ tentando atrapalhar a vida do mocinho. “O Maldito Ouro Azul” nascido da imaginação de Milton Martins gerou uma sequência de outros curta-metragens de autoria de outros jovens da Alta Mogiana.

Ricardo Ninin na foto maior; Fernando Reis Coelho e Giuliano Marcos
à direita.

Laerte Parente e Sandro Gian, atores de "O Maldito Ouro Azul".

O 'mocinho' Élcio Júnior e uma lista de hóspede do hotel em "O Maldito Ouro Azul",
notando-se que o primeiro nome da lista é 'Clint Eastwood'.

Eduardo Pereira e Luccas Garcia
Cowboys de olhares lânguidos - O faroeste não era mais o mesmo desde que “O Segredo de Brokeback Mountan” arrebatou três Oscars e gerou muita polêmica narrando o amor entre dois cowboys. Enquanto isso em 2009, na Alta Mogiana, uma música composta por Cássio Morais e ouvida por Ricardo Ninin e Fernando Reis Coelho inspirou a dupla a criar um clip western-musical. A canção de Cássio Morais, no clip cantada por ele mesmo num saloon, conta a história de um valentão que mete medo em toda a população do lugarejo. Chega então um cowboy disposto a enfrentar o fanfarrão e o duelo é marcado para o meio-dia seguinte. O povoado contém a respiração enquanto os contendores olham penetrantemente um nos olhos do outro. Ao invés, no entanto, de sacar das pistolas, os sensíveis cowboys se abraçam e se beijam para espanto dos assistentes, indo embora de mãos dadas e fazendo a harmonia voltar à cidadezinha. Ao terminar a canção Cássio Morais vê adentrar o saloon alguém que também provoca um suspiro emocionado do cantor. Mais hilariante impossível. A figura física de Cássio Morais lembra Don Williams, o ‘Gentle Giant’ da música country norte-americana, enquanto sua longa composição e harmônica presa ao pescoço não nega a influência de Bob Dylan.

Eduardo Pereira e Luccas Garcia; cenas de ação em "Duelo de Amor".

O cantor-compositor e ator Cássio Morais.

Thiago Belém
Western surrealista - Nova produção de Fernando Reis Coelho, secundado por Milton Martins, desta vez dirigida por Júnior Titanium, foi o curta-metragem “A Morte Vai para o Inferno”. Filmado em Ribeirão Preto, este western se encerra com o herói (também chamado Walker) dizendo ao xerife ferido: “Não precisa se preocupar com a morte, porque a morte eu mandei para o inferno”. Fãs de cinema encontram nos 15 minutos desse eletrizante curta referências a Buñuel, Bergman, nosso José Mojica Marins (que filmou “D’Gajão Mata para Vingar”) e certamente Clint Eastwood. Western sobrenatural e onírico, cujo tema é a vingança, com Walker deixando de ser pistoleiro de aluguel para liquidar o bando do coronel que infesta aquelas paragens. Realizado também por alunos do Centro Universitário Barão de Mauá, “A Morte Vai para o Inferno” permite que o espectador imagine o que o diretor Júnior Titanium poderia fazer num longa-metragem. Escolha errada de elenco pois o facínora deveria ter sido interpretado por Ricardo Grippa, ator (produtor e apresentador de TV) com tipo de Rod Steiger, enquanto o bandido Thiago Belém se esforça muito mas mais parece o mocinho do filme.

Júnior Titanium e Fernando Coelho (diretor e produtor).

Ricardo Grippa e Thiago Belém (atores) de "A Morte Vai para o Inferno".

Sequências de "A Morte Vai para o Inferno".

O duelo final em "Voltei do Inferno".
Vingança ardente - Distante 30 kms de Ribeirão Preto, Brodowski possui um grupo de cinema que em parceria com uma emissora de televisão local produziu em 2011 um curta-metragem. Esse grupo de cinema não é voltado especificamente ao gênero western, mesmo assim o filme escolhido - “Voltei do Inferno” – é um faroeste interpretado pelos membros do grupo e dirigido por Caetano Jacob. O tema é mais uma vez o conflito pela posse de terra travado entre um coronel secundado por seu capataz ‘Chupacabra’ (Luís Carlos Magalini) e um homem que no decorrer do filme é dado como morto. Tendo sobrevivido aos escombros de sua casa queimada, esse homem sedento de vingança também por ter perdido esposa e filho reaparece e abate o poderoso coronel e seu braço direito Chupacabra. Num final que surpreenderia o próprio Sam Peckinpah, a consumação da vingança se dá com o coronel sendo queimado vivo. Uma sequência das melhores é quando dois ‘homens da lei’ discutem as benesses que poderão ter com a ascensão do político local ao governo do Estado. “Voltei do Inferno” bem que mereceria ter um cartaz pintado por Cândido Portinari.

A violência em "Voltei do Inferno"; na foto menor homens da lei corruptos.

Membros do Grupo de Cinema de Brodoswski: Luís Carlos Magalini,
José Carlos de Oliveira e Mith Mantoani.

Outros membros do Grupo de Cinema de Brodoswski: Armando Queluz,
Rosana Rossini Esteves e Roberto Morando Videira.

José Leonel Damasceno com seus
maravilhosos brinquedos.
Uma ferrovia em miniatura – Com o resgate cultural que é “A Herança da Alta Mogiana” Milton Martins indica que cabe à nova geração da região voltada para o cinema, a continuidade daquilo que pode sim, fazer de Ribeirão Preto e cidades vizinhas uma espécie de Old Tucson brasileira, onde muitos faroestes poderão ser filmados. Como bônus o DVD “A Herança da Alta Mogiana” traz uma matéria com José Leonel Damasceno Filho, apaixonado pela história da Mogiana. José Leonel construiu em escala 1:10 uma ferrovia que transporta quem a visita a um passado puramente poético entre trilhos, vagões de passageiros e de cargas e a inestimável fumaça expelida pela locomotiva. “A Herança da Alta Mogiana”, esse magnífico trabalho de Milton Martins, é sumamente importante para todos aqueles que gostam de cinema e imperdível para quem ama o faroeste.


As introduções de cada capítulo do documentário, cujas apresentações são
feitas por histórias em quadrinhos desenhadas com influência de "Tex".


Milton Martins


4 comentários:

  1. Muito bom mano Darci! Aprendi muito e fiquei impressionado com a determinação desses cineastas tupiniquins. Grande abraço do Beto "Monty" Nista.

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  2. Beto, você que é um cowboy autêntico e que percorreu o Monument Valey, Arizona e arredores, faria enorme sucesso como ator numa próxima produção da turma da Alta Mogiana. Abração do Darci.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Muito bom esse documentário, vi no youtube e adorei o A Morte vai para o Inferno. Roteiro e ótima direção.

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