UMA REVISTA ELETRÔNICA QUE FOCALIZA O GÊNERO WESTERN

8 de abril de 2013

CINE SAUDADE – ACHILLES HUA RELEMBRA UMA TARDE DE DOMINGO NO ‘URQUINHA’



        Meados de 1949, São Paulo. Num belo domingo preparo-me para ir ao cinema. Pela Rádio Record, PRB-9, “A Maior”, já terminou o programa “Hoje é Domingo”, um sonoro desfile de astros e estrelas no qual se destacaram Bob Nelson, Isaurinha Garcia, Demônios da Garoa, Monte Alegre, etc.
Isaurinha Garcia, Os Demônios da Garoa e
Bob Nelson, artistas do cast da Rádio Record;
Alvarenga e Ranchinho também usavam Glostora.
Após a indefectível macarronada dominical, eu, um garotinho de nove anos de idade, calças curtas, sapatos engraxados, cabelos levemente untados com o óleo “Glostora”, saio com destino ao “Urquinha”, como era conhecido o Cine Urca, que se localizava na Vila Izolina Mazzei, na Rua Padre Leão Peruche (hoje, Rua Vitório Mazzei) esquina com a Rua Frei Mariano Veloso. Funcionava numa modesta casa em que mal cabiam, creio, 250 a 300 espectadores.
      Com o dinheirinho do ingresso amealhado durante a semana, um trocadinho dos pais, gorjeta dos tios, catando uns sacos de latas – diversão lucrativa dos garotos de então – dirigia-me todos os domingos, após o almoço, ao “Urquinha”. Não me importava qual o programa, a freqüência era obrigatória. Caso faltasse, o que falar na 2.ª-feira na escola e como comentar o seriado?
      Aproximo-me do Cine Urca. Na calçada, com uma caixa envidraçada, um senhor de cabelos grisalhos, rosto avermelhado, chapéu cinza, avental branco e um bondoso sorriso, vendia doces, os tais de ‘quebra-queixo’, feito à base de coco e ‘machadinho’, um doce caramelado, apresentado nas cores creme rosada, tão ao gosto da criançada. O curioso é que a gente comprava cinquenta centavos de doce e ele nos dava um pequeno bocado, advertindo: “Olha, não dou mais que é prá vocês não enjoarem!” Ato contínuo, todos caíamos na risada.

A casa na Rua Vitório Mazzei, esquina com a Rua Frei Mariano Veloso, no
bairro Parada Inglesa, na Zona Norte de São Paulo, onde por muitos anos
funcionou o Cine Urca, ou o 'Urquinha', como era carinhosamente chamado.
A casa foi reformada e levantado o muro que cerca o imóvel.

Alguns dos gibis lidos pelo garoto
Achilles e o álbum de Balas Futebol
colecionado pela petizada.
      A fila compunha-se, praticamente, de todas as crianças do lugarejo e era uma oportunidade a mais para trocarmos as figurinhas das “Balas Futebol”, com o ‘Futebolino’ e as famosas carimbadas, além das formidáveis revistas “Gibi Mensal”, “O Lobinho”, etc.
    Enfrento a esperada fila e contemplo os cartazes nas paredes: Breve “Flash Gordon no Planeta Mongo”, “O Homem-Leão”, ambos com Larry ‘Buster’ Crabbe. Um amigo me adianta: “Sabe, o ‘Buster’ Crabbe já foi Tarzan...” E eu, nada sabendo, incrédulo, digo que não é possível, que o Tarzan é outro (o inesquecível Johnny Weissmuller).
       Adquiro a meia-entrada e entro no cinema, instalando-me numa das poltronas de madeira, sem estofamento. Enquanto se espera, somos brindados pelo som da “Valsa dos Patinadores” e, em seguida, com Roberto Inglês ao piano ouve-se deliciosamente, o bolero “Tres Palabras”. É um momento de expectativa e devaneio. Chega a hora do início da sessão. É dado o sinal. As luzes se apagam. A magia do Cinema vai começar. Divirto-me às escâncaras com o Gordo e o Magro. Desfruto de um jornal de notícias americanas, tendo como fundo musical u’a marcha da Marinha que impele a garotada a acompanhá-la, batendo ruidosamente os pés no chão. Não posso deixar de ficar admirado, extasiado, ante a apresentação do ‘Pato Donald’ nas suas fascinantes cores azul e amarela em cenas que enchem os olhinhos infantis de enlevo e fantasia.
        Chega o intervalo. As luzes se acendem e estoura uma guerra entre a garotada, atirando uns nos outros, balas de papel.

Tom Tyler como 'The Phantom' (O Fantasma Voador).
Cenas de "Sempre no meu Coração":
acima Walter Huston e Gloria Warren;
no centro Borrah Minevitch, Gloria Warren,
Frankie Thomas,Walter Huston e Kay Francis;
abaixo Borrah Minevitch e seus gaitistas.
     Novamente o sinal é ouvido, a sala escurece. A plateia silencia. Todos estamos ansiosos, atenção voltada para a tela. Aparece o símbolo da Columbia Pictures, provocando gritaria geral, ensurdecedora: “O Fantasma Voador”! Sim, este herói é a causa de toda a algazarra. A simples visão do mascarado provoca uma alegria intensa na petizada que se comporta de forma barulhenta. O gerente e os lanterninhas, aos poucos, conseguem obter silêncio. O seriado prossegue com as cenas eletrizantes que empolgam a meninada, terminando rapidamente o capítulo. Satisfeito, ainda imaginando uma solução para o episódio, vejo aparecer na tela um barquinho a vela nos créditos do filme “Sempre no meu Coração” (Always in my Heart). De cara, fico fascinado pela simpatia da cantora, enquanto ouço alguns garotos estrilando que o filme não é de ‘mocinho’, é ‘de amor, caramba!’ A fita se desenrola e ficamos sabendo que o velho “Walter Huston) é um ex-presidiário, pai da moça (Gloria Warren) e do rapaz e que sua mulher (Kay Francis) vai se casar com um ricaço.
   Nesse filme, para nossa sorte, é apresentada, provavelmente, uma das mais belas e contagiantes cenas musicais já vistas no Cinema: aparece quando Huston está em casa, ao piano, cantando a música-tema para Gloria que ouve atenta. Esta linda melodia ecoa agradavelmente por todo o bairro. Ao ouvi-la, as pessoas vão abandonando seus afazeres, cada uma aderindo ao grupo que vai subindo a alameda: quem é músico, pega sua gaita-de-boca e vai acompanhando Borrah Minevitch que segue alegremente liderando a turma, executando “Always in my Heart”, música composta por Ernesto Lecuona com rara felicidade. Embevecido pela excelência da melodia que se mistura com a alegria e felicidade dos moradores do pequeno lugar, premiado com as graças do anãozinho tocador de gaita e de seu líder (Borrah), tocado pela maviosa voz de Gloria Warren e, ainda, comovido pela situação – a moça (Gloria) não sabe que o velho maestro (Huston) que a acompanha ao piano é seu pai – permaneço estático, arrebatado, olhos fixos na tela... marejados! Com toda a certeza, aproveito prazerosamente aquela cena de graça, beleza e música. Cuido para que não percebam que meus olhos lacrimejam... (snif) Noto alguns garotos fazendo o mesmo. Engraçado... (snif) somos todos iguais... (snif) a não ser que, realmente, caiu um ‘ciscão’ no olho de toda essa gente.
      A fita prossegue com o pai se ferindo ao defender o filho, conseguindo, porém, deter o vilão. A petizada vibra com aquela ação, aplaudindo a atitude magnífica do pai herói.
Segue o filme com final feliz, encerrando-se com esplendorosa apresentação conjunta de Gloria Warren cantando, sendo acompanhada por Huston ao piano e o conjunto de gaitas-de-boca de Borrah Minevitch.
        Regresso comportadamente à casa com alegria tal que, imediatamente, compartilho meu entusiasmos com os familiares, contando-lhes o filme. Não há dúvida, aquele foi um ótimo domingo. No dia seguinte, no bairro, a música “Sempre no meu Coração” pairava no ar. Toda a criançada que assistiu ao filme assobiava ou cantarolava a canção-tema com o semblante alegre, feliz. Que poder extraordinário tem o Cinema!
Assim, relembrei com saudade um domingo naquele cineminha, lamentando, porém, não ter podido ver os derradeiros capítulos de “O Fantasma Voador”.
George Sanders (O Santo), Warner Oland (Charlie
Chan), Errol Flynn, Carlitos, Cantinflas, Sabu,
Leo Gorcey e Huntz Hal, Moe Howard, Larry Fine e
Curley Howard (Os Três Patetas).
     As matinês se seguiram sempre com emoção. A pequena tela era fonte de aventura, diversão e deslumbramento. Aos olhos da gurizada foram desvendados intrincados crimes pelo Santo, Charlie Chan e outros detetives em filmes policiais notáveis. Ruidosas gargalhadas acompanharam cenas com Chaplin, Cantinflas, os Três Patetas, Leo Gorcey e Huntz Hall com os ‘Bowery Boys’. Vibraram com os imperdíveis faroestes muitos com George O’Brien e Tim Holt, “A Lei do Mais Forte”, com James Cagney e Humphrey Bogart. Tornaram-se inesquecíveis as fitas de aventuras com Douglas Fairbanks Jr., Jon Hall, Sabu, “As Aventuras de Robin Hood” e “Capitão Blood” com Errol Flynn, além de “Gunga Din” e “O Sargento York”. A garotada se impressionou com o “Lobisomem”, “Frankenstein” e “King Kong”, tendo repercutido muito “O Homem Invisível”. Novamente a garotada se sensibilizou com “Luzes da Cidade”, de Chaplin e “De Amor Também se Morre” com Charles Boyer e Joan Fontaine. Belos filmes foram emoldurados por Dorothy Lamour, Maria Montez, Rita Hayworth, Susan Hayward, Barbara Stanwyck, Ginger Rogers, Doris Day, etc.

Alguns astros e estrelas que o menino Achilles Hua viu na tela do pequeno
Cine Urca: Rita Hayworth, James Cagney, Susan Hayward, George O'Brien,
Barbara Stanwyck e Tim Holt.
      Poucos anos depois, o cineminha acabou. Seus espectadores-mirins tiveram de se deslocar para o bairro de Santana, mais desenvolvido, onde passaram a frequentar os Cines ‘Vogue’ e ‘Hollywood’ e, mais tarde, a Cinelândia. Tudo passa sobre a Terra, já dizia Alencar, e com o Cine Urca não foi diferente. Cumpriu importante papel naquele bairro em formação, divertindo os garotos que logo se tornaram adeptos da Sétima Arte. Assim, sua passagem ficou indelevelmente marcada na memória de espectadores mercê desses inesquecíveis momentos. E registrando a benéfica existência do ‘Urquinha’, ainda me vem à lembrança a sua fachada, os cartazes colados nas paredes, a pequena bilheteria, a sua tela...
                                                                                                     ACHILLES HUA

Achilles Hua é muito querido por seus amigos que admiram seus profundos conhecimentos sobre cinema, música e... futebol. Na foto acima ele está ao lado daqueles com quem poderia ter formado uma grande linha média do São Paulo Futebol Clube: Achilles Hua, Jader Jesus Donato e Clóvis Ribeiro. Na foto abaixo Achilles faz um dueto com Laudney Mioli, com quem é capaz de passar horas falando de música brasileira dos bons tempos, as quais cantam afinadamente.





8 comentários:

  1. Olá, parceiro, estou de volta, pronto para trocar comentários e seguir suas postagens. Fico feliz em ver que seu blog continua a todo vapor.
    Cumprimentos cinéfilos!

    O Falcão Maltês

    ResponderExcluir
  2. Será que o amigo Achilles Hua aderiu a esta "modernidade" chamada internet !! Estou aguardando um contato !!
    Abraços !!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Com a ajuda da digníssima o Achilles dá suas tímidas navegadas. E gostou de ver seu 'Urquinha' na web.

      Excluir
  3. Belas lembranças de uma infância feliz e cultural, ligada fortemente ao cinema. Invariavelmente, quem o teve(o cinema) como uma fonte constante de diversão, é levado por ele
    a um futuro adulto responsável, produtivo e terá para sempre na sua memória, estas recordações mágicas e indeleveis. Aí está a magia do cinema.
    Pena que não alcancei na minha região(Piauí), os famosos matinês e seriados; com certeza fomos menos felizes. Parabéns por esta crônica, parece que aquele menino era eu.
    Joailton.

    ResponderExcluir
  4. Olá, Darci!
    Uma matéria bastante agradável de se ler, sobre alguém que viveu uma época que dá gosto recordar. Como o cinema fazia diferença. Realmente a cena em que os Harmonica Rascals vão se juntando a Borrah Minevitch tocando "Always in My Heart" é daquelas antológicas. Curiosamente Jo Graham dirigiu apenas 4 filmes e certamente este é o melhor. Eis a verdadeira essência da infância.
    Um abraço!

    ResponderExcluir
  5. Eu gostaria muito de entrar em contato com o Dr. Acchiles Hua. Fomos colegas na Polícia Militar e contemporâneos na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Infelizmente perdemos o contato. Estou no WhatsApp (11) 99742-1098. Meu nome: Eraldo Bartolomeu Cidreira Rebouças.

    ResponderExcluir
  6. Olá, Eraldo, vou providenciar seu contato com o amigo Achilles. Um abraço.

    ResponderExcluir