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10 de abril de 2016

TEMPO DE GLÓRIA (GLORY) – O TRÁGICO DESTINO DO 54.º REGIMENTO DE INFANTARIA


Parte da escultura do Memorial
 em homenagem ao 54.º Regimento
 de Infantaria de Massachusetts;
abaixo foto do Coronel Robert

Gould Shaw com o ator Matthew
Broderick no destaque.
Muitos são os westerns que têm a Guerra Civil norte-americana como pano de fundo, sendo raros, porém, aqueles que se dedicam a estudos mais profundos sobre o conflito seccionista. “Tempo de Glória” (Glory) de Edward Zwick, realizado em 1989, se atém a uma passagem daquela Guerra antes não abordada pelo cinema, a participação do 54.º Regimento de Infantaria de Massachusetts no ataque ao Forte Wagner, em Charleston, na Carolina do Sul, no dia 18 de julho de 1863. Formado exclusivamente por voluntários negros, o ‘54.º de Massachusetts’ era comandado por oficiais brancos, o principal deles o Coronel Robert Gould Shaw, jovem de 25 anos de idade e com experiência em refregas anteriores, tendo sido ferido na Batalha de Antietam ocorrida em 17 setembro de 1862. Kevin Jarre, o autor do roteiro de “Tempo de Glória”, contou que teve a inspiração para escrever quando visitou o Memorial em homenagem a Robert Gould Shaw e ao 54.º Regimento Voluntário de Infantaria em Boston, Massachusetts. Jarre baseou seu roteiro em parte nas cartas escritas pelo Coronel Shaw a seus pais durante a guerra e parte nos livros “Lay this Laurel” de Lincoln Kirstein e “One Gallant Rush” de Peter Burchard. Poucos anos depois de “Tempo de Glória”, Kevin Jarre escreveria o roteiro de “Tombstone – A Justiça Está Chegando”. O diretor Edward Zwick era quase um estreante, tendo dirigido apenas um filme antes deste, a comédia “Sobre Ontem à Noite”. Zwick escolheu Matthew Broderick para interpretar o Coronel Shaw especialmente pela semelhança fisionômica entre o ator e o militar.


A convocação de voluntários em Boston;
abaixo John Finn.
Batalha especial para soldados especiais - Após a fragorosa derrota na Batalha de Antietam, o Alto Comando do Exército da União decidiu pela necessidade de ser aproveitado o contingente de norte-americanos negros ávidos por lutar pela causa abolicionista. Em Boston, Massachusetts, foi então formado o 54.º Regimento de Infantaria composto exclusivamente por voluntários negros sem nenhuma experiência anterior em batalhas. O Tenente Robert Gould Shaw (Matthew Broderick), promovido a Coronel, havia se recuperado de ferimentos durante sua participação na Batalha de Antietam e seu pai consegue junto ao Governador que o filho seja o escolhido para comandar o novo regimento. Juntamente com Shaw seus amigos Major Cabot Forbes (Cary Elwes) e o estudante negro Thomas Searles (Andre Braugher) são igualmente convocados. Entre as centenas de soldados negros fazem parte do ‘54.º de Massachusetts’ John Rawlins (Morgan Freeman) e Trip (Denzel Washington). Mais velho entre os voluntários, Rawlins é promovido a sargento, enquanto Trip se mostra rebelde e provocador. Após meses de rigoroso treinamento, os negros ‘54.º de Massachusetts’ encontram-se desanimados por não serem enviados às frentes de batalha, o que finalmente acontece quando é anunciado que terão a missão de atacar o aparentemente inexpugnável Forte Wagner. A intenção do alto Comando é provocar o maior número de baixas naquele reduto dominado pelos Confederados para então tentar tomar o Forte. Mesmo sabedores que a missão é suicida, liderados pelo Coronel Shaw o ‘54.º de Massachusetts’ cumpre seu objetivo, sendo, como esperado, dizimado pelas tropas confederadas.

Matthew Broderick; abaixo Denzel
Washington entre os soldados do '54.º'.
Soldados entre o sonho e a dor - “Tempo de Glória” segue a fórmula comum aos filmes de guerra, ou seja, uma primeira parte demonstrando os preparativos para as sequências de batalha que se desenvolvem na metade final. Porém o filme de Zwick é primoroso na apresentação dos personagens principais e mais ainda ao mostrar o quanto os negros, no caso do Norte de uma região tida como abolicionista, sofriam nas mãos dos brancos. Crueldade de todos os tipos, da física à pior delas, a mental com os mais escabrosos insultos. O episódio do não fornecimento de fardas e botas, mesmo estando estes estocados no almoxarifado gerenciado por oficiais brancos corruptos, é apenas um exemplo repugnante de uma guerra justificada por igualdade de direitos. Em outro momento a corajosa recusa dos negros do ‘54.º de Massachusetts’ em aceitar soldo três dólares menor que o dos soldados brancos. O digno silêncio de Trip ao ser castigado com chicotadas, deixando escapar somente uma comovente lágrima. O roteiro de Jarre e a direção de Zwick evitam claramente a camaradagem feliz que se via nos clássicos de Ford na ‘Trilogia de Cavalaria’. Não há espaço para confraternização, apenas para lamentos em forma de oração como só negros são capazes de fazer, plangente lamento para exprimir a melancolia do engano sofrido ao se imaginarem garbosos soldados defendendo seus ideais contra os defensores da segregação. Entre o sonho e a dor, os homens do ‘54.º de Massachusetts’ se tornam soldados liderados por um jovem que a princípio se mostra tirânico, mas que os respeita e que sabe que será seguido por eles com bravura.  

John Finn, como o Sargento que humilha os voluntários.

O Coronel Shaw escrevendo uma carta; cabeça
de soldado explodindo durante batalha.
Embate desigual - A primeira experiência em combate do ‘54.º de Massachusetts’ ocorre na Ilha James, na Carolina do Sul e é um batismo sangrento para o regimento. O aprendizado de carregar com rapidez os fuzis Enfield calibre .57, somado à disciplina, os torna superiores na contenda e mais ainda no enfrentamento corpo a corpo com uso das baionetas. As imagens fortes de Zwick, entre elas uma cabeça explodindo ao receber um tiro, são uma espécie de preparo para o que virá na batalha final com a tentativa da tomada do Forte Wagner. É aí então que “Tempo de Glória” mais emociona pois o embate desigual fatalmente levará à morte o sorridente e exímio atirador Soldado Jupiter Sharts (Jihmi Kennedy), o letrado Cabo Thomas Searles, o ponderado Sargento Rawlins e o insubordinado e valente Soldado Trip. À frente de todos, acelerando o passo em direção à muralha do Forte está o Coronel Shaw transmitindo a todos o ímpeto de sua bravura. Diante deles um gigantesco canhão e dezenas de outros menores avisando que nenhuma chance terão de vitória mas ainda assim nada detém o ‘54.º de Massachusetts’. A força das imagens de Freddie Francis é realçada pela música extraordinária de James Horner ao mostrar o horror da guerra e fazendo do filme de Edward Zwick um espetáculo único e fascinante, ainda que desolador. O Coronel Shaw escreveu para sua mãe “Lutamos por homens e mulheres cuja poesia não foi ainda escrita”, falando de uma raça cuja existência vinha sendo narrada com sofrimento e degradação humana que essa guerra, ainda que tenuemente, ajudou a minorar.

Sequências da batalha na Ilha de St. James, na Carolina do Sul.

Matthew Broderick
Os jovens Shaw e Broderick - Muito criticado por ter sido escolhido para interpretar o Coronel Shaw, Matthew Broderick leva algum tempo até que o espectador se esqueça de sua indisfarçável juventude ressaltada pela lembrança de filmes como “Curtindo a Vida Adoidado”. Ressalte-se que o verdadeiro Shaw tinha 25 anos quando de sua morte em Forte Wagner e Broderick estava com 26 quando das filmagens. Pouco a pouco o ator se impõe e adquire a expressão trágica do oficial, lembrando bastante a impressionante composição de Henry Fonda como o Coronel Owen Thursday em “Sangue de Heróis” (Fort Apache). Denzel Washington tem os melhores momentos dramáticos do filme, especialmente a sequência já descrita em que é açoitado e que muito deve ter contribuído para que o ator recebesse o Oscar de Melhor Ator coadjuvante na premiação de 1990. Morgan Freeman é o compreensivo e generoso Sargento, um tipo que ele não precisa se esforçar para fazer. Andre Braugher destoa superatuando em cenas até simples e John Finn é marcante como o Sargento que impiedosamente adestra os voluntários negros.

Denzel Washington antes e depois de ser castigado.

As expressões de Denzel Washington durante a sequência em que é chicoteado.

Sentimentalismo forçado - Tendo custado 18 milhões de dólares, “Tempo de Glória” rendeu perto de 27 milhões quando de seu lançamento e não é um filme historicamente exato quando afirma ter ocorrido com o ‘54.º de Massachusetts’ a primeira participação de negros em batalhas. Antes, durante a Revolução Americana (1765-1783), contingentes de negros (ou afrodescendentes como muitos fazem questão de ser chamados) lutaram em defesa de seu país contra os colonizadores. Outro erro histórico é a explicação, ao final, que o Forte Wagner jamais foi tomado pelas forças unionistas. As baixas sofridas com o fracassado ataque do ‘54.º de Massachusetts’ e os posteriores ataques de outros regimentos terminaram por fazer com que as tropas confederadas abandonassem o forte na noite de 6 de setembro de 1863. Estavam eles sem água pois os poços foram contaminados com os corpos de cadáveres em decomposição. Na manhã de 7 de setembro de 1863 soldados da União adentraram o Forte Wagner que estava vazio. A errônea afirmação visa tocar o sentimentalismo do espectador enaltecendo a inglória ação militar do ‘54.º de Massachusetts’. E sentimental ainda são situações-clichês como o ferimento em batalha de Thomas Searles e sua insistência em não ser mandado de volta a Boston. Nada disso, no entanto, diminui a força de “Tempo de Guerra”, um grande e emocionante espetáculo cinematográfico.

A batalha de Forte Wagner; à direita o portentoso canhão do Forte.

Brilhante trilha musical - “Tempo de Glória” obteve cinco indicações para o Oscar, vencendo nas categorias de Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Cinematografia (Freddie Francis) e Melhor Som. As demais indicações foram para Melhor Direção de Arte e Melhor Edição. Foi ignorada pela Academia a excepcional trilha musical de James Horner, curiosamente premiado com o Grammy de 1991 de Melhor Composição Instrumental para Cinema ou Televisão. Essa sinistra e assustadora trilha de James Horner é um dos pontos mais altos deste épico sobre a Guerra Civil norte-americana dando ao filme o necessário tom trágico que significou o destino do 54.º Regimento de Infantaria de Massachusetts.


O 54.º Regimento de Infantaria de Massachusetts próximo ao Forte Wagner.

Esta cópia de "Tempo de Glória" foi gentilmente cedida pelo cinéfilo e colecionador MARCELO CARDOSO.

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