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21 de outubro de 2012

CINE SAUDADE - O IMPRESSOR QUE ERA GREGORY PECK




A Tipografia Brasil de Ernest Rothschild era uma das maiores de São Paulo, responsável por todos os impressos da Companhia Sorocabana de Estrada de Ferro e editora das famosas Agendas Comerciais Paulista e Paulistinha, presentes em quase todos os escritórios brasileiros. Situada num enorme prédio de três pisos na Rua Brigadeiro Tobias, a Tipografia Brasil possuía bem distribuídos os setores de escritório, pautação, blocagem, tipografia, linotipia e impressão. A seção de impressão ocupava boa parte do andar térreo com uma dúzia de máquinas impressoras de grande porte. Havia também muitas impressoras menores como as famosas Minervas e as então moderníssimas Original Heildelbergs. Pois era numa Heildelberg que trabalhava um impressor amalucado chamado Fernando Machado, o Gregory Peck da Tipografia Brasil.

A famosa impressora Original Heildelberg,
capaz de produzir 5.000 impressos por hora.
O fumacento revólver imaginário - Quando comecei a trabalhar na Tipografia Brasil, em 1958, Fernando Machado já trabalhava lá e logo ficamos amigos pois descobri que ele também gostava de cinema. Melhor que isso, o impressor também gostava de faroestes. Machado devia ter por volta de 25 anos, quase 1,80m de altura e o rosto ossudo como o de Gregory Peck e magro igual ao ator. A impressora Original Heildelberg que ele operava era daquelas máquinas que recolhiam automaticamente o papel do lado direito e após imprimi-lo colocava o papel já impresso no lado esquerdo. O apelido da máquina era ‘Windmill’ devido a esse movimento imitando as pás de um moinho. A Heildelberg era capaz de imprimir até cinco mil impressos por hora. E por ser totalmente automática possibilitava que o impressor até se afastasse momentaneamente da impressora. E isso era o que Machado mais fazia, caminhando em direção ao corredor central da gráfica como se estivesse se dirigindo a um duelo, pernas abertas, braços estendidos e as mãos prontas para sacar um imaginário revólver. Se alguém o chamasse nesse momento, Machado virava-se rápido como um raio e com as mãos imitava o movimento de disparar um Colt. Não satisfeito em acertar o suposto inimigo, Machado ainda soprava a ponta do dedo, fazia um gesto como se rodasse o revólver e o guardava na cartucheira. Pouco adiantava o olhar reprovador do chefe da seção.

Seu ídolo, Gregory Peck - Cada faroeste que eu assistia na matinê de domingo eu comentava na segunda-feira com Machado. Lembro de um faroeste que muito me impressionou chamado "Gatilho Relâmpago", com Glenn Ford e ao comentar o filme com Machado, ele, como sempre, passou a fazer comparações com seu ator e faroestes preferidos. Para ele Gregory Peck era incomparável, o melhor de todos os atores. E claro, os faroestes de Gregory Peck eram para Machado os mais emocionantes do cinema. O impressor não se cansava de citar "O Matador", "Céu Amarelo", "Resistência Heróica", "Estigma da Crueldade" e um western mais recente intitulado "Da Terra Nascem os Homens". Mas o filme que Machado mais admirava e sempre citava como o melhor de todos era "Duelo ao Sol". Dos filmes que Machado citava eu só havia assistido "Da Terra Nascem os Homens" e até havia gostado muito mais de Charlton Heston que de Gregory Peck. Fui falar isso para o Machado e ele com as carótidas inflamadas e o pomo de Adão querendo saltar da garganta quis me convencer que Gregory Peck era insuperável.

Fernando Machado ou Gregory Peck?
Difícil responder pois eram parecidos.
Um turbulento romance - Trabalhavam na Tipografia Brasil mais de uma centena de funcionários, metade mulheres. Havia moças de todos os tipos, altas baixas, gordas, magras, brancas, mulatas, negras, bonitas e feias. A mais bonita era Inês, 'morenaça' como diria Vinicius de Morais. Inês era morena clara, alta, com carnes fartas distribuídas por seu corpo bem torneado que atraía todos os olhares masculinos quando passava pelo corredor central em direção ao primeiro andar onde trabalhava. Machado e Inês eram namorados e aproveitavam o horário de almoço para trocarem juras de amor e carícias sentados atrás de uma das grandes máquinas impressoras. Isto enquanto os funcionários mais velhos jogavam dominó e os mais jovens jogavam futebol num pátio que servia de estacionamento. As muitas moças da gráfica passeavam pela região e gostavam de caminhar até à Estação da Luz, a menos de 500 metros da grande tipografia. Muitas vezes a tranquilidade do horário de almoço era interrompida por gritos que vinham de onde estavam Machado e Inês. O casal brigava quase diariamente, xingavam-se bastante e não raramente ocorria até troca de tapas. Findo o horário de almoço, cada funcionário ia para seu setor e Machado orgulhosamente exibia as marcas de unhas nos braços e por vezes até arranhões no rosto. Jamais saíam do rosto de Machado o eterno e cínico sorriso e o cigarro no canto da boca.

Grande western lançado em São Paulo
em abril de 1961, no Cine República.
Machado na fila do Cine República - Em meados de 1959 a Tipografia Brasil me matriculou na Escola Senai de Artes Gráficas e perdi o contato com Machado, o que muito lamentei pois deixava de ter o amigo para falar de faroestes. Numa de nossas últimas conversas ele, com seu jeito ruidoso de falar, tornou a dizer que eu deveria assistir "Duelo ao Sol" de qualquer jeito pois esse era o melhor filme do mundo. Quando retornei do Senai ao final do semestre havia ocorrido um grande corte de funcionários na Tipografia Brasil e Machado e Inês haviam sido dispensados. Ambos deixaram saudade e o horário de almoço não era mais o mesmo sem as brigas diárias do apaixonado e turbulento casal. Nunca mais se soube de Machado, até que em abril de 1961 foi lançado com grande sucesso no Cine República o western "Sete Homens e Um Destino". A cidade inteira comentava esse filme e no sábado à noite na semana de estréia, depois de enfrentar duas horas numa longa fila, eu e dois amigos chegamos à bilheteria do Cine República. Nesse momento alguém tocou em meu ombro e cumprimentou em voz alta: "Como vai, amigo Darci, tudo bem? Compre dois ingressos para mim..." Era Fernando Machado acompanhado de uma bonita moça que não era Inês e que me foi apresentada como sendo sua noiva. Um tanto constrangido olhei para trás onde as pessoas da fila faziam caras de poucos amigos. Percebendo, Machado olhou para o circunspecto senhor e sua esposa, atrás de nós na fila e falou: "Boa noite, eu conheço o Darci há muitos anos e ele gosta demais de faroestes. O senhor também gosta?" Sem interromper a conversa Machado me passou o dinheiro da entrada e quando eu lhe entreguei os dois bilhetes ele me perguntou em tom de voz que todos ao redor escutaram: "E então, já assistiu 'Duelo ao Sol'? Como! Ainda não! Darci, você tem que assistir. É o melhor filme do mundo!" Machado agradeceu e desapareceu Cine República adentro com a namorada.

Cena que Fernando Machado imitava com a
namorada Inês na Tipografia Brasil.
Tapas, beijos e unhadas - Demorou algum tempo para que eu assistisse "Duelo ao Sol", o melhor filme do mundo, segundo Fernando Machado. Só após assisti-lo é que percebi que a vida de Machado era um filme em que ele interpretava o próprio Lewt McCanles, personagem de Gregory Peck em “Duelo ao Sol”. O mesmo jeito de andar, de falar, de sorrir, de fumar e, principalmente, de namorar. Sim. E aquele selvagem namoro vivido todos os dias no horário de almoço na Tipografia Brasil era a forma de Machado assumir completamente aquela persona. Inês não namorava um amalucado impressor mas sim Lewt McCanles. E provavelmente sem saber ela era a Pearl (Jennifer Jones) na vida de Machado. Mesmo nos tapas, beijos e unhadas no rosto do Gregory Peck brasileiro.



6 comentários:

  1. Oi, Darci

    Se todo mundo gostasse só de uma coisa, a vida seria sem graça.
    Ótimo que o Machado tenha gostado muito de Duelos ao Sol. Assim, os filmes podem ser bem diferentes, para todos os gostos.
    Um lindo relato de vidas que se cruzaram por motivos diversos, entre eles o faroeste Duelo ao Sol.
    Um grande abraço

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    1. Janete, o Machado não gostava de Duelo ao Sol. Ele era simplesmente fanático. Creio que um caso para tratamento psicanalítico. Ele provocava as brigas com a moça para ser xingado, unhado e arranhado. Aí arrancava beijos à fora da moça que devia gostar muito dele... - Um abraço do Darci

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  2. Caro Darci,
    Muito bom de ler esse Cine Saudade. Achei divertido o seu jeito de contar o dia-a-dia na Tipografia Brasil. Que pessoa mais interessante o Impressor Felipe Machado Peck! Senti de perto a sua perda quando o corte no pessoal interrompeu seu convívio com ele. Desfrutei do afeto amistoso no reencontro ocasional do Cine República ligado ao sucesso do filmaço "Sete Homens e Um Destino". Muito especial o gosto de Felipe Machado pelo ator Gregory Peck. A mim fez bem saber desse espontãneo admirador do ator e, é claro, da sinceridade com que se declarava fã do western. Compartilho das predileções de Felipe Machado, confesso ter saudades dele sem nunca tê-lo conhecido. Abraços,
    Cibele

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    1. Olá, Cibele - Você nem imagina o tipo que era o Fernando Machado. Cabia bem naquela seção "Meu Tipo Inesquecível" da Seleções do Readers Digest... E para ajudar ele se achava o próprio Lewt McCanles. Você lembrou bem daquela coisa chamada 'cortes de funcionários'. De repente perdia-se inúmeros amigos. E o pior que às vezes para sempre. Um abraço do Darci.

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  3. A vida é assim mesmo... tanta gente com quem convivemos durante um tempo e depois desaparece para sempre, como o Shane "daquele" filme...
    Darci, para um filme tão cheio de defeitos, até que vc. está dedicando muito espaço, heim? Tem certeza que ele não é "o melhor filme do mundo" também prá você?
    E por falar em defeitos, a cena mais constrangedora para mim é aquela em que o Lionel Barrymore faz aquela cara mais compungida e diz "não vou atirar nessa bandeira". Putz! Mas a americanada deve ter adorado, não é?
    (Nossa, esse comentário devia ser feito na outra matéria, não aqui).
    Abraços

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  4. Olá, José Tadeu. Duelo ao Sol é um filme que tem muitos admiradores e portanto até merece uma matéria sobre os bastidores, uma resenha pessoal e o clip. Já o Cine Saudade foi apenas para aproveitar que o assunto é esse filme. Concordo com você que aquela cena do Lionel Barrymore merece entrar para os anais das piores coisas dos faroestes. Todos queríamos ver aquelas centenas de cowboys se bater contra a Cavalaria. Mas o produtor preferiu gastar dinheiro mostrando ao mundo Jennifer Jones.
    Um abraço do Darci

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