UMA REVISTA ELETRÔNICA QUE FOCALIZA O GÊNERO WESTERN

23 de abril de 2014

PERSONAGENS CREPUSCULARES DO FAROESTE, POR FERNANDO MONTEIRO


Fernando Monteiro
Fernando Monteiro é romancista, poeta, crítico de cinema e realizador de inúmeros documentários de curta-metragem. E Fernando é também apaixonado por Faroeste tendo traduzido para o Português o livro “Hombre”, de Elmore Leonard, lançado pela Editora Rocco. No momento o escritor pernambucano prepara o ensaio “Personagens Crepusculares do Western” abordando cowboys cujo tempo parece se esgotar e que apareceram em filmes de grandes cineastas e também daqueles menos festejados. WESTERNCINEMANIA tem a honra de apresentar aos leitores a breve introdução que Fernando Monteiro preparou para esse livro que preencherá uma lacuna sobre o assunto, não só na bibliografia nacional mas também na publicada no exterior. [Na foto de abertura desta postagem vemos Randolph Scott e Joel McCrea em cena do filme "Pistoleiros do Entardecer" (Ride the High Country]

PERSONAGENS CREPUSCULARES DO WESTERN

Por Fernando Monteiro

Breve introdução

      Praticamente em extinção na indústria cinematográfica americana, o western ainda pode ser chamado de popular, por paradoxal que pareça essa afirmação feita a partir de balizas simplesmente do prestígio que os faroestes permanecem desfrutando, entre admiradores ferrenhos do gênero de filmes que dilatou, para início de conversa, digamos que dilatou ao menos a espacialidade do cinema (o que já seria muito).
         No começo do século XX, foram as produções primitivas do gênero que ajudaram a libertar a nascente “sétima arte” dos grilhões do teatro (a que ela estava aferrada, naturalmente). Não havia a intenção disso, é claro. O que aconteceu é que, nos EUA, os pioneiros hollywoodianos foram em busca do regionalismo ianque por imantação própria do assunto e da época ainda próxima deles. É algo que explica o fato do western ter sido imediatamente popular (basta pensar no “regionalismo” nosso, dos sertões para os quais sempre nos voltamos de um modo ou de outro), embora esteja agora praticamente abandonado, pode se dizer, pela mesma Hollywood, onde os cenários de cidadezinhas do Oeste se tornaram uma espécie de sítio cinematográfico pompeiano, digamos assim.
         Procura-se quem não tenha visto Pompéia como um espaço de morte, após visita que não termina sem um sentimento de melancolia que está, por incrível que pareça, próximo de um gênero (uma vez chamado de “cinematográfico por excelência”) na verdade muito pouco citadino, ou pelo menos de cidades apenas de falsas fachadas cercadas por espaços infindos, na vastidão do nada para o qual cavalga de volta um pistoleiro como “Shane”.
          Assim como a antiga cidade romana permanece diante de nossos olhos, os westerns maduros – pelo menos para o meu modo de ver (e conectar) coisas –, os filmes feitos por grandes e por medianos diretores, portam a visão de um passado que nos comunica impressão mais ou menos semelhante, desenrolando-se em tempo e espaço atravessados por não poucas figuras tomadas pelo opressivo sentimento da perda de um mundo.
         O cenário desolador de um sítio arqueológico pode ser analogia estranha com relação à recriação da saga da “conquista” das terras arrancadas aos índios, em primeiro lugar, e, pouco a pouco, igualmente perdida para alguns homens brancos colhidos na dobra daqueles tempos como por algum desastre longamente nevoento sob um Sol brilhante, na solidão da pradaria.
         A diferença – fundamental (mas que não altera o sentimento nosso, neste caso) – é que os mais reflexivos faroestes, isto é, aqueles que eu citarei como filmes recheados desses personagens do término de um ciclo, do entardecer de uma aventura, apresentam o fim de uma época não como uma morte sobrevindo em horas, para todos, num dia de cinzas, pedras e gases asfixiantes. Não. Naquela perigosa fronteira de liberdade temerária – e também de estranhamento –, na imensidão ainda rarefeitamente povoada, ocorre uma longa despedida, às vezes fatal para certo tipo de psicologia, ou, enfim, para adeptos de um modo de viver que se recusavam a vê-lo progressivamente mudado.
         Os personagens que penetram nesse crepúsculo – índios, pistoleiros, vaqueiros e montanheses empurrados para fora dos seus territórios, do seu modus vivendi e até do isolamento buscado na Fronteira – sentem-se morrer enquanto ainda ativos e até pujantes, como muitos dos “peles-vermelhas”, despossuídos das planícies de caça e lutando, obstinadamente, por sua cultura em muitos aspectos superior à dos milhares de “caras-pálidas” naquelas caravanas de carroções invasores da região de natureza magnificamente selvática.
          Nessa paisagem – belíssima e áspera – de fim de mundo, essa penetração foi o Vesúvio, fatal, a se derramar pelas planícies, naquela erupção chamada de “inelutável marcha do progresso”, para sempre alterando o que havia sido, uma vez, o Oeste bravio de manadas de búfalos e outros animais livres, espécie de Éden tão convidativo quanto perigoso nas ameaças que reservava para os incautos.
          Um alerta, aqui, se faz necessário: não pretendo discutir, neste texto, a inevitabilidade do fato em si, ou seja, a essência do fenômeno social, do Go to West gritado, exclamativamente, logo que terminou a Guerra da Secessão, como um chamado, no mínimo, à união de forças do país recém-fraturado – para não falar da descoberta de riquezas em territórios antes cedidos aos índios por tratados que, de repente, Washington resolvia que era necessário rever, reformular e quebrar (em não último caso, e sempre para total prejuízo das nações indígenas, como no exemplo mais acabado: o das Black Hills, levando à resistência todos os guerreiros liderados pelo chefe Nuvem Vermelha).

Acima Lee Marvin e Jack Palance em "Monte Walsh"; no centro Strother
Martin e L.Q. Jones em "A Morte Não Manda Recado" (The Ballad of Cable
Hogue) e James Stewart e Henry Fonda em "O Último Tiro" (Firecreek);
abaixo Charlton Heston em "E o Bravo Ficou Só" (Will Penny) e
Robert Ryan em "Meu Ódio Será Sua Herança" (The Wild Bunch).

           Não trilharemos por aí, apesar de ser assunto fascinante (e já abordado pelo brasileiro Viana Moog). Nosso interesse se fixará, bem abaixo das razões históricas das Guerras Índias, mais precisamente na maneira como o cinema mostrou alguns personagens como que “quebrados” por melancolia menos trágica do que a dos nativos – sendo, predominantemente, o sentimento de um tipo particular de homem branco tangido para o modo de vida violento das terras oferecidas aos colonos. Tal apelo os tocava em algum ponto de puro individualismo, até se tornar, quase, uma neurastênica maneira de fugir ao gregarismo, ou de escapar para a tabula rasa de cidades construídas do dia para a noite (e com uma pulsão que não impedia, mais tarde, de serem rapidamente abandonadas, para virarem ghost towns cercadas das minas onde haviam se esgotado os filões de ouro).
            O que nos interessa, aqui, é tentar examinar uma complexidade até moderna, já – e reconhecida como comportamento de outsiders. Pretendemos analisar filmes que os puseram em cena, na pele de alguns estranhos sujeitos decididos a rejeitar os padrões do tal “progresso inevitável” etc, para, então, colocarem as suas vidas, ainda relativamente cedo, na redoma de um passado de certo modo cancelado. Seus dilemas são diferentes daqueles das tribos simplesmente expulsas, nada mais nada menos. Pois esses homens – geralmente solitários, se não amargos – se sentiam deslocados dentro da sua própria cultura triunfante sobre a região dura. Haviam decidido aderir a uma forma de vida estranhamente solitária, e gostariam que ela permanecesse inalterável, como cenário de cavalgadas sem fim e, possivelmente, sem causa, de cidade precária para cidade ainda mais precária, rumo a um horizonte “perdido” como na peça de Eugene O’Neill.
              O velho Oeste deles devia ser sem cercas, sem telégrafo e sem trens trazendo o resto da civilização que justamente haviam deixado para trás. Por isso, o choque de culturas (índio versus branco) fica fora de nosso foco, porque se trata, aqui, de talvez antecipar um “mal estar na cultura” estranhamente anunciado por homens capazes de trazer uma velha brochura de Shakespeare enfiada no bolso bem próximo de uma pistola. Podemos lhe dar os nomes mais diferentes, porém o nó de suas reações, dramatizadas cinematograficamente, coloca um curioso problema de mentes inadaptadas, de corações selvagens numa Idade já profundamente alterada pelos efeitos da Revolução Industrial na Europa.
             O mundo desses westerns “do fim” se parece como um mundo de Homero (o que nos devolva à antiguidade clássica) no qual o Bardo grego pudesse por o pé no estribo de uma diligência, para ir de Atenas à Esparta, e fosse aconselhado a ir armado, na viagem por um Peloponeso de batalhas individuais, íntimas e cheias de dúvidas mal iluminadas por lampiões a querosene abrindo retângulos em ruas empoeiradas.    
             Esse é o clima que queremos percutir. E tal clima, em nossa opinião, é ainda mais acentuado nos faroestes melancólicos, com os seus xerifes e foras-da-lei deslocados, seus seres solitários e feitos, em parte, da nuvem da lenda histórica e da fabulação operada nos chamados “westerns psicológicos”, com lentes focadas neste impasse básico: não poder prosseguir na sua vida como era, ou não ver futuro para o seu modo de vida, e ter que mudar ou morrer (sendo que a maioria encarava a mudança como uma morte indigna – e, então, iam procurar a morte real, jogando a última cartada para perder e não para ganhar)...      
             Cabe fazer uma ressalva final: no âmbito dos filmes que elegemos para este modesto estudo, ficarão de fora as produções não-americanas (vale dizer: italianas) ou desvinculadas da autêntica cultura westerniana, digamos assim, no sentido daquela a que pertencem alguns diretores ligados ao faroeste pelo nascimento reforçado pela preferência, mais ou menos na linha da definição de mestre Ford, quando indagado, no famigerado “Comitê de Atividades Antiamericanas”, sobre o seu nome e a sua profissão: Meu nome é John Ford e sou diretor de westerns. 

             Os senadores obtusos que tomavam o depoimento do Mestre, certamente não perceberam que até sob o tapa-olho do lendário cineasta deveria haver uma chispa de fina ironia a respeito de si mesmo, como diretor marcantemente de faroestes, sim, mas também de filmes de outros gêneros que, naquele momento, Ford “esqueceu” em benefício de se situar profissionalmente no gênero nostálgico nos seus melhores e mais memoráveis títulos.

5 comentários:

  1. FERNANDO MONTEIRO escreveu:

    A honra é toda minha, Darci amigo, por ver a modesta "introdução" a um subtema que os faroestes só visitaram nos seus últimos decênios, tratado com as honras editoriais que o seu WESTERNCINEMANIA sabe conferir aos assuntos desse gênero cinematográfico que todos, aqui, amamos.

    Abraço grato.

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  2. FERNANDO MONTEIRO acrescentou complementação do texto "Personagens Crepusculares do Western":

    1. O western, nos seus primórdios (que se confundem com os do cinema americano), era sem complexidades: ele não tinha – nem podia ter – “matizes psicológicos”, em tempos de pura ação fotografada, cavalgadas e simples pulsação do espaço que invadia, ou melhor, dilatava as telas ainda tomadas pela imitação servil de um palco de teatro.
    Essa primeira contribuição do gênero trouxe o respiro das planícies para uma visão até então confinada, ali, naquele momento em que tudo ainda engatinhava nos limites daquela “invenção de feira” ainda por se desenvolver como linguagem artística, ultrapassando dos limites de alguma engenhoca digna apenas de curiosidade.
    Praticamente, não havia roteiro, naquela época. O que alimentava a ação eram os ecos das lendas de um Oeste fabulado, mitificado até quase à caricatura. Mocinhos de chapelão branco, bandidos de lenço levantados por sobre o nariz e correrias entre índios de opereta e heroísmos e vilanias desenfreadas... Tudo parecendo coberto, hoje, pela poeira esbranquiçada da ingenuidade que opunha o Bem ao Mal do modo mais esquemático possível e, depois fazia tudo terminar sempre bem ((um tanto subitamente, no mais das vezes). Esse maniqueísmo de Nickelodeon levava à inevitável a prisão dos bandidos e ao triunfo de mocinhos imaculados, abraçados mais a seus cavalos do que às “mocinhas” de olhos pintados.
    Era como se bastasse o simples milagre, ainda: ver a recriação do caminho de ferro avançando, metro a metro, sobre o território inóspito – sendo que muitos dos pioneiros de Hollywood recordaram de uma eventual superposição de mito e realidade, quando os estúdios do começo do século passado eram visitados, por exemplo, por lendas do Oeste ainda vivas como o ex-xerife Wyatt Earp (falecido em 1936) presente em sets nos quais eram rodadas aquelas semi-pantomimas geralmente de dois rolos, com quase todos os atores de bigodes caídos sobre os lábios. Ou seja, tudo às vezes podia se confundir, por trás e na frente das câmeras, quem sabe “autenticando” um espetáculo montado mais para o burlesco do Circo de Buffalo Bill do que para qualquer outra coisa...




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  3. CONTINUAÇÃO:

    2. O circo de William F. Cody não é uma alusão casual, aqui. Nada poderia ser mais “inspirador” do que a saga do Oeste falsificada, nas suas últimas décadas, po publicações baratas, livrinhos de aventuras e espetáculos como o do ex-batedor do Exército e aventureiro da fronteira que percebeu bem o potencial das histórias vividas pelos pioneiros há pouco saídos da poeira diretamente para a serragem circense.
    Os livretos “de cordel” do Oeste e os shows de feira foram, realmente, os modelos em parte considerados para a elaboração dos filmes que, vistos hoje, parecem cômicos e não evocações de uma violência ainda recente, com sangue de verdade tingindo as calçadas de madeira das Tombstones.
    Na idade dos pioneiros do cinema, principalmente os faroestes eram rodados como folhetins em série, um atrás do outro, até chegar o tempo da consolidação de um gênero respeitável – quando chegou a hora do western amadurecer nas mãos de John Ford, Howard Hawks, Henry King, Raoul Walsh, William Wellmann, Anthony Mann, Henry Hathaway, Delmer Daves, John Sturges, Budd Boetticher, Robert Aldrich e Sam Peckinpah, entre outros.
    O pioneiro Cecil B. de Mille produziu e dirigiu alguns belos westerns maniqueístas conforme o gosto dele e de outros desbravadores que não viam motivos, como diretores, para “complicar” a psicologia de personagens simples, aos seus olhos: pioneiros, pistoleiros, índios broncos, cavalarianos heróicos e moças da difícil “vida fácil” nas velhas cidades de cartolina dos cenários pintados para filmes em poético preto-e-branco.
    Seria preciso esperar pelo gênio em maturação de John Ford, para ver surgir as nuances de cinza da ambiguidade etc, a partir do inaugural “No Tempo das Diligências” (Stagecoach, 1939), um marco divisor que vai ensejar o surgimento dos faroestes de maiores ambições psicológicas, com heróis e vilões retratados com nuances até então inesperadas em se tratando de faroestes.
    Precisaremos esperar um pouco mais para ver surgirem os personagens “crepusculares” que estão em foco, aqui: são figuras do pós-psicologismo posto entre os duelos, inserido no meio das batalhas de brancos contra índios e as lutas de brancos contra brancos, quando aparece a nostalgia final, a melancolia dos inadaptados expulsos do paraíso que, de uma hora para outra, podia virar um inferno. Eles só surgiram quando o western passou a ter um olhar retrospectivo sobre o próprio pó, depois de assentado em prestígio consolidado por críticos principalmente europeus, apaixonados pelo gênero que amadurecera. Os faroestes que ainda gaguejavam, nos primeiros tempos, não poderiam jamais oferecer o material dos pistoleiros do entardecer caminhando para a morte como única herança de profissionais já sem lugar num mundo em mudança radical, ou seja, penetrado pelo “progresso” com e sem aspas, gerando a solidão que olha para trás e não sabe o que lamentar: o que aconteceu ou o que não aconteceu, a solidão ou a companhia que trouxe todo tipo de gente para onde só existia céu, vales e montanhas tão magnificamente desertas que a presença do ser humano parecia um pecado no jardim de um falso Éden.
    É nessa obra de hesitação e desilusão que queremos trabalhar ambiguidades surgidas no fim do ciclo, minerando o filão que está mais ao fundo na mina da dúvida. Por um breve momento – antes de desaparecer – o faroeste pareceu que estava trazendo Hamlets armados até os dentes para o "deslimite" da fronteira entre o Bem e o Mal agora incertos ou, de repente, mixados por metros e metros de películas feitas não mais com a certeza, mas com perguntas inquietantes levadas pela alma errante dos ventos.

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  4. Muito bom saber que a bibliografia sobre o western está sendo expandida no Brasil. Há muitas lacunas, como sobre o eurowestern, que tem ainda menos a respeito.

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  5. FERNANDO MONTEIRO escreveu:

    Caro Vinícius Lemarc:

    O livro "Personagens Crepusculares do Western" está com previsão de lançamento em outubro próximo -- e é possível que seja editado também nos EUA, em 2015, com a tradução para o inglês a nosso cargo (tudo dependerá dos acertos com o selo editorial americano).
    Grato pelo interesse.

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