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23 de outubro de 2015

MARCHA DE HERÓIS (THE HORSE SOLDIERS) – REUNIÃO DE FORD E WAYNE EM FILME DE CAVALARIA


Acima à esquerda o escritor Harold Sinclair;
no alto nas fotos menores os irmãos Mirisch (Harold,
Marvin e Walter); no centro os roteiristas John Lee
Mahin e Martin Rackin; abaixo John Ford,
William Holden e John Wayne.
Os irmãos Mirisch, da United Artists, sabiam muito bem da paixão de John Ford pelos assuntos da vida militar norte-americana, especialmente a Cavalaria no tempo do Velho Oeste. Ford com sua maravilhosa ‘Trilogia da Cavalaria’ deu ao cinema alguns dos momentos mais poéticos sobre a vida nos fortes isolados nos rincões distantes. Pensando no lucro certo que obteriam, Walter, Marvin e Harold Mirisch contrataram John Ford para dirigir uma adaptação para o cinema do livro “The Horse Soldiers”, de autoria de Harold Sinclair, baseado em fatos reais. Garantiram a Ford que ele teria John Wayne e outro grande astro encabeçando o elenco. William Holden vinha de um sucesso seguido do outro e, assim como Wayne, frequentava os primeiros lugares do ‘Top-Ten Money Making Stars’ do cinema. Mas não foi nada fácil reuni-los pois estariam em jogo os interesses de nada menos que seis empresas: a de John Wayne, a de William Holden, a de John Ford, a dos roteiristas Mahin-Rackin, a dos irmãos Mirisch e a United Artists. Três meses de negociações entre os advogados resultou num ultracomplexo contrato de nada menos que 250 páginas que, trocado em miúdos, dava a Ford um salário de 350 mil dólares e aos dois atores 750 mil dólares para cada um deles. Todos os três receberiam ainda porcentagem sobre os lucros do filme depois que fosse superado duas vezes o custo final de produção. O western se chamaria “The Horse Soldiers” (“Marcha de Heróis”, no Brasil) devendo ser filmado em locações na Louisiana e no Mississipi. John Ford não gostou do roteiro elaborado por John Lee Mahin e Martin Rackin, solicitou algumas alterações mas mesmo assim não ficou satisfeito e estava certo que seria difícil realizar um filme como ele gostava de fazer. Foi quando Ford disse a frase bastante conhecida: “Este filme para dar certo terá que ser filmado em Lourdes” (referia-se à cidade onde fica o santuário de Nossa Senhora de Lourdes). John Ford reuniu o maior número possível de atores da conhecida ‘Ford Stock Company’, grupo composto por atores e técnicos de confiança do diretor, católico que era se benzeu e partiu para mais uma aventura da sua amada U.S. Cavalry.




William Holden e John Wayne
Missão destrutiva - Em 1863 a Guerra Civil está indefinida e o Alto Comando das forças da União, sob as ordens de Ulysses S. Grant (Stan Jones) determina uma arrojada ação em território confederado. Grant convoca o Coronel John Marlowe (John Wayne) para comandar um destacamento que tem como missão destruir linha férrea, trem, telégrafo e suprimentos sulistas em Vicksburg. Faz parte da tropa comandada pelo Coronel Marlowe o médico Major Henry Kendall (William Holden). De imediato nasce uma hostilidade entre Marlowe e Kendall. Já em território confederado, a tropa chega a uma propriedade chamada Greenbriar, cuja dona é Miss Hannah Hunter (Constance Towers). Hannah atua como espiã mas é descoberta e torna-se prisioneira, passando a acompanhar o destacamento. Cumprida a missão em Vicksburg, com a destruição da Estação de Newton e parte da cidade, Marlowe decide se infiltrar ainda mais em solo inimigo. Trava então combate com um pelotão confederado, causando mais baixas aos sulistas, após o que ordena a retirada, deixando a salvo a prisioneira Hannah Hunter. Inimigos a princípio, Miss Hannah e o Coronel Marlowe descobrem que se gostam e apostam que um dia, finda a guerra, poderão voltar a se encontrar.

Destruição da ferrovia em território confederado.

Reunião do Alto Comando do Regimento sob
uma árvore; John Wayne comandando a tropa.
Ford distante de um forte - Diferentemente dos westerns que compõem a ‘Trilogia da Cavalaria’, “Marcha de Heróis” não é um filme sobre a vida na caserna. Sequer o destacamento comandado pelo Coronel Marlowe permanece em algum momento numa fortificação. O regimento de soldados que avança Sul adentro raramente têm aqueles momentos da descontração que tornaram tão agradáveis os filmes da ‘Trilogia’ rodada nos anos 40. Talvez esse tenha sido o fato que desgostou John Ford quando leu e tentou alterar o roteiro, percebendo a impossibilidade de dar vida a situações e tipos pitorescos que ilustram a rotina de um quartel. Ainda assim Ford contou uma história interessante e que tem momentos de intenso brilho nesta que foi a primeira vez que abordou a Guerra Civil. Retornaria rapidamente ao assunto no segmento do conflito em “A Conquista do Oeste” (How the West Was Won), superprodução em Cinerama realizada de 1962. Conhecida como ‘A Batalha da Estação de Newton’, a história de “Marcha de Heróis” de fato ocorreu, embora a adaptação livre do livro de Harold Sinclair tenha sido bastante alterada. O nome do Coronel que comandou a incursão não era John Marlowe e sim Benjamin Grierson e, para criar um romance no filme, a personagem ‘Miss Hannah Hunter’ é uma jovem, enquanto a espiã sulista do livro de Sinclair tinha 61 anos de idade.

Carleton Young
Simpatia pelos sulistas - Com a Guerra Civil indefinida, a incursão idealizada pelo Alto Comando da União é vital e a marcha sobre o Sul deveria ser mesmo heroica. Ninguém melhor que John Wayne para, voltando a envergar a farda azul da gloriosa Cavalaria, cumprir a missão conduzindo seus homens na série de destruições impostas aos Confederados. E há ainda William Holden, cuja imagem valorosa vista em “A Fuga do Forte Bravo” (Escape from Fort Bravo) permanece na lembrança de todo fã de westerns. Eis, no entanto, que Ford inverte tudo, praticamente se esquece dos bravos protagonistas e o que se vê em “Marcha de Heróis” é uma clara demonstração de simpatia pelo Sul. Desde a ação corajosa da mulher que se empenha pela causa liderada pelo General Lee, passando pelo massacre na Estação de Newton, chegando ao batalhão formado por meninos da Academia Militar de Jefferson que ‘afugenta’ as tropas ianques. Mesmo no episódio em que dois renegados aprisionam o xerife Goodbody (Russell Simpson), o velho homem da lei é mostrado com respeito e porte aristocrático ainda possível de ser conservado. E são necessárias diversas situações para que o áspero Coronel John Marlowe demonstre que é um ser humano que sofre com aquilo que é obrigado a fazer e capaz de até de amar e sofrer por amor.

Os alunos da Escola Militar de Jefferson; o massacre na Estação de Newton.

William Holden e John Wayne; mulheres sulistas
revoltadas jogando areia na Cavalaria.
Antagonismo incontido - Quando lançado, em 1959, “Marcha de Heróis” foi recebido com frieza pela crítica e isso se deve às resenhas desfavoráveis das bíblias dos críticos daquela época, as revistas “Cahiers Du Cinéma” e “Positif”. Mas de modo algum esse western de John Ford é um filme sem qualidades, muito pelo contrário. O conflito pessoal entre o médico pacifista Major Kendall, e o Coronel Marlowe, determinado cumpridor do dever, é significativo e bem desenvolvido, acrescido ainda pela razão que leva Marlowe a detestar médicos (um incidente no qual perdeu a esposa por incompetência de doutores). Após um parto de uma mulher negra, diante da pressa de um inconformado Coronel Marlowe, o Major Kendall exclama: “A vida é interessante pois morre uma pessoa e outra vem ao mundo”. Kendall referia-se à morte de um soldado vítima de gangrena. Magnificamente Ford mostra o horror da guerra, inicialmente com a emboscada em Newton que dizima toda uma tropa confederada e posteriormente com os fundos de um saloon transformado em hospital no qual o Major Kendall trata dos confederados com a mesma atenção com que tenta salvar os ianques e onde o sangue jorra de corpos mutilados.

A guerra forjando políticos - O Coronel Marlowe lembra um pouco o Ethan Edwards de “Rastros de Ódio” (The Searchers) pelas muitas contradições do personagem. Engenheiro ferroviário de profissão, Marlowe se vê obrigado a destruir linha férrea e toda uma composição que chega à Estação de Newton. Cumprida sua missão em Vicksburg, Marlowe retorna com seu destacamento, mas é um homem totalmente isolado. E Ford não perde a oportunidade para mostrar o que sente pelos políticos, isto através do Coronel Secord (Willis Bouchey), que a cada obstáculo vencido acredita que possa se candidatar a um cargo mais importante, podendo mesmo chegar à Casa Branca. A foto com oficiais é um primor de crítica ferina expressa nas poses orgulhosas de Secord e outros oficiais, enquanto Kendall demonstra desinteresse e Marlowe tem ar de profunda irritação. É Ford com sua genial sutileza.

Posando à esquerda estão William Leslie, Chuck Hayward e William Holden em pé;
sentados nas extremidades estão John Wayne e Willis Bouchey;
na foto da direita Judson Pratt, John Wayne e Willis Bouchey. 

Constance Towers pergunta a John Wayne se
ele prefere coxa ou peito;
abaixo Denver Pyle e Strother Martin. 
Graça por vezes triste - Como é seu costume, o diretor cria situações de comicidade com o beberrão Sargento Kirby (Judson Pratt), tentando sem sucesso imitar o inesquecível Victor McLaglen. Muito mais bem sucedida é a sequência com a dupla de andrajosos desertores confederados Virgil (Strother Martin) e Jackie Jo (Denver Pyle), este engraçadíssimo com um tapa-olho como o próprio Ford utilizava. Atores negros são normalmente engraçados como os estereótipos que lhe são reservados, mas a escrava Lukey (Althea Gibson) é apenas simpática. E surpreendentemente, um dos momentos mais engraçados do filme é quando, na tentativa de cativar os oficiais nortistas, Hannah Hunter pergunta maliciosamente qual a preferência do Coronel Marlowe, coxa ou peito, enquanto exibe generosamente o provocante decote. O Duke ficou sem saber o que responder... Menos engraçada, trágica mesmo, é o filho da senhora Buford (Anna Lee), sendo retirado da formação dos alunos da Academia Militar por sua mãe pois o menino é o derradeiro homem a família que a guerra ainda não levou.

O aluno sendo retirado do regimento infanto-juvenil e depois fugindo de casa.

John Wayne e Constance Towers
A empolgante canção-tema de Stan Jones - Até com certo excesso, “Marcha de Heróis” exibe a cavalaria na linha do horizonte e em outras situações parecidas captadas pelas câmaras dirigidas pelo cinegrafista William H. Clothier. Essas belíssimas imagens são ressaltadas pela canção “I Left my Love” composta por Stan Jones. Essa esplêndida composição que surge retumbante durante os créditos sofre alterações no arranjo de David Buttolph e vai aos poucos se tornando triste com a constatação da crueldade da guerra. John Ford utilizou ainda outras canções conhecidas de outros filmes seus, como “Lorena”, ouvida quando o Coronel Marlowe declara a Hannah Hunter o que sente por ela. "Lorena" é o 'Tema de Martha' na abertura de "Rastros de Ódio". Num elenco recheado de rostos conhecidos e tantas vezes vistos nos filmes do próprio Ford, John Wayne tem destacada atuação, reduzindo à quase insignificância a presença de William Holden, um ator com muito mais recursos dramáticos que o Duke. Mais grosseiro e violento que nunca, Wayne chuta ou derruba quase tudo que vê à sua frente, culminando com uma pilha de copos que se torna vítima da ira do personagem. Constance Towers é a bela sulista que a guerra faz prisioneira e Carleton Young está ótimo como o estoico Coronel Confederado maneta. Willis Bouchey desperdiça um bom papel com sua exagerada interpretação do ambicioso Coronel Secord. Bing Russell (o pai de Kurt Russell) tem provavelmente o seu maior e melhor desempenho no cinema, num filme que dá a Chuck Hayward uma boa oportunidade como ator. Uma pena que a aparição da excelente Anna Lee tenha sido tão curta.

William Holden e John Wayne; Constance Towers

Chuck Hayward comemora a vitoriosa ação em Vicksburg prestes a ser arrancado
de seu cavalo por John Wayne; como se fosse Victor McLaglen, Judson Pratt
vê John Wayne quebrar a garrafa que escondia sob a camisa.

Irritado, John Wayne reage destruindo uma pilha de copos o saloon em Newton.


John Ford
Um grande e belo filme - “Marcha de Heróis” talvez seja o mais menosprezado dos westerns de John Ford, embora se trate de um grande e belo filme. Mais ainda se considerado que o diretor perdeu o interesse no trabalho após a morte em cena de Fred Kennedy. Fartamente dialogado sem que isso canse o espectador pois o objetivo da missão passa por situações engendradas com inteligência. Há, sem dúvida, pontos negativos, como o inconvincente romance que resulta da hostilidade entre o Coronel Marlowe e Hannah Hunter, hostilidade que se transforma em admiração. Ou ainda a cansativa e desnecessária explicação da razão que leva Marlowe a detestar médicos. Contudo, se na filmografia de John Ford “Marcha de Heróis” está um pouco abaixo de seus melhores trabalhos, este filme reluziria na lista de filmes de qualquer outro diretor.


JOHN FORD DIRIGINDO "MARCHA DE HERÓIS"

John Ford conversa com William Holden enquanto John Wayne observa.

John Wayne, William Holden e John Ford em dois momentos durante as filmagens.

John Wayne a cavalo aproxima-se de John Ford.

John Ford orienta Constance Towers a esbofetear John Wayne;
à direita Constance interpretando observada por Ford, Holden e o Duke.

John Ford de chapéu sobre a grua dirige a sequência do massacre de soldados
confederados; à direita preparativos dessa sequência.

John Ford encostado à cerca, Cliff Lyons à esquerda e John Wayne com o
inseparável companheiro, seu cigarro. 


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