29 de agosto de 2014

SUA ÚLTIMA FAÇANHA (LONELY ARE THE BRAVE) – IMERECIDO WESTERN-CULT


Acima Edward Abbey e seu livro;
abaixo o roteirista Dalton Trumbo.
Quando produziu “Spartacus”, insatisfeito com o trabalho de Anthony Mann, o ator-produtor Kirk Douglas dispensou o conceituado diretor no início das filmagens, substituindo-o por Stanley Kubrick. A Bryna, produtora de Kirk Douglas, era possuidora dos direitos cinematográficos do livro “The Brave Cowboy”, de autoria de Edward Abbey história que seria um tema perfeito para Anthony Mann levar à tela. Mas a esta altura Mann jamais aceitaria trabalhar novamente com Douglas. “Spartacus” teve roteiro escrito por Dalton Trumbo, a mais conhecida vítima entre os ‘Hollywood Ten’, escritores presos e impedidos mais tarde de trabalhar por terem sido colocados na lista negra da capital do cinema no final dos anos 40. Resgatado do anonimato por Kirk Douglas, o mesmo Trumbo escreveu o roteiro para um filme sobre o texto de Edward Abbey, dando ao roteiro o título “The Last Hero”. Porém a Universal Pictures escolheu outro nome para a produção, intitulando-o “Lonely Are the Brave”. No livro de Abbey o amigo do cowboy solitário vai para a cadeia por ser contra o alistamento militar obrigatório. Trumbo preferiu ‘atualizar’ o motivo da prisão que passa a ser a ajuda aos mexicanos que ilegalmente atravessam a fronteira com os Estados Unidos, assunto que 20 anos mais tarde se tornaria um grande problema para os norte-americanos e que ainda hoje persiste. Autor de roteiros admirados, dois deles premiados com o Oscar - “A princesa e o Plebeu” (1953) e “Arenas Sangrentas” (1957) – a adaptação de Trumbo “Lonely Are the Brave”, que no Brasil se chamou “Sua Última Façanha”, está longe do que se possa chamar de um roteiro perfeito.




Kirk Douglas escapando da prisão e
jipe e helicóptero caçando o fugitivo.
Cadeia, fuga e acidente - John W. Burns, apelidado ‘Jack’ (Kirk Douglas) é um cowboy inconformado com a realidade com que se defronta num tempo em que jatos cortam a tranquilidade dos céus e a tecnologia parece imprescindível à vida do homem. Burns vaga pelas campinas sem documento algum, cortando cercas de arame farpado que impeçam sua cavalgada e vai a uma pequena cidade próxima da fronteira com o México chamada Bernal para visitar seu amigo Paul Bondi (Michael Kane). Jerry, a esposa de Paul diz a Burns que o marido está preso por dar assistência aos imigrantes mexicanos que vivem na ilegalidade. Burns envolve-se numa briga num bar, é levado para a delegacia e lá agride um policial pois sua real intenção é ser preso e poder rever o amigo Paul. Sentenciado a um ano de prisão pela autoridade local, Burns decide fugir da cadeia enquanto Paul prefere cumprir sua pena de dois anos de prisão. Burns escapa e com seu cavalo inicia a travessia das montanhas em direção à fronteira, dificultando assim as buscas comandadas pelo xerife Morey Johnson (Walter Matthau). A caçada ao fugitivo é feita por diversos policiais com jipes e um helicóptero da Força Aérea é também utilizado na busca a John W. Burns. O cowboy solitário consegue escapar mas ao atravessar a Highway 60 numa noite chuvosa é atropelado, juntamente com seu cavalo, por um caminhão, terminando assim sua audaciosa fuga.

Homem e cavalo contra a modernidade.

Jack (Kirk Douglas) na estrada.
O desencanto do vaqueiro - “Sua Última Façanha” é uma elegia ao cowboy que não mais existe, o aventureiro para quem o mundo deveria ser uma interminável planície a ser percorrida. O fim dos espaços abertos são indicados pelas cercas de arame farpado que delimitam no solo o destino desse homem, enquanto o horizonte, visto a partir de uma montanha, é cortado por jatos que deixam longos e efêmeros rastros. Para chegar a Bernal o errante cowboy atravessa assustado uma movimentada estrada vendo caminhões carregados de automóveis novos que logo estarão rodando velozmente pela rodovia. Burns passa depois por um cemitério de automóveis onde dezenas de carcaças empilhadas confirmam que aquele mundo não é mesmo o dele. Mas John W. Burns não aceita essa realidade e assim como havia cortado a cerca de arame farpado que impedia sua andança, insurge-se contra os limites que a sociedade moderna lhe impõe. Burns não é um homem qualquer, poderia exibir a medalha Purple Heart recebida por bravura em combate na guerra da Coréia, após ser ferido em batalha. Ao invés disso, no entanto, nada fala de sua vida, apenas que sua casa é o lugar onde descansa com seu cavalo. Igual a tantos outros sonhadores, Burns acredita no seu direito à liberdade contra o sistema que cria leis e limites que ele se recusa a obedecer. O desencanto com o Velho Oeste, tema deste filme dirigido por David Miller, é o mesmo de “Pistoleiros do Entardecer” (Ride the High Country), western por coincidência produzido também no mesmo ano de 1962. A diferença é que Miller não conseguiu dar a seu filme a poesia do faroeste crepuscular de Sam Peckinpah.

Gena Rowlands com Douglas.
A sutileza dos vasos sanitários - Magnificamente interpretado por Kirk Douglas, “Sua Última Façanha” é um filme comprometido pelo roteiro de Dalton Trumbo. Inevitavelmente o espectador quer saber o que leva Burns a forçar sua prisão para conversar com o amigo Paul. Jerry, a esposa deste avisa Burns que as visitas ocorrem somente às quartas-feiras. Por que então a pressa se Burns poderia esperar tranquilamente ali na casa do amigo desfrutando do conforto daquele teto e dos agrados que Jerry não lhe nega. O triângulo (ou ménage) jamais é explicado e após ser preso Burns nada de mais importante tem para conversar com Paul. A cadeia está lotada e a briga no bar não foi motivo suficiente para Burns permanecer preso. A solução então é esmurrar um policial dentro da delegacia, o que leva o cowboy a ser condenado a um ano de detenção. O que Burns esperava? Receber uma semana de prisão pela sua incontida violência? Cowboys usam a natureza como banheiro e o bravo cowboy acabará atropelado ao final por uma carreta que transporta 156 vasos sanitários, numa pouco sutil ironia do roteiro de Trumbo. E desde a primeira das várias aparições desse caminhão o filme anuncia o trágico encontro do homem com seu cavalo com o gigantesco veículo na movimentada auto-estrada.

O insistente caminhão carregado de vasos sanitários;
Kirk Douglas na casa do amigo

Abaixo Douglas em luta com Bill Raisch.
Roteiro descuidado - John W. Burns insulta seu cavalo a todo momento, chamando-o de estúpido. Ainda que seja um modo carinhoso de falar com sua única companhia, parece que a égua Whiskey é mais inteligente que seu dono. O animal jamais atravessaria uma estrada iluminada apenas pelos faróis dos veículos, à noite e sob chuva intensa. Mas o suicida Burns leva o animal à morte e quem sabe ele próprio, uma vez que Trumbo preferiu um final nada esclarecedor, final aberto, como era comum nos herméticos filmes europeus da década de 60. E o apreço de Burns pelo amigo Paul é implausível ainda mais porque Paul (anarquista no livro de Edward Abbey) parece jamais ter chegado perto de um cavalo, ele que um dia foi pardner de Burns. Roteiro indigno da assinatura de Dalton Trumbo, a impressão que fica é que o roteirista trabalhou descuidadamente no texto de Edward Abbey. Certamente Trumbo dedicou-se mais na adaptação para o cinema do volumoso “Êxodus” de Leon Uris e também no complexo roteiro de “O Último Pôr-do-Sol” (The Last Sunset), ambos escritos no biênio 1960-1961. Só isso justifica as falhas do script de “Sua Última Façanha”, filme bem dirigido por David Miller, diretor mais afeito a dramas que a faroestes. O único western que Miller havia realizado até então fora “Gentil Tirano” (Billy the Kid), em 1941. Há momentos brilhantes em “Sua Última Façanha”, como a violenta luta de Burns contra o provocador maneta e a incrível subida da escarpada montanha praticamente arrastando o cavalo. O uso do dublê foi reduzido às tomadas mais perigosas e Douglas é quem participa da maior parte desses takes.

Luta de um só braço.

O xerife Walter Matthau; abaixo os
pilotos, o da esquerda é Bill Bixby.
O policial que veio do céu - Dalton Trumbo era amigo de Kirk Douglas e David Miller era um cumpridor de ordens do produtor, de onde se deduz que cabe a Trumbo os erros de “Sua Última Façanha”. Mostrar a polícia como pouco mais que um grupo de abestalhados comandados por um xerife que se diverte acompanhando a rotina de cães urinando em postes num filme sério só pode parecer rancor do roteirista. Exceto o sádico Gutierrez (George Kennedy), os demais policiais são apalermados e vagabundos e Harry (William Schallert) com sua mania de finalizar as frases com “Right!” é, pretensamente, o mais engraçado deles. E sobra ainda para a Força Aérea que empresta homens inexperientes para caçar o fugitivo Burns e o escárnio do xerife interpretado por Walter Matthau quando fala com o General do Ar. Por falar em ar, de onde surgiu Gutierrez quando, descendo do topo de uma colina, quase captura Burns? Involuntariamente esse é um momento engraçado num roteiro que procura fazer graça sem consegui-lo.

Kirk Douglas contra George Kennedy.

Walter Matthau
Western-cult - Kirk Douglas jamais cansou de afirmar que “Sua Última Façanha” é seu filme e desempenho favoritos, opinião no mínimo discutível para quem fez tantos papéis memoráveis em sua admirável carreira como ator. Tendo fracassado nas bilheterias pois fãs de westerns fugiram dessa história que mais parece um episódio de “O Túnel do Tempo”, o filme de David Miller foi guindado à condição de western-cult, não faltando quem, como Alex Cox, o considere uma obra-prima. Kirk Douglas tem, de fato, excelente e contida atuação como o cowboy solitário, mas “Sua Última Façanha” não faz sombra a “Homem Sem Rumo” (Man Without a Star), “Duelo de Titãs” (Last Train from Gun Hill) e “Ambição Acima da Lei” (Posse), isto para falar apenas de faroestes estrelado por Kirk. Uma pena a participação da ótima Gena Rowlands ter sido tão pequena. Walter Matthau tenta criar um xerife cínico e desanimado com sua função, ficando no entanto longe de seus melhores trabalhos no cinema. Matthau parece que quanto mais feio ficava melhor atuava. George Kennedy em seu primeiro filme esboçou o tipo que interpretaria para sempre em sua carreira. Michael Kane é aquilo que se pode chamar de escolha equivocada para o personagem de amigo de John W. Burns. Destaque para o ator Bill Raisch, de um só braço (perdido na guerra da Coréia), que trava a feroz luta contra Burns dentro do bar em Bernal. Bob Herron foi o dublê do difícil trabalho de substituir Kirk Douglas nas incontáveis cenas de maior perigo.


Kirk Douglas
O cenário de Albuquerque - A trilha musical de Jerry Goldsmisth é um dos pontos altos de “Sua Última Façanha” e Philip H. Lathrop respondeu pela cinematografia de um filme que se rodado em cores seria evidentemente mais bonito pelas belas paisagens de Albuquerque, no Novo México, cenário de grande parte das sequências. O preto e branco acentua a dramaticidade do filme e cria a atmosfera necessária para narrar o drama de John W. Burns. O bravo cowboy solitário interpretado por Kirk Douglas merecia um roteiro mais coerente para expressar a desilusão de um tempo que passou mas que relutantemente não é aceito. “Sua Última Façanha” é a prova que não se faz um grande filme sem um ótimo roteiro.

O cowboy solitário conversa com sua companheira.

Kirk Douglas e Gena Rowlands.


Depoimento de Kirk Douglas no DVD "Sua Última Façanha".

25 de agosto de 2014

CAT BALLOU (DÍVIDA DE SANGUE) – LEE MARVIN, O PISTOLEIRO MAIS BEBERRÃO DO OESTE


Os dois livros de Roy Chanslor que
viraram westerns; Ann-Margret e
Kirk Douglas, que poderiam ter sido
Cat Ballou e Kid Shelleen.
A mais conhecida entre as histórias escritas por Roy Chanslor foi “Johnny Guitar”. Outra livro desse autor, intitulado “The Ballad of Cat Ballou” esteve na mira de Hollywood desde 1954 quando foi cogitado para virar filme com Burt Lancaster como o pistoleiro Tim Strawn e Tony Curtis como Kid Shelleen. Depois do sucesso de “Vera Cruz” Burt Lancaster não queria interpretar outro bandido e, além disso, Burt considerou a história de Roy Chanslor séria demais. “The Ballad of Cat Ballou” rodou por vários estúdios sem que ninguém demonstrasse interesse nessa história, a não ser Jack Palance que queria muito reviver num faroeste seu personagem de “Shane”, que com Tim Strawn guardava inegável semelhança. Finalmente em 1964 a Columbia Pictures decidiu filmar “The Ballad of Cat Ballou”, entregando a Walter Newman a tarefa de adaptar aquela história para o cinema. Depois de pronto o roteiro, Frank R. Pierson, também roteirista, foi chamado para transformar o texto numa... comédia. A Columbia queria Kirk Douglas para interpretar Kid Shelleen, mas Douglas leu o script e recusou a oferta dizendo que o personagem era secundário e pequeno demais para um astro como ele. Ann-Margret recusou também convite para interpretar a heroína Cat Ballou. Lee Marvin, que parecia fadado a ser um eterno coadjuvante em Hollywood, não perdia nenhuma oportunidade para demonstrar que era um excelente ator dramático e o papel de Kid Shelleen lhe foi oferecido. O diretor escolhido para o estranho projeto foi Elliot Silvertein, que aos 37 anos tinha larga experiência em séries de TV, mas nunca havia dirigido um filme para o cinema. Lee Marvin ficou sabendo que interpretaria também um segundo personagem, o de Tim Strawn, irmão de Kid Shelleen. Marvin foi avisado ainda que a protagonista seria Jane Fonda e o título do filme “Cat Ballou”.

Lee Marvin e seu Oscar; ao lado o cavalo
que merecia metade do prêmio sendo
treinado; abaixo Lee ouve as instruções
de Elliott Silverstein.
Do trágico ao cômico - Não foi nada fácil para Lee Marvin chegar onde a produção de “Cat Ballou” queria. Depois de inúmeros takes da sequência em que Kid Shelleen tenta acertar um alvo num celeiro, o desespero tomou conta do diretor e dos produtores, pois Lee não conseguia fazer ninguém rir ao procurar ser engraçado. Veio a ordem para despedir Lee Marvin e contratar José Ferrer, mas Elliot Silverstein disse que se Marvin saísse ele também sairia e fez uma última tentativa. Silverstein pediu a Marvin que interpretasse aquela sequência de forma dramática e não cômica e o resultado foi que atores, a equipe de filmagem e os produtores presentes riram como nunca. Lee Marvin havia achado como criar o personagem tragicômico de um pistoleiro beberrão que tem que enfrentar um aterrorizante matador que usa nariz postiço (Tim Strawn teve o nariz arrancado por uma mordida numa briga), seu próprio irmão. O final da história todos conhecem: o western-comédia fez enorme sucesso de bilheteria e de crítica, sendo indicado em quatro categorias para o Oscar, recebendo somente o de Melhor Ator, entregue para Lee Marvin. Para 20 dias de trabalho em “Cat Ballou” Lee Marvin recebeu o salário de 50 mil dólares, saltando depois do Oscar recebido para o salário de 500 mil dólares em “Os Profissionais” (The Professionals) e dobrando essa quantia, recebendo um milhão de dólares por filme em “Os Doze Condenados” e em “Os Aventureiros do Ouro” (Paint Your Wagon). Na entrega do Oscar Lee fez um dos agradecimentos mais rápidos da história daquela premiação dizendo apenas: “Metade deste prêmio pertence a um cavalo que está por aí pelo vale” (referindo-se a San Fernando Valley). Se soubesse o rumo que sua carreira tomaria após “Cat Ballou”, passando a integrar o rol dos astros mais bem pagos de Hollywood, Lee poderia dizer que devia também ao cavalo borrachón ter se tornado um milionário.


Tim Straw e seu nariz postiço de prata;
uma dime-novel de Kid Shelleen.
O pistoleiro de nariz de prata - “Cat Ballou”, que no Brasil foi exibido como “Dívida de Sangue” tem sua história contada através de flash-backs ligados pela música de dois baladeiros do Velho Oeste. São eles Sunrise Kid (Nat King Cole) e Professor Samuel Shade (Stubby Kaye) que cantando lembram que Catherine Ballou (Jane Fonda) estava prestes a ser enforcada em Wolf City, Wyoming, em 1984, por ter assassinado o empresário Sir Henry Percival (Reginald Denny). No primeiro flash-back Cat Ballou retorna a essa cidade para ser professora e encontra a fazenda de seu pai Frankie Ballou (John Marley) em situação desesperadora. Frankie Ballou explica que o inglês Sir Percival pretende destruí-lo para adquirir suas terras que são importantes porque ali há um rio que serve aos interesses financeiros do empresário. Sir Percival emprega o temido pistoleiro do nariz de prata Tim Strawn (Lee Marvin) para intimidar o velho Ballou que é morto pelo estranho matador. Cat jura vingança e contrata Kid Shelleen (também Lee Marvin), pistoleiro conhecido pois suas proezas são contadas nas dime-novels (livrinhos baratos) que circulam pelo Velho Oeste. Cat Ballou passa a ser a líder de uma quadrilha formada pelos ladrões de gado procurados pela Justiça Clay Boone (Michael Callan) e Jed (Dwayne Hickman) e ainda pelo índio Sioux Jackson Two-Bears (Tom Nardini), empregado da fazenda de Ballou. O normalmente ébrio Kid Shellen recupera a sobriedade e enfrenta Tim Strawn, que Shelleen revela ser seu irmão, matando-o. A seguir junto com Boone, Jed e Two-Bears, Kid Shelleen salva Cat Ballou quando esta já tem a corda no pescoço. Partem então todos de Wolf City, Wyoming para novas aventuras.

O logotipo da Columbia transforma-se em Cat Ballou;
Stubby Kaye e Nat King Cole; Lee Marvin bêbado;
Michael Callan, Tom Nardini e Dwayne Hickman.

Dwayne Hickman disfarçado de
padre; abaixo Michael Callan
e Jane Fonda.
Colagem de clichês - “Cat Ballou” não foi a primeira comédia-western do cinema norte-americano, mas certamente foi a mais importante pois na sua trilha vieram outras, especialmente “Banzé no Oeste” (Blazing Saddles), de 1974. E mesmo faroestes sérios como “Butch Cassidy” (1969) receberam um tom mais divertido, ainda que não pândego. Engraçado em alguns momentos, coincidentemente aqueles em que Lee Marvin está em cena, “Cat Ballou” não chega a ser hilariante como a debochada comédia de Mel Brooks. E o problema maior de “Cat Ballou” é ter sido concebido para o cinema como comédia mas desenvolvido num enredo dramático com situações arquetípicas dos faroestes. A jovem indefesa é vítima do poderoso empresário inescrupuloso que intenta se apossar de suas terras; o bandido contratado pelo homem rico veste-se de preto, é frio e desalmado; o acovardado xerife de Wolf City se submete ao poderoso empreendedor; o bando de Cat Ballou se refugia (onde mais poderia ser?) no esconderijo ‘Hole-in-the-Wall’; não falta sequer o bandido disfarçado de padre que carrega uma pistola Deringer dentro da Bíblia. Estaria tudo bem se essas situações encadeadas pelos versos dos dois baladeiros (outro clichê) estivessem a cargo de atores bons de comédia, o que não é o caso de Jane Fonda, Tom Nardini, Dwayne Hickman e, menos que todos, Michael Callan. Curiosamente a falta de graça da maior parte das sequências não impede “Cat Ballou” de ser um filme agradável e isso se deve a Lee Marvin.

Lee Marvin e uma das mais famosas fotos dos faroestes.

Quase irreconhecível: Kid Shellen.
Interpretando a si mesmo - O personagem ‘Chino’ de “O Selvagem” (The Wild One), de 1953, já deixava entrever que Lee Marvin podia também ser engraçado. E como ‘Crow’, em “Os Comancheiros” (The Comancheros), de 1960, Lee comprovou esse talento oculto, mal aproveitado posteriormente por John Ford na comédia “O Aventureiro do Pacífico”. O diretor estreante (no cinema) Elliot Silverstein conseguiu fazer de Lee Marvin uma alegre surpresa carregando em seus ombros praticamente o filme todo com seu personagem Kid Shelleen. O roteiro também ajuda com algumas boas piadas que só funcionam quando ditas por Kid Shelleen. Gaiatamente Lee Marvin afirmou que se preparou a vida inteira para esse personagem (beberrão), precisando de pouco esforço para convencer como pistoleiro inebriado. Outro ponto que favoreceu “Cat Ballou” à época de seu lançamento, foi a presença emocionante de Nat King Cole surgindo na tela a cada dez minutos com sua radiante simpatia, ele que lutava contra o câncer que lhe roubou a vida pouco depois do término das filmagens. Ainda que criativa, a presença dos baladeiros narrando as sequências que surgem em flash-backs se torna excessiva pelas tantas vezes que divide o filme.

Lee Marvin, o pistoleiro beberrão.

O ameaçador Lee Marvin.
Alegria triste - “Cat Ballou” oscila entre a comédia e a paródia sendo temperado com doses de melancolia pelo fim do Velho Oeste que se aproxima pois o filme se desenrola em 1894. Entre os bons momentos desse western-comédia está a chegada do bando ao esconderijo dirigido por um envelhecido Butch Cassidy (Arthur Hunnicutt) e demais personagens de um tempo que não existe mais; a fala dolorida e nostálgica de Kid Shelleen lembrando sua decadência atuando em circos ao lado da estrela principal Buffalo Bill, em duas sessões diárias e três sessões aos domingos; o ritual da preparação de Shelleen para enfrentar o bandido do nariz de prata; Kid Shelleen acertando a seta do vento acima do teto do celeiro. E Shelleen revive o intimidador Liberty Valance, sua inesquecível criação em “O Homem que Matou o Facínora” (The Man Who Shot Liberty valance), ao forçar o mensageiro do trem a abrir o cofre atirando em seu quepe. E impossível não citar o cavalo com as patas cruzadas, tão bêbado quanto seu dono Kid Shelleen. O roteiro aborta a possibilidade de um romance entre Kid Shelleen e Cat Ballou pois esta se interessa pelo insípido cowboy Clay Boone.

A desolação de Cat Ballou diante de seus antigos ídolos.

Lee Marvin, Nat King Cole
e Jane Fonda.
Western desigual mas obrigatório - Bruce Cabot, Jay C. Flippen e Burt Mustin são rostos conhecidos dos fãs de faroestes e aparecem em “Cat Ballou”, compensando as presenças tediosas de Michael Callan e Dwayne Hickman. Jane Fonda ainda não havia se revelado a ótima e premiada atriz que tanto sucesso faria nos anos seguintes e como Cat Ballou, além de sua natural graciosidade, permite que a câmara passeie por seus atributos físicos. Nunca mais um western mostrou uma derrière tão perfeita como a de Jane Cat Ballou Fonda. Jack Marta foi o diretor de fotografia e Frank De Vol foi o responsável pela música. Yakima Cannut firigiu a 2.ª unidade, certamente cuidando das acrobacias sobre o cavalo de Kid Shelleen. A interminável canção-narrativa “Balada de Cat Ballou” foi composta por Mack David e Jerry Livingston. Este western de Elliot Silverstein rendeu 20 milhões de dólares no ano de seu lançamento, sendo um dos campeões de bilheteria naquele ano e possibilitando a seu diretor projetos mais ambiciosos como “Um Homem Chamado Cavalo” (A Man Called Horse), rodado em 1970. Mesmo sendo desigual em seus 97 minutos de duração, “Cat Ballou” é um western agradável de ser assistido. Torna-se porém obrigatório, um pouco pela beleza de Jane Fonda, outro tanto pela alegria e voz maravilhosa de Nat King Cole e muito, mas muito mesmo, pelo talento de Lee Marvin.

Tom Nardini ajuda Lee Marvin a se preparar para o grande duelo.


Jane Fonda como Cat Ballou.

Cat Ballou vista de outro ângulo.

PÔSTERES DO WESTERN "CAT BALLOU" DE DIVERSOS PAÍSES





18 de agosto de 2014

UM CLARIM AO LONGE (A DISTANT TRUMPET) - A DESPEDIDA DE RAOUL WALSH


Acima Raoul Walsh e Errol Flynn;
abaixo Troy Donahue e Errol Flynn.
Raoul Walsh estava com 77 anos quando dirigiu seu último filme, o western “Um Clarim ao Longe” (A Distant Trumpet) em 1964. Em sua longa carreira como diretor iniciada em 1913 Walsh (que também era ator) dirigiu mais de uma centena de longas-metragens, alguns deles clássicos filmes noir, de guerra e westerns, a maior parte dessas películas na década de 40. Nos anos 50 Walsh dirigiu 20 filmes não mantendo, no entanto, a mesma qualidade do decênio anterior. Quando tudo indicava que Raoul Walsh já estivesse aposentado eis que a Warner Bros. lhe entrega a direção de uma elaborada produção que foi “Um Clarim ao Longe”. Com esse filme sobre a Cavalaria o estúdio esperava que Walsh reeditasse o êxito de “O Intrépido General Custer” (They Died With Their Boots On), sucesso de crítica e público em 1941, dirigido por Walsh. O processo Panavision e o Techicolor poderiam compensar o peso dos anos que o diretor carregava para realizar um filme de ação, ele que desde 1928 enxergava com uma só vista, tendo perdido a direita num acidente de automóvel. Mas o filme sobre Custer tinha Errol Flynn como protagonista, enquanto para estrelar “Um Clarim ao Longe” a Warner Bros. escalou o galã dos dramas românticos Troy Donahue. Entre Flynn e Donahue havia uma diferença maior que o Território do Arizona onde se desenrola a história.


O Tenente Hazard em West Point e
no Fort Delivery.
Cavalaria X Apaches Renegados - “A Distant Trumpet” foi um dos muitos livros escritos por Paul Horgan, autor que por duas vezes recebeu o Prêmio Pulitzer por histórias ambientadas no Sudoeste norte-americano. Curiosamente somente “A Distant Trumpet”, da obra de Horgan, foi levada ao cinema, sendo roteirizada pelo experiente John Twist, roteirista com dezenas de títulos a seu crédito, entre eles o western “Golpe de Misericórdia” (Colorado Territory) dirigido por Raoul Walsh em 1949. Como indica o título, “A Distant Trumpet” (Um Clarim ao Longe) passa-se no Fort Delivery, posto mais avançado do Sudoeste do Exército Norte-Americano em 1883, fase final da guerra mantida contra os índios escorraçados das terras onde viviam há séculos. Recém-formado em West Point, o 2.º Tenente Matthew Hazard (Troy Donahue) é destacado para servir no Fort Delivery, que é comandado pelo Tenente Teddy Mainwarring (William Reynolds) oficial casado com Kitty Mainwarring (Suzanne Pleshette). O Tenente Mainwarring falece em missão, morto por Apaches Chiricahuas e Hazard, que havia se envolvido amorosamente com Kitty, passa a exercer a liderança do Fort Delivery. O General Quaint (James Gregory), ex-professor de Hazard em West Point, chega ao Fort para convencer o Chefe War Eagle (Pete Grey Eyes) a se render juntamente com seus guerreiros para viver em paz numa reserva no Território do Arizona. Após uma batalha entre a Cavalaria e os Chiricahuas, o Chefe War Eagle se refugia em Serra Madre e Hazard é enviado para convencer o chefe Apache a aceitar a proposta de paz, sendo bem sucedido na missão. No entanto contraordens de Washington encaminham os índios para uma reserva no Estado da Flórida, descumprindo a promessa feita por Quaint e Hazard. O Governo outorga a Hazard a Medalha de Honra do Congresso mas o Tenente devolve a honraria por discordar do tratamento dado aos Apaches. O general Quaint expõe então a situação ao Presidente dos Estados Unidos que ordena o retorno dos índios para o Arizona. Hazard recebe sua medalha de volta, casa-se com a viúva Mainwarring e passa a comandar o Fort Delivery.

Troy Donahue; James Gregory e Donahue.

Suzanne Pleshette e o simbólico gerânio
(como o cacto em "O Homem que Matou o
Facínora"); Suzanne e Diane McBain.
Romances em Fort Delivery - Histórias de Cavalaria sempre renderam bons westerns e “Um Clarim ao Longe” não foge à regra pois o filme de Raoul Walsh mostra os rigores da vida dentro de um forte, o treinamento da tropa, passando por espetaculares sequências de batalhas e chegando à política sórdida desenvolvida em Washington em relação aos índios. E há ainda as menos relevantes intrigas amorosas para contentar os espectadores mais românticos. O negligente comandante do Fort Delivery (Tenente Mainwarring) faz de conta que não percebe a insatisfação de sua volúvel esposa no primeiro triângulo amoroso que se finda com a morte de Mainwarring. Chega então ao forte, vinda do Leste, Laura (Diane McBain), a noiva do Tenente Hazard que impede a insinuação da viúva Mainwarring sobre seu noivo, segundo triângulo envolvendo Hazard e Mary. No entanto o tratamento dado a essas subtramas não é satisfatório, seja pelos diálogos inócuos ou pela própria construção da trama. Numa sequência típica dos menos imaginativos westerns B, Hazard salva Mary que está sozinha dentro de uma carroça em disparada. O dia ensolarado dá lugar um temporal que molha as roupas da mulher e magicamente surge uma caverna onde ambos se abrigam. Mary fica seminua pois suas roupas estão secando enquanto a farda de Hazard permanece, estranhamente, seca. Cai a noite para alegria da moça que conquista o jovem oficial nessa sucessão incrível de clichês. Tempos depois não é difícil para Mary vencer a disputa contra a preconceituosa Laura que, coincidentemente, é sobrinha do General Quaint. Só mesmo Laura não percebe que o Tenente Hazard é um exemplo de integridade, ainda que liberal o bastante para amar uma mulher casada, tipo de homem que jamais se casaria com alguém com pensamento tão radical como o de Laura.

Troy Donahue entre dois amores (Pleshette e McBain) no Fort Delivery.

Cenas de uma inquisição: James
Gregory inquire Bartlett Robinson,
Judson Pratt e Troy Donahue;
depoimento de Claude Akins.
A vida num forte - “Um Clarim ao Longe” é muito mais interessante quanto trata da vida na caserna, mesmo que falte a deliciosa poesia com que John Ford realizou sua memorável Trilogia da Cavalaria. O Tenente Hazard chega a Fort Delivery e transforma a tropa indolente em cavaleiros hábeis dispostos a enfrentar as árduas missões contra os apaches. A chegada ao forte do comerciante-proxeneta Seely Jones (Claude Akins) trazendo diversão (e doenças) em forma de bebida e mulheres é momento incomum em filmes de Cavalaria. Também insólito é o castigo imposto ao acovardado soldado desertor, marcado a ferro por ordem de Hazard. Inaudita é também a farsa em forma de julgamento montada pelo General Quaint para enganar os Apaches e ludibriar os esperto Seely Jones, personagem que mesmo pouco explorado é um dos mais completos escroques mostrados em faroestes. E bastante feliz é o roteiro de John Twist quando toca no antagonismo de posições em relação à causa indígena e quanto ao que sofreram os nativos por acreditar na palavra dos brancos. Conquistas para os índios só podiam ser conseguidas através do idealismo de alguns poucos homens, no filme os oficiais Quaint e Hazard, e mesmo assim através da chantagem da devolução das comendas diante de convidados e da imprensa. Quaint lembra ao pusilânime Secretário de Guerra que “a imprensa livre e o eleitor americano” são as únicas armas possíveis para que os índios mereçam tratamento digno. E na linha de revisionismo da questão dos nativos iniciada no cinema nos anos 50, o Chefe Apache War Eagle lembra que os brancos “destroem nossos homens com balas e uísque, tomam nossas terras, nossa liberdade, enviam homens para matar nossas mulheres e nossas crianças e nos tratam como feras”.

Claude Akins leva diversão ao Fort Delivery.

Acima tropas e índios em movimento
no Red Rock State Park; algumas das
dezenas de quedas de cavalos.
Estupenda cinematografia - Nada, porém, em “Um Clarim ao Longe”, é mais empolgante que as sequências de batalha filmadas no Red Rock State Park, no Novo México . Centenas de homens e suas montarias, soldados e apaches, ocupando toda a extensão da tela em Panavision, num belíssimo balé num tempo em que não se sonhava com a duplicação de imagens no processo CGI (Computer Generate Imagery). Incontáveis quedas de cavalo  quase sempre por parte dos apaches, como se cavalarianos não fossem nunca atingidos ou jamais perdessem o equilíbrio – dão colorido especial a essas sequências nunca menos que espetaculares. Esse brilhante canto do cisne do mestre do filme de ação que foi Raoul Walsh é enriquecido pela cinematografia estupenda de William H. Clothier, sabe-se lá por qual razão não indicada para o Oscar de melhor Fotografia em Cores, que nesse ano ficou com “Dr. Jivago”. A música sempre em crescendo composta por Max Steiner acarreta ainda mais emoção às imagens e nem mesmo a compulsão de Steiner para o excessivo uso de temas musicais próximos da mazurka comprometem as verdadeira pinturas cinematográficas criadas por Walsh e Clothier. Desde “Legião Invencível” (She Wore a Yellow Ribbon), realizado por John Ford em 1949, o western não via um tão grande conjunto de esplendorosas imagens.

Movimentação coreografada da Cavalaria norte-americana.

James Gregory e uma de suas muitas
frases em Latim; Claude Akins.
Latin no Velho Oeste – A Warner Bros. se arriscou demais ao acreditar que o galã Troy Donahue pudesse convencer como soldado bravo em luta contra Apaches e contra a política de seu exército. Troy faz o que pode, ou seja, quase nada, para dar vida ao personagem amorfo que interpreta, mas sua inexpressividade só é menor que a falta de habilidade para subir e descer do cavalo e para socar um soldado subalterno desrespeitoso. Ídolo das teenagers, Troy não convence nem mesmo como homem capaz de conquistar uma surpreendentemente provocante e frívola Suzanne Pleshette, por sinal ainda sua esposa na vida real. O casamento que durou um ano acabou com o término das filmagens de “Um Clarim ao Longe”. Não é de Suzanne a melhor interpretação deste western porque James Gregory reina absoluto com soberbo desempenho. Certo que a cada diálogo torna-se mais e mais caricato ouvir o General Quaint interpretado por Gregory gastar o Latim com frases como “Veni, vidi, vici” e outras menos conhecidas. Elenco com poucos nomes conhecidos, reunido com a visível intenção de economizar no cast, destacando-se, como não poderia deixar de ser, Claude Rains, ainda que um tanto exagerado e tornando seu personagem caricatural. Bons Judson Pratt e Bartlett Robinson como os oficiais do Fort Delivery. Uma boa surpresa é ver Lane Bradford ter um minuto inteiro só para ele na tela, ao contrário das tantas vezes em que morre rapidamente sem merecer crédito. E difícil é aceitar que o batedor apache não tenha sido creditado após importante, apesar de fraca, participação no filme. Diane McBain é o correspondente feminino de Troy Donahue e só. Atenção para a presença de um bastante jovem Neil Summers como soldado.

Troy Donahue e Suzanne Pleshette que foram casados na vida real por um
ano, casamento que acabou com o fim das filmagens de "Um Clarim ao Longe".

Uma caricatura de Raoul Walsh.
Faltou McQueen ou Coburn – Assim como John Ford, Raoul Walsh foi um grande ‘matador de índios’ nos faroestes norte-americanos. E assim como Ford fez em 1964 com “Crepúsculo de uma Raça” (Cheyenne Autumn), Walsh também se redimiu com um filme que reconta a história (verdadeira) das guerras contra os índios que levou ao extermínio das grandes nações nativas daquele país. Em “Um Clarim ao Longe” os Apaches falam em sua própria língua, traduzida com legendas, como viria a fazer Kevin Costner em “Dança com Lobos” (Dances with Wolves). Este canto do cisne de Raoul Walsh deixou de ser um clássico pela falta de um ator que expressasse a força necessária do personagem ‘Tenente Hazard’. Com Steve McQueen ou James Coburn nesse papel, “Um Clarim ao Longe” seria certamente muito melhor. Mesmo assim este é um western com tom épico que dá aos fãs de faroestes um enorme prazer em ser visto e revisto.

Parte do discurso do Chefe Apache War Eagle.