29 de agosto de 2014

SUA ÚLTIMA FAÇANHA (LONELY ARE THE BRAVE) – IMERECIDO WESTERN-CULT


Acima Edward Abbey e seu livro;
abaixo o roteirista Dalton Trumbo.
Quando produziu “Spartacus”, insatisfeito com o trabalho de Anthony Mann, o ator-produtor Kirk Douglas dispensou o conceituado diretor no início das filmagens, substituindo-o por Stanley Kubrick. A Bryna, produtora de Kirk Douglas, era possuidora dos direitos cinematográficos do livro “The Brave Cowboy”, de autoria de Edward Abbey história que seria um tema perfeito para Anthony Mann levar à tela. Mas a esta altura Mann jamais aceitaria trabalhar novamente com Douglas. “Spartacus” teve roteiro escrito por Dalton Trumbo, a mais conhecida vítima entre os ‘Hollywood Ten’, escritores presos e impedidos mais tarde de trabalhar por terem sido colocados na lista negra da capital do cinema no final dos anos 40. Resgatado do anonimato por Kirk Douglas, o mesmo Trumbo escreveu o roteiro para um filme sobre o texto de Edward Abbey, dando ao roteiro o título “The Last Hero”. Porém a Universal Pictures escolheu outro nome para a produção, intitulando-o “Lonely Are the Brave”. No livro de Abbey o amigo do cowboy solitário vai para a cadeia por ser contra o alistamento militar obrigatório. Trumbo preferiu ‘atualizar’ o motivo da prisão que passa a ser a ajuda aos mexicanos que ilegalmente atravessam a fronteira com os Estados Unidos, assunto que 20 anos mais tarde se tornaria um grande problema para os norte-americanos e que ainda hoje persiste. Autor de roteiros admirados, dois deles premiados com o Oscar - “A princesa e o Plebeu” (1953) e “Arenas Sangrentas” (1957) – a adaptação de Trumbo “Lonely Are the Brave”, que no Brasil se chamou “Sua Última Façanha”, está longe do que se possa chamar de um roteiro perfeito.




Kirk Douglas escapando da prisão e
jipe e helicóptero caçando o fugitivo.
Cadeia, fuga e acidente - John W. Burns, apelidado ‘Jack’ (Kirk Douglas) é um cowboy inconformado com a realidade com que se defronta num tempo em que jatos cortam a tranquilidade dos céus e a tecnologia parece imprescindível à vida do homem. Burns vaga pelas campinas sem documento algum, cortando cercas de arame farpado que impeçam sua cavalgada e vai a uma pequena cidade próxima da fronteira com o México chamada Bernal para visitar seu amigo Paul Bondi (Michael Kane). Jerry, a esposa de Paul diz a Burns que o marido está preso por dar assistência aos imigrantes mexicanos que vivem na ilegalidade. Burns envolve-se numa briga num bar, é levado para a delegacia e lá agride um policial pois sua real intenção é ser preso e poder rever o amigo Paul. Sentenciado a um ano de prisão pela autoridade local, Burns decide fugir da cadeia enquanto Paul prefere cumprir sua pena de dois anos de prisão. Burns escapa e com seu cavalo inicia a travessia das montanhas em direção à fronteira, dificultando assim as buscas comandadas pelo xerife Morey Johnson (Walter Matthau). A caçada ao fugitivo é feita por diversos policiais com jipes e um helicóptero da Força Aérea é também utilizado na busca a John W. Burns. O cowboy solitário consegue escapar mas ao atravessar a Highway 60 numa noite chuvosa é atropelado, juntamente com seu cavalo, por um caminhão, terminando assim sua audaciosa fuga.

Homem e cavalo contra a modernidade.

Jack (Kirk Douglas) na estrada.
O desencanto do vaqueiro - “Sua Última Façanha” é uma elegia ao cowboy que não mais existe, o aventureiro para quem o mundo deveria ser uma interminável planície a ser percorrida. O fim dos espaços abertos são indicados pelas cercas de arame farpado que delimitam no solo o destino desse homem, enquanto o horizonte, visto a partir de uma montanha, é cortado por jatos que deixam longos e efêmeros rastros. Para chegar a Bernal o errante cowboy atravessa assustado uma movimentada estrada vendo caminhões carregados de automóveis novos que logo estarão rodando velozmente pela rodovia. Burns passa depois por um cemitério de automóveis onde dezenas de carcaças empilhadas confirmam que aquele mundo não é mesmo o dele. Mas John W. Burns não aceita essa realidade e assim como havia cortado a cerca de arame farpado que impedia sua andança, insurge-se contra os limites que a sociedade moderna lhe impõe. Burns não é um homem qualquer, poderia exibir a medalha Purple Heart recebida por bravura em combate na guerra da Coréia, após ser ferido em batalha. Ao invés disso, no entanto, nada fala de sua vida, apenas que sua casa é o lugar onde descansa com seu cavalo. Igual a tantos outros sonhadores, Burns acredita no seu direito à liberdade contra o sistema que cria leis e limites que ele se recusa a obedecer. O desencanto com o Velho Oeste, tema deste filme dirigido por David Miller, é o mesmo de “Pistoleiros do Entardecer” (Ride the High Country), western por coincidência produzido também no mesmo ano de 1962. A diferença é que Miller não conseguiu dar a seu filme a poesia do faroeste crepuscular de Sam Peckinpah.

Gena Rowlands com Douglas.
A sutileza dos vasos sanitários - Magnificamente interpretado por Kirk Douglas, “Sua Última Façanha” é um filme comprometido pelo roteiro de Dalton Trumbo. Inevitavelmente o espectador quer saber o que leva Burns a forçar sua prisão para conversar com o amigo Paul. Jerry, a esposa deste avisa Burns que as visitas ocorrem somente às quartas-feiras. Por que então a pressa se Burns poderia esperar tranquilamente ali na casa do amigo desfrutando do conforto daquele teto e dos agrados que Jerry não lhe nega. O triângulo (ou ménage) jamais é explicado e após ser preso Burns nada de mais importante tem para conversar com Paul. A cadeia está lotada e a briga no bar não foi motivo suficiente para Burns permanecer preso. A solução então é esmurrar um policial dentro da delegacia, o que leva o cowboy a ser condenado a um ano de detenção. O que Burns esperava? Receber uma semana de prisão pela sua incontida violência? Cowboys usam a natureza como banheiro e o bravo cowboy acabará atropelado ao final por uma carreta que transporta 156 vasos sanitários, numa pouco sutil ironia do roteiro de Trumbo. E desde a primeira das várias aparições desse caminhão o filme anuncia o trágico encontro do homem com seu cavalo com o gigantesco veículo na movimentada auto-estrada.

O insistente caminhão carregado de vasos sanitários;
Kirk Douglas na casa do amigo

Abaixo Douglas em luta com Bill Raisch.
Roteiro descuidado - John W. Burns insulta seu cavalo a todo momento, chamando-o de estúpido. Ainda que seja um modo carinhoso de falar com sua única companhia, parece que a égua Whiskey é mais inteligente que seu dono. O animal jamais atravessaria uma estrada iluminada apenas pelos faróis dos veículos, à noite e sob chuva intensa. Mas o suicida Burns leva o animal à morte e quem sabe ele próprio, uma vez que Trumbo preferiu um final nada esclarecedor, final aberto, como era comum nos herméticos filmes europeus da década de 60. E o apreço de Burns pelo amigo Paul é implausível ainda mais porque Paul (anarquista no livro de Edward Abbey) parece jamais ter chegado perto de um cavalo, ele que um dia foi pardner de Burns. Roteiro indigno da assinatura de Dalton Trumbo, a impressão que fica é que o roteirista trabalhou descuidadamente no texto de Edward Abbey. Certamente Trumbo dedicou-se mais na adaptação para o cinema do volumoso “Êxodus” de Leon Uris e também no complexo roteiro de “O Último Pôr-do-Sol” (The Last Sunset), ambos escritos no biênio 1960-1961. Só isso justifica as falhas do script de “Sua Última Façanha”, filme bem dirigido por David Miller, diretor mais afeito a dramas que a faroestes. O único western que Miller havia realizado até então fora “Gentil Tirano” (Billy the Kid), em 1941. Há momentos brilhantes em “Sua Última Façanha”, como a violenta luta de Burns contra o provocador maneta e a incrível subida da escarpada montanha praticamente arrastando o cavalo. O uso do dublê foi reduzido às tomadas mais perigosas e Douglas é quem participa da maior parte desses takes.

Luta de um só braço.

O xerife Walter Matthau; abaixo os
pilotos, o da esquerda é Bill Bixby.
O policial que veio do céu - Dalton Trumbo era amigo de Kirk Douglas e David Miller era um cumpridor de ordens do produtor, de onde se deduz que cabe a Trumbo os erros de “Sua Última Façanha”. Mostrar a polícia como pouco mais que um grupo de abestalhados comandados por um xerife que se diverte acompanhando a rotina de cães urinando em postes num filme sério só pode parecer rancor do roteirista. Exceto o sádico Gutierrez (George Kennedy), os demais policiais são apalermados e vagabundos e Harry (William Schallert) com sua mania de finalizar as frases com “Right!” é, pretensamente, o mais engraçado deles. E sobra ainda para a Força Aérea que empresta homens inexperientes para caçar o fugitivo Burns e o escárnio do xerife interpretado por Walter Matthau quando fala com o General do Ar. Por falar em ar, de onde surgiu Gutierrez quando, descendo do topo de uma colina, quase captura Burns? Involuntariamente esse é um momento engraçado num roteiro que procura fazer graça sem consegui-lo.

Kirk Douglas contra George Kennedy.

Walter Matthau
Western-cult - Kirk Douglas jamais cansou de afirmar que “Sua Última Façanha” é seu filme e desempenho favoritos, opinião no mínimo discutível para quem fez tantos papéis memoráveis em sua admirável carreira como ator. Tendo fracassado nas bilheterias pois fãs de westerns fugiram dessa história que mais parece um episódio de “O Túnel do Tempo”, o filme de David Miller foi guindado à condição de western-cult, não faltando quem, como Alex Cox, o considere uma obra-prima. Kirk Douglas tem, de fato, excelente e contida atuação como o cowboy solitário, mas “Sua Última Façanha” não faz sombra a “Homem Sem Rumo” (Man Without a Star), “Duelo de Titãs” (Last Train from Gun Hill) e “Ambição Acima da Lei” (Posse), isto para falar apenas de faroestes estrelado por Kirk. Uma pena a participação da ótima Gena Rowlands ter sido tão pequena. Walter Matthau tenta criar um xerife cínico e desanimado com sua função, ficando no entanto longe de seus melhores trabalhos no cinema. Matthau parece que quanto mais feio ficava melhor atuava. George Kennedy em seu primeiro filme esboçou o tipo que interpretaria para sempre em sua carreira. Michael Kane é aquilo que se pode chamar de escolha equivocada para o personagem de amigo de John W. Burns. Destaque para o ator Bill Raisch, de um só braço (perdido na guerra da Coréia), que trava a feroz luta contra Burns dentro do bar em Bernal. Bob Herron foi o dublê do difícil trabalho de substituir Kirk Douglas nas incontáveis cenas de maior perigo.


Kirk Douglas
O cenário de Albuquerque - A trilha musical de Jerry Goldsmisth é um dos pontos altos de “Sua Última Façanha” e Philip H. Lathrop respondeu pela cinematografia de um filme que se rodado em cores seria evidentemente mais bonito pelas belas paisagens de Albuquerque, no Novo México, cenário de grande parte das sequências. O preto e branco acentua a dramaticidade do filme e cria a atmosfera necessária para narrar o drama de John W. Burns. O bravo cowboy solitário interpretado por Kirk Douglas merecia um roteiro mais coerente para expressar a desilusão de um tempo que passou mas que relutantemente não é aceito. “Sua Última Façanha” é a prova que não se faz um grande filme sem um ótimo roteiro.

O cowboy solitário conversa com sua companheira.

Kirk Douglas e Gena Rowlands.


Depoimento de Kirk Douglas no DVD "Sua Última Façanha".

2 comentários:

  1. Gostaria de saber o que aconteceu com a égua whisky - a melhor atriz do filme?

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  2. Fiquei com pena da valente Whiskey. Ela merecia um fim muito melhor.

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