26 de outubro de 2024

UM HOMEM SOLITÁRIO (A Man Alone)

 


  Certos westerns como “Um Homem Solitário” (A Man Alone), são raramente lembrados, embora se encaixem na categoria de ‘clássicos do gênero’ e sendo um exemplo desse tipo de subestimação. Primeiro filme dirigido por Ray Milland e curiosamente rodado em 1955, mesmo ano de “O Mensageiro do Diabo” (The Night of the Hunter), único filme dirigido pelo também inglês Charles Laughton, com a diferença que este último é reverenciado como obra-prima. Atuar em faroestes não era uma novidade para Ray Milland que já havia participado de “Califórnia” (California) em 1947, “O Vale da Ambição” (Cooper Canyon) de 1950, e “O Último Baluarte” (Bugles in the Afternoon) de 1952. Tendo feito uma brilhante carreira como ator em Hollywood, aos 50 anos de idade Milland decidiu se aventurar na direção e justamente em um faroeste, produzido pela Republic Pictures. Esse estúdio, mais conhecido pela economia com que produzia séries de B-westerns e seriados para as matinês, estava já há alguns anos produzindo filmes de melhor qualidade. Pelo estúdio de Herbert J. Yates passaram nesse período John Ford, Orson Welles, Nicholas Ray, Lewis Milestone, John Wayne, Joan Crawford, Robert Mitchum, Maureen O’Hara e outros grandes nomes do cinema e foi Yates quem deu a Ray Milland a oportunidade de se tornar diretor. Ou melhor, diretor-ator como neste “Um Homem Solitário” (A Man Alone) seguido por outros filmes que igualmente ele viria a dirigir e estrelar. Como ator Milland atuara com destaque em alguns clássicos do filme-noir e fez de “Um Homem Solitário” um autêntico western-noir.


 

  Vindo do Texas, o pistoleiro Wes Steele (Ray Milland) cavalga pelo deserto do Arizona quando seu cavalo quebra uma perna e é sacrificado por Steele que, após extenuante caminhada se depara com uma diligência que fora assaltada e todos seus ocupantes, inclusive uma menina, foram mortos. Steele solta os cavalos porque sabe que eles conhecem o caminho para a cidade mais próxima e seguindo os animais chega à cidade de Mesa, onde é tomado como o responsável pelo assalto à diligência e por isso alvejado pelo delegado que erra o tiro e acaba morto por Steele que foge pela cidade escura e se esconde no Banco de Mesa. Há uma reunião no banco e de onde está escondido Steele ouve um desentendimento entre os dois donos do banco sobre o assalto à diligência e um dos banqueiros acaba morto com tiros pelas costas. Testemunha também desse assassinato, Steele sai do banco e se esconde na adega de uma residência que é a casa de Gil Corrigan (Ward Bond), o xerife de Mesa, cuja filha Nadine (Mary Murphy) descobre e protege Steele. O xerife Corrigan está acamado por ter contraido febre amarela e cumpre quarentena em seu quarto. Recuperado, Corrigan percebe a presença de Steele na casa e o algema, sendo pressionado pelo moradores de Mesa a enforcar o pretenso assassino. Quem lidera a turba local é Clanton (Lee Van Cleef), capanga de Stanley que é o responsável pelo assalto à diligência e pelo assassinato testemunhado por Steele no Banco de Mesa. Para Stanley veio a calhar a presença de Steele na cidade pois assim nenhuma suspeita dos crimes praticados recaíria sobre ele e sobre os pistoleiros sob suas ordens. Nadine descobre que seu pai recebia dinheiro para proteger Stanley e discute com seu pai. O xerife fica sabendo da trama para incriminar Steele e o ajuda a fugir, o que leva a população a tentar enforcar o xerife que é salvo por Steele que termina por matar os pistoleiros de Stanley, que é preso pelo xerife Corrigan. Ao final Steele decide permanecer em Mesa, ficando com Nadine que por ele se apaixonara.

 

Ray Milland (Wes Steele) no deserto do Arizona;
Ward Bond e Mary Murphy

  Embora inusitado pelos quase dez minutos sem diálogos em seu início, “Um Homem Solitário” conta uma história comum a muitos westerns que é a de alguém injustamente acusado de assassinato e que luta para provar sua inocência. Mas Milland desenvolve com precisão o roteiro criativo e intrincado utilizando técnicas próprias de dramas noir, tanto na iluminação quanto na complexidade dos personagens principais. Tendo filmado em boa parte sequências noturnas, o que poderia ser ruim para um western, Milland dá ao filme a atmosfera de mistério com a corrupção e violência presentes, como se a pequena cidade de Mesa fosse um microcosmo social. Mesmo em seu final aparentemente feliz, Wes Steele diz que permanecerá em Mesa na companhia de Nadine dizendo que “nenhum lugar é melhor ou pior que aquela cidade”, fatalismo típico das personagens do filme noir. O pessimismo é constante como quando o xerife Gil Corrigan diz a Wes Steele que não quer que sua filha se case com alguém sem maior expectativa de vida, frase que poderia ser escrita por Raymond Chandler ou Dashiel Hammett. Após dois dias em Mesa, Wes Steele diz que Mesa “é uma cidade podre, com muitas pessoas podres nela vivendo”. Ray Milland deve ter exigido bastante do cinegrafista Lionel Lindon para obter as imagens sombrias que pretendia, para as quais Lindon demonstrou competência, ele que receberia um Oscar pela fotografia do luminoso “A Volta ao Mundo em 80 Dias” e uma indicação por seu trabalho em “Quero Viver!”, produções respectivamente de 1956 e 1958.

 

Ward Bond e Mary Murphy;
abaixo Raymond Burr e Lee Van Cleef

  Este filme poderia ser chamado de “Um Homem Azarado” porque Wes Steele é daquelas pessoas que atraem a má sorte e por pouco ele não acaba pendurado em uma árvore, vítima das maquinações de Stanley proeminente cidadão de Mesa. Mesmo sendo banqueiro, Stanley usa seus capangas para praticar assaltos que lhe rendam mais dinheiro, aliciando as autoridades locais como o xerife Corrigan e seu delegado (Alan Hale Jr.). E não poderia Wes Steele ter escolhido lugar pior para se esconder que a própria casa de um xerife desonesto, mas então ocorre a primeira reviravolta na história quando a filha de Corrigan se sente atraída pelo forasteiro invasor de sua casa. Mais tarde o próprio xerife decide que deveria se voltar contra o poderoso Stanley, no que ao final é acompanhado por um dos pistoleiros a serviço de Stanley. Além do xerife e de Wes Steele, há também a abordagem psicológica de Nadine Corrigan, jovem cujo pai faz dela uma sonhadora que se guarda para um improvável casamento e que se revolta contra o autoritarismo patriarcal. Mary Murphy com os cabelos tingidos de louro e que em nada lembra o caso de Marlon Brando em “O Selvagem” fica feliz ao final com a permanência de Wes Steele ao seu lado em Mesa. O que não significa exatamente um final feliz uma vez que o xerife Corrigan sabe que terá contas a ajustar com a Justiça por encobrir as práticas criminosas de Stanley. Western sóbrio, tem um único momento de descontração ao ser apresentado o retrato falado de Wes Steele, inteiramente diferente da fisionomia de Ray Milland.

 

Ward Bond e Ray Milland; no centro Mary Murphy e Milland;
Lee Van Cleef e o retrato falado de Wes Steele

  “Um Homem Solitário” possui alguns longos diálogos (exceto por seu início) e há poucas sequências de ação, estas ocorrendo nos momentos adequados num filme de crescente tensão. Os pontos altos deste western são as sequências em que Wes Steele narra sua atribulada trajetória de vida que o fez aderir às armas até chegar a Mesa e, principalmente a tomada de consciência do xerife Corrigan, com Ward Bond em um de seus grandes momentos no cinema, justificando para a filha a razão que o fez trilhar o mau caminho mesmo carregando uma estrela no peito. Ray Milland, por mais que se esforce, parece pouco confortável como cowboy e é impossível não notar que sua camisa permanece impecável mesmo após sua longa cavalgada pelo deserto, depois das tantas perseguições que sofre e da luta brutal contra Raymond Burr. Se não convence como homem do Oeste, Milland transmite a sinceridade e a desesperança com que Wes Steele tenta mostrar sua verdadeira índole. Mary Murphy é uma atriz de limitados recursos dramáticos ao passo que Raymond Burr é sempre impressionante. O quase iniciante Lee Van Cleef e mesmo Burr são menos aproveitados do que poderiam ser. Certamente o escasso reconhecimento obtido por este magnífico western se deva a ter Ray Milland como astro principal vivendo um cowboy, o que é uma injustiça pois “Um Homem Solitário” é um dos melhores faroestes de uma década repleta de grandes filmes do gênero.


Ray Milland como Wes Steele, o homem solitário

20 de outubro de 2024

O JUIZ ENFORCADOR (LAW OF THE LAWLESS)

  


    A.C. Lyles foi um produtor que teve uma estrela na Calçada da Fama de Hollywood e nada mais merecido para quem produziu uma série de 13 westerns, todos com pequeno orçamento, filmados em sempre menos que 15 dias e com elencos recheados de veteranos esquecidos pelos estúdios. Lyles começou no cinema na Paramount, ainda nos anos 20 e ao invés de se aposentar depois de 40 anos de trabalho nos escritórios do estúdio decidiu se tornar produtor. O primeiro filme da série foi “O Juiz Enforcador” (Law of the Lawless), com elenco formado por uma dúzia de artistas que viram cessar seus dias de fama, elenco encabeçado por Dale Robertson e Yvonne De Carlo. Os westerns B da Poverty Row produzidos às dezenas nos anos 30, 40 e início dos anos 50, com John Wayne, Roy Rogers, Rocky Lane, Bill Elliott, Charles Starrett, Tim Holt e outros tinham cronogramas de filmagens com no máximo seis dias, utilizavam muitas sequências de arquivo, seus enredos pouco se diferenciavam uns dos outros e duração por volta de 60 minutos. Esses pequenos westerns exibidos nas matinês foram substituídos por séries melhor produzidas e estreladas por Audie Murphy, Randolph Scott, Rory Calhoun, George Montgomery, Guy Madison e o próprio Dale Robertson, quase todos com hora e meia de duração. Já os westerns da série de Lyles tinham todos 80 minutos ou pouco mais, eram filmados em cores e produção bem cuidada como “O Juiz Enforcador”. Este western B é uma grata surpresa para os fãs de faroestes, comparável mesmo aos melhores da série de Randolph Scott.

 


    Na cadeia de Kansas City o preso Pete Stone (John Agar) aguarda para ser julgado e seu poderoso pai ‘Big’ Tom Stone (Barton MacLane) se movimenta para que o filho saia livre do julgamento. Para isso contrata Rand MacDonald (Kent Taylor) o melhor advogado do Kansas e que jamais perdeu uma causa. Big Stone sabe que está para chegar à cidade o juiz Clem Rogers (Dale Robertson), conhecido como ‘The Hanging Judge’ (juiz enforcador) devido a mandar para a forca assassinos que ele tem que julgar. Big Stone contrata, além do advogado, o pistoleiro Joe Rile (Bruce Cabot) para matar Clem Rogers, isto além de outros pistoleiros que chegam à cidade porque têm contas a acertar com o juiz por discordar de suas sentenças. Clem Rogers decidiu estudar Direito e se tornar juiz depois que seu pai foi morto em um duelo, justamente com Joe Rile. Pete Stone será julgado por ter matado num suposto duelo um vaqueiro cuja esposa mantinha um caso com Pete e é certo que será condenado à morte pois Clem Rogers entende que a única maneira de acabar com a prática dos duelos é condenando quem deles participa e sobrevive. Antes do julgamento o juiz sofre um atentado por parte do grupo de pistoleiros, que são liquidados. Clem recebe apoio da garota de saloon Ellie Irish (Yvonne De Carlo) e conta ainda com a imparcial promotoria no tribunal que será feita pelo xerife Ed Tanner (William Bendix). Ao final do julgamento Pete Stone é condenado à forca, Joe Rile desiste de assassinar Clem Rogers que parte de Kansas City para cumprir sua missão de exterminar com os duelos e consequentemente novas condenações.

 

Dale Robertson (acima); Dale com John Agar

    A história de “O Juiz Enforcador” é de autoria de Steve Fisher, que também escreveu histórias para diversos westerns da série produzida por A.C. Lyles, série toda distribuída pela Paramount. William Claxton dirigiu conduzindo este western que prende o espectador do princípio ao fim, mesmo com poucos momentos de ação e tendo dois quintos do filme passados dentro de uma sala do tribunal. Muito da qualidade de “O Juiz Enforcador” se deve às interpretações dos veteranos atores que, em cada sequência, demonstram o quanto eram bons e mereciam continuar a ser melhor aproveitados. Porém o destaque deste filme fica mesmo com o roteiro que discute temas inusitados, especialmente a filosofia do juiz, ideal que ajudou a civilizar o Velho Oeste. Nos duelos quem sobrevivia era o vencedor, imune a qualquer acusação, o que o livrava de acertar contas com a justiça mas não de vir a ser perseguido por alguém que se julgava mais rápido, como em “O Matador” (The Gunfighter), 1950, de Henry King. Ou ainda da ira de familiares ou amigos do morto em duelo, todos em busca de vingança. O Juiz Clem Rogers discorre sobre o que acontece com a família de quem é morto em duelo, viúva e filhos privados do pai e que encontram dificuldade para sobreviver. Essa teoria correta de acabar com os duelos tão comuns só poderia mesmo ser concebida com a ajuda da Justiça, como mostra “O Juiz Enforcador”.

 

Lon Chaney Jr. e Yvonne De Carlo;
Barton MacLane e William Bendix

    Detém-se ainda o roteiro na discussão do preconceito contra as saloon girls, sinônimo de meretrizes, como foi chamada Ellie Irish pelo advogado de defesa, na tentativa de ter seu depoimento no julgamento desacreditado em contraponto ao testemunho de uma esposa leviana mas vista com respeito pela cidade. É ainda o juiz enforcador Clem Rogers quem demonstra que a viúva Ellie, cujo marido foi morto em duelo, não teve alternativa para sobreviver senão trabalhar num saloon para cantar, dançar entretendo os frequentadores. Esse arraigado preconceito, infelizmente, sobreviveu ao Velho Oeste, diferentemente dos duelos. E o filme de William Claxton aborda aspectos psicológicos como o do jovem assistente de xerife querendo demonstrar coragem e competência, e sempre obstado pelo veterano homem da lei; ou ainda o cansado pistoleiro de aluguel que odeia o poderoso que o paga para matar mas aceita o trabalho para poder se aposentar e ter um final de vida tranquilo. Sua consciência o leva a alterar todos os planos, inclusive o ambicionado caminho para a paz que quer encontrar.

 

Yvonne De Carlo; Bruce Cabot

    A longa sequência do julgamento excelentemente conduzida chega a ser emocionante como nos melhores filmes de tribunal, com reviravoltas pelas falas do promotor rebatidas pelo advogado de defesa, mais as testemunhas e, por fim, com a orientação do juiz para o corpo de jurados julgar. Toda essa sequência, sem ação, apenas com as falas dos personagens, leva a pensar como, em tão poucos dias de filmagem, o diretor Claxton extraiu as ótimas performances para as quais seriam necessário muitos ensaios. Os destaques do elenco são Barton MacLane, Bruce Cabot, Richard Arlen e Lon Chaney Jr., este como um brutamontes a serviço do ricaço Big Stone. John Agar fica abaixo dos citados. A excelente Yvonne De Carlo enche a tela com sua beleza e exuberância, enquanto a Dale Robertson falta maior expressividade, mesmo considerando que um juiz deve ser alguém contido no comportamento. Ainda no elenco em pequenos papeis Don ‘Red’ Barry, Jody McCrea (filho de Joel McCrea), Rod Lauren e um bastante jovem Roy Jenson. Dale Robertson substituiu Rory Calhoun, inicialmente escalado como Clem Rogers porque Calhoun adoeceu quando “Law of the Lawless” teve início. Robertson havia deixado a série de TV “Tales of Wells Fargo”, que estrelou por seis temporadas. E Yvonne De Carlo a seguir passaria a viver a adorável ‘Lily Monster’ na série de TV “Os Monstros”. “O Juiz Enforcador” é considerado o melhor dos 13 westerns que A.C. Lyles produziu entre 1964 e 1968. Imperdível também para rever a pleiade de veteranos.

 

Sequências do julgamento: acima Kent Taylor; Barton
MacLane e Laurel Goodwin; no centro Barton
MacLane e John Agar; John Agar e Dale
Robertson; abaixo o final do julgamento.

Dale Robertson como o juiz enforcador em ação;
Dale surpreendido no banho por Yvonne De Carlo


15 de outubro de 2024

QUANDO EXPLODE A VINGANÇA (Giù la Testa/A Fistful of Dynamite/Duck, you Sucker)

 


  Sergio Leone é uma quase unanimidade quando se trata de westerns e o ‘quase’ é em razão do último faroeste que dirigiu que foi “Quando Explode a Vingança” (Giu la Testa/A Fistful of Dynamite/Duck, you Sucker), 1972. Com a Trilogia dos Dólares, seguida por “Era uma Vez no Oeste” (C’Era una Volta il West), Leone atingiu o panteão dos grandes diretores do gênero, ao lado de Ford, Hawks, Mann, Peckinpah e Sturges. Sucesso de crítica e público, esses quatro westerns abriram as portas (e os cofres) dos maiores estúdios e produtores possibilitando a ele voos mais altos e, por que não, uma nova trilogia, muito mais ambiciosa que a bem sucedida ‘dos Dólares’. E esta segunda trilogia imaginada por Leone já havia sido iniciada justamente com “Era uma Vez no Oeste”, e seria seguida por “Era uma Vez a Revolução” e fechada ainda mais pretensiosamente com “Era uma Vez na América”, sendo que com este último filme Leone atingiu, 12 anos mais tarde, o ápice de sua carreira como diretor. O que era para ser chamado “Era uma Vez a Revolução” começou de forma acidentada desde o início do projeto, com o roteiro feito por Luciano Vincenzoni, Sergio Donati e o próprio Sergio Leone, gerando diversos desentendimentos, a começar pelo título que foi alterado para “Giù la Testa”,.

 


  O roteiro foi gestado durante muito tempo até ser considerado ideal e pronto para ser filmado, mas por outro diretor porque a essa altura Leone desistira de dirigir “Giu la Testa”, que no Brasil seria chamado de “Quando Explode a Vingança”. A United Artists, que iria produzir o filme, indicou Peter Bogdanovich para dirigi-lo, isto apesar de Bogdanovich ter, até então, dirigido somente um filme, que foi “Na Mira da Morte” (Target) e ser mais conhecido pelo documentário “Directed by John Ford” que fez entrevistando longamente o veterano diretor que era avesso a entrevistas. A parceria Leone-Bogdanovich tinha tudo para não dar certo, o que só a diretoria da United Artists não percebeu, e em menos de um mês o norte-americano abandonou o projeto. Nos planos de Leone estava Eli Wallach que chegou a um acordo verbal com Leone para atuar nesse novo filme, ficando com um dos dois principais papéis, porém a United Artists tinha Rod Steiger sobre contrato com o ator devendo um filme ao estúdio. Steiger vinha de premiada atuação em “No Calor da Noite” (In the Heat of the Night), pela qual recebeu um Oscar de Melhor Ator e a United Artists contratou James Coburn para completar a dupla de principais intérpretes do filme que seria dirigido por Giancarlo Santi. Quando Coburn e Steiger souberam que o diretor não seria o muito afamado criador de “Era uma Vez no Oeste”, se recusaram a atuar dirigidos por outro diretor que não fosse Leone e este não teve alternativa a não ser assumir a direção de “Giù la Testa”. E com certa alegria porque desde que vira James Coburn como o lacônico cowboy que duela atirando uma faca no oponente (Robert J. Wilke) em “Sete Homens e um Destino” (The Magnificent Seven), 1960, Leone nunca o esquecera. Tanto que Coburn era o nome preferido pelo diretor para interpretar o taciturno ‘Blondie’ em “Por um Punhado de Dólares” (Per un Pugno di Dollari). Como a pedida de Coburn havia sido alta demais, o pouco conhecido Clint Eastwood aceitou a oferta e depois do encontro com Leone se tornou ídolo mundial. Por outro lado Leone sabia bem que trabalhar com Steiger não seria tarefa fácil, conhecido que era por ser ator tão incontrolável quando Marlon Brando, aliás seu ex-colega de Actors’ Studio. Pouco tempo antes Rod Steiger acabara de abandonar as filmagens de “Guerra e Paz” em que interpretava Napoleão Bonaparte, por não se entender com o diretor russo Serguei Bondartchuk.

 

Acima James Coburn com Robert J. Wilke;
no centro Coburn atirando sua faca;
Rod Steiger em "No Calor da Noite".

  “Quando Explode a Vingança” se passa em 1913, já em plena revolução mexicana e começa com o bandido Juan Miranda (Rod Steiger) e sua enorme família de salteadores de estrada em ação dominando uma diligência que transporta um grupo de burgueses. Concretizado o assalto, Miranda vê chegar Sean Mallory (James Coburn) pilotando uma motocicleta. Mallory é perito no uso de explosivos e Miranda percebe que ele pode ser útil ao seu intento de, com seu bando familiar, assaltar o banco de Mesa Verde. Mallory trabalha para uma empresa mineradora alemã e após relutar, aceita a parceria com Miranda, trabalho muito mais rendoso que explodir rochas no deserto. O assalto ao banco é bem sucedido, mas o que Miranda não sabia é que todo dinheiro havia sido transferido para a Cidade do México e que o local, fortemente guarnecido por guardas armados, havia sido transformado em cadeia onde se encontravam 150 presos políticos. Involuntariamente Miranda os liberta e se torna herói para os revoltosos que o carregam nos ombros, ao mesmo tempo que passa a ser considerado líder revolucionário. Mallory, um irlandês que pertencera ao Exército Republicano Irlandês (IRA) e fugira para o México para escapar de ser preso pelos ingleses, nutre simpatia pela causa revolucionária mexicana pois vê semelhanças com o que acontece em seu país e termina por se envolver com a revolução, o mesmo ocorrendo com Miranda que vê toda sua família ser vítima das forças do governador mexicano. Perseguidos como terroristas, Miranda e Mallory seguem praticando vários atos que causam baixas às forças governistas, a maior delas quando dinamitam um trem que transporta um batalhão inteiro, evento em que Mallory morre, encerrando a parceria com Miranda.

 

Sean Mallory com sua motocicleta Indian;
Juan Miranda e família, no centro;
Abaixo Mallory carregado de dinamite

  O título original “Giù la Testa” significa ‘abaixe a cabeça’ e nos Estados Unidos recebeu o título “Duck, you Sucker” (Abaixe-se, Idiota). Já na Inglaterra “Giù la Testa” foi chamado de “A Fistful of Dynamite” (Um Punhado de Dinamite), título muito mais adequado que o brasileiro “Quando Explode a Vingança” (ou o de Portugal que foi “Aguenta-te, Canalha!”) e isto porque a história não gira em torno de nenhuma vingança e porque o que não falta neste filme são explosões. Mas que não se pense que Leone dirigiu mais um daqueles muitos filmes em que o destaque fica para os cansativos efeitos visuais e os ensurdecedores efeitos sonoros. O roteiro é bem concebido narrando como o humilde mexicano Juan Miranda (Rod Steiger) , homem que não se interessa pela revolução que está por todos os lados no México, aos poucos é tomado pela consciência política, isto ao passo que o politizado irlandês Sean Mallory (James Coburn), ex-ativista do IRA, tenta fugir de seu passado mas, assim como Miranda, é envolvido pelos acontecimentos. Entre uma explosão e outra, sempre providenciadas por Mallory e entre as centenas de tiros das metralhadoras do irlandês e de Miranda, nos quais são mortos incontáveis soldados do exército governista, “Quando Explode a Vingança” ressalta o quadro cruel de uma revolução com execuções por toda parte e mostra a amizade que brota entre os inicialmente desafetos Mallory e Miranda. Em sua primeira parte, o tom imprimido se aproxima da comicidade nas disputas entre os dois antepondo a violência de Miranda com o cinismo de Mallory que lembra que pode refazer o mapa do local com seu domínio da nitroglicerina e da dinamite. E é nesse início do filme que Leone narra sua visão social.

 

Sean Mallory e Juan Miranda

  No interior da luxuosa diligência assaltada por Miranda e sua família, encontra-se um grupo de burgueses. O condutor da diligência, por puro sadismo permite que Juan Miranda entre na diligência para empestear o perfumado ambiente onde estão acomodados, em caríssimas poltronas de couro, quatro homens exalando arrogância, um deles um padre e mais uma mulher tão ou mais soberba que os quatro homens. Ao ver Miranda todos demonstram impiedosamente o desprezo que nutrem por quem é pobre, para eles seres que em nada se diferenciam dos animais. Miranda aceita os insultos, até concordando com as ofensas que lhe imputam. Quando a presunçosa senhora fala ela diz que ‘essa espécie de gente deve viver na promiscuidade, todos num só quarto, como ratos, machos e fêmeas amontoados e quando a luz se apaga, desaparecem as inibições e é a vez de tocar mães, filhas, irmãs, sem distinção’. Ela diz isso enquanto seus lábios chupam sensualmente uma cereja e seus olhos brilham lubricamente, o que não passa despercebido por Miranda. A diligência estaciona num posto abandonado, onde a aguarda a família de Miranda que mata o condutor e o segurança. Um dos quatro homens tenta puxar uma arma e é morto por um dos filhos de Juan que ordena que os demais homens se dispam, ficando nus, inclusive o padre (cuja fisionomia lembra o Papa Pio XII). Miranda encaminha a mulher para um local afastado não para estuprá-la pois ele percebeu o quanto ela era uma mulher carente por sexo. Ela sem opor maior resistência aceita o contato carnal com Miranda que a satisfaz. Leone fecha a câmara nos olhos da afetada burguesa e com isso expressa mais que se mostrasse o coito mais explicitamente. Luís Buñuel não faria melhor.

 

Maria Monti como a burguesa satisfeita por Juan Miranda;
abaixo parte dos passageiros da luxuosa diligência

  A parceria entre o mexicano e o irlandês se consolida, apesar das diferenças entre os dois. Juan diz que a pátria para ele é só a sua família e que só luta por ela e por mais ninguém. Mesmo não politizado, Miranda sabe que os teóricos das revoluções não vão à luta, deixando isso para o povo que ao final de uma revolução continuará sofrendo da mesma forma. Para o mexicano, o modo de corrigir as desigualdades sociais é assaltando os que possuem riqueza. Mallory que quer se afastar das questões sociais, cinicamente diz que que a única ideologia que existe é a da dinamite, mas carrega consigo “O Patriotismo”, livro de autoria do russo Bakunin. Em flashbacks Mallory surge como jovem em seus tempos como ativista do Exército Republicano Irlandês, quando foi traído por Sean Nolan (David Warbeck), um amigo inseparável, que Mallory mata no momento em que, denunciado por Nolan sob tortura, estava para ser preso, matando também dois policiais que estão com Nolan. Mallory fugiu então para o México, mas o passado o atormenta, recorrendo ao álcool para esquecer. Ardilosamente Miranda consegue fazer com que o irlandês conceba assaltar o banco de Mesa Verde, sonho antigo do simplório bandido mexicano. Sean Mallory com Juan Miranda e a família deste chegam a Mesa Verde, onde o banco havia se transformado em cadeia e, lembrando “Tempos Modernos” (Modern Times) de Chaplin, Miranda se torna um constrangido herói revolucionário. A dupla passa a integrar uma célula revolucionária dirigida pelo Dr. Villegas (Romulo Valli) e a amizade entre ‘Juan e John’, ou ‘Johnny e Johnny’, como os dois costumam se tratar, leva Mallory a salvar o amigo que está diante de um pelotão de fuzilamento após ser capturado e ter toda sua família assassinada, ou seja, ver que está sozinho no mundo, exceto pelo parceiro irlandês.

 

O banco de Mesa Verde sendo dinamitado;
Juan Miranda se tornando herói;
Sean Mallory ainda na Irlanda

  Lembrado pelas muitas explosões, “Quando Explode a Vingança” tem seu trepidante epílogo durante a tentativa de fuga de Miranda e Mallory que tencionam sair do México, em direção aos Estados Unidos, num trem que conduz, além do governador Jaime (Franco Graziosi), o coronel Gunther Ruiz (Antoine Saint-John), incansável perseguidor da dupla. Miranda vinga-se do governador, a quem considera responsável pela morte de toda sua família, matando-o. O ataque ao trem é determinado pelo Dr. Villegas que, preso e também sob tortura, denuncia todo o comando da célula revolucionária. Lembrando seu passado, Mallory escolhe o Dr. Villegas para juntos colidirem uma locomotiva contra o trem que leva o coronel Gunther e sua tropa. Villegas comete suicídio durante a colisão e o trem é destruído, não sem antes o coronel Gunther escapar do trem em chamas e atirar contra Mallory. Miranda então dispara sua metralhadora contra o coronel e quando busca socorro para o amigo ferido vê à distância que Mallory provoca uma proposital explosão na qual sucumbe. Sergio Leone era admirador de “Pierrot Le Fou” (O Demônio das Onze Horas), de Jean-Luc Godard, a quem presta homenagem com a morte de Mallory. “Quando Explode a Vingança” se encerra com o amargurado Juan Miranda desaparecendo sob o título “Duck, you Sucker”.

 

Mallory e Miranda em ação;
abaixo execução em massa de revolucionários

  Conscientemente ou não, Sergio Leone criou o personagem ‘Juan Miranda’ como seu alter-ego. Através do bandido mexicano Leone tencionou mostrar o que pensava da política e, por que não, dos tantos spaghetti-zapata filmados por diretores socialistas como Damiano Damiani e Sergio Corbucci. Em todos os spaghetti-zapata desses diretores emergiam heróis revolucionários, enquanto em “Quando Explode a Vingança” nem Miranda e nem Mallory almejam heroismo ou liderança. São somente envolvidos pelas circunstâncias e nessa revolução perdem a vida (Mallory) e a família (Miranda) corroborando o que o mexicano dissera sobre o povo nesses eventos que se tornam históricos. Os excessivos maneirismos de Rod Steiger como Juan Miranda não deixam de retratar o próprio comportamento de Leone como diretor, maneirismos que quase sempre resultam em magníficas sequências, muitas delas antológicas mesmo, como quando Miranda assiste a um fuzilamento de revolucionários pela fresta que fez num dos muitos cartazes do governador Jaime, cujos olhos passam a ser os olhos de Juan Miranda. Porém a técnica leonesca de intermináveis close-ups torna o filme arrastado, além de alongá-lo em demasia, mais ainda com os flashbacks românticos na Irlanda em camera lenta, com Mallory e Nolan dividindo uma namorada a la “Jules et Jim” e “Butch Cassidy”. Leone pagou muitos de seus pecados (se é que os tinha), dirigindo Rod Steiger. Para cada sequência Steiger se exercitava através do ‘Método’ aprendido no Actors’s Studio, o que quase levou Leone à loucura. Tanto que em certo momento diretor e ator se indispuseram de tal forma que Leone não mais falava com Steiger, usando um assistente para se comunicar com ele. Ao contrário, com James Coburn imperou a paz e a amizade, até porque Coburn em uma entrevista relatou que Leone lhe dissera: “Rod Steiger parece querer engolir a lente da câmera. Seja você mesmo James, tranquilo e natural pois assim são os melhores atores”. O overacting de Steiger é compensado pelo estilo descontraído de Coburn. Romulo Valli tem o terceiro personagem importante na história e faz bem o enigmático médico revolucionário. Antoine Saint-James não consegue a expressividade necessária para um coronel inclemente, assim como Franco Graziosi, o governador. Essas escolhas erradas chamam a atenção porque Leone era mestre em encontrar tipos carismáticos perfeitos e marcantes.

 

Acima Rod Steiger e James Coburn em pose publicitária;
o cartaz com o governador e os olhos de Miranda,
o Dr. Villegas; coronel Gunther Ruiz;
abaixo Mallory, Nolan e a namorada na Irlanda

  “Quando Explode a Vingança” teve uma dispendiosa produção que rendeu excelente bilheteria na Itália, boas bilheterias na Europa em geral mas não foi bem quando lançado nos Estados Unidos, apesar dos nomes de Rod Steiger e James Coburn. Diante do volume de dinheiro gasto, o filme deixou a desejar como na sequência do choque dos trens com uma mal disfarçada miniaturização. Desta vez a cinematografia ficou a cargo de Giuseppe Ruzzolini, substituindo o ótimo Tonino Delli Colli, preferido de Leone, para quem faria a excepcional fotografia de “Era uma Vez na América”. O belíssimo tema principal da trilha musical de “Quando Explode a Vingança” é ouvido em boa parte do filme, trilha infelizmente completada por composições menos inspiradas de Ennio Morricone, uma delas o tema de Sean que melhor ficaria em algum western farsesco. Sergio Leone não chega a decepcionar com “Quando Explode a Vingança”, longe disso, mas esta aventura épica deixa saudade dos westerns que ele havia feito antes e mais ainda daquele que seria seu último filme: “Era uma Vez na América”.


Sergio Leone; abaixo Leone, Steiger e Coburn

8 de outubro de 2024

VIVA ZAPATA!

Elia Kazan era já uma celebridade no meio artístico quando trocou o teatro pelo cinema. Fundador do Actors Studio, Kazan causou impacto com “A Streetcar Named Desire”, na Broadway, dirigindo um jovem chamado Marlon Brando. Depois de alguns filmes com profundo cunho social, Kazan se interessou por um projeto sobre o revolucionário mexicano Emiliano Zapata, projeto descartado pela MGM por seu evidente caráter político. Quem também se interessou por esse planejamento foi John Steinbeck, autor de “Vinhas da Ira” que tanto havia incomodado autoridades que viram no livro e no filme de John Ford um viés comunista. Steinbeck começou a trabalhar no roteiro baseando-se no livro “The Unconquerable Zapata”, escrito por Edgcumb Pinchon em 1941, autor cujos textos haviam servido de base para o roteiro de “Viva Villa!”, filme de 1934, também sobre a revolução mexicana. Chegava então o final da década de 40 e tanto Steinbeck quanto Kazan estavam entre os alvos do Macarthismo que caçava cada vez mais impiedosamente os ‘vermelhos’ do ambiente cultural norte-americano, em especial o meio cinematográfico. Ambos, Kazan e Steinbeck mergulharam em tudo que dizia respeito aos acontecimentos políticos ocorridos no México nas duas primeiras décadas daquele século, com Kazan visitando povoados por onde Zapata passara, definindo mesmo onde seriam as locações em solo mexicano. Esbarrou, no entanto, numa determinação do governo daquele país que, ao receber o roteiro para aprovação, proibiu a filmagem em território mexicano, para não se repetir o que fora feito em outras produções de Hollywood nas quais o povo mexicano era mostrado quase ao ponto da idiotia. Quem também olhava o projeto com desconfiança era o chefão da Fox, Darryl F. Zanuck, que não cessava de palpitar sobre o filme, inclusive impondo o elenco que ele considerava ideal: Zanuck queria Tyrone Power, como Zapata e Jack Palance como Eufemio Zapata. Kazan, cujo conceito estava nas alturas bateu o pé e venceu a parada tendo seu indicado e protegido Marlon Brando como protagonista. “Um Bonde Chamado Desejo” ainda não havia sido lançado nos cinemas mas Brando estava a caminho de se firmar como o principal astro de Hollywood. Tanto que tirou o sono de Zanuck ao exigir cem mil dólares para assinar o contrato para atuar no filme. Zannuck cedeu mais uma vez, porém o big boss da Fox venceu Kazan que queria Julie Harris para o principal papel feminino, que acabou nas mãos da novata Jean Peters que ainda não se tornara a senhora Howard Hughes. Quando Marlon Brando deixou de interpretar Stanley Kowalski em “Um Bonde Chamado Desejo” nos palcos, quem o substituiu foi Anthony Quinn, que Kazan escolheu para ser Eufemio Zapata, o irmão de Emiliano.
Marlon Brando era já conhecido por seu perfeccionismo levado aos extremos, o que demonstrara em sua estréia no cinema como o soldado paraplégico em “Espíritos Indômitos” (The Men), 1950. Para viver Emiliano Zapata, Brando não deixou por menos e quis saber tudo sobre o personagem e mesmo sobre o comportamento dos camponeses mexicanos, não abrindo mão de adotar um sotaque o mais próximo possível de como seria o de Zapata. As filmagens tiveram lugar no Texas, próximo à fronteira, que a produção conseguiu transformar num autêntico pedaço rural do México. Kazan instruiu o cinegrafista Joe MacDonald para conseguir imagens parecidas com aquelas que o russo Sergei M. Eisenstein realizara para o lendário “Que Viva México!”, em 1932. Sob a mira do HUAC (Comitê de Atividades Antiamericanas) e com o senador Joseph McCarthy atemorizando toda Hollywood, John Steinbeck e Elia Kazan entenderam que o filme teria que suavizar a tendência política da luta de Zapata sem esquecer de ressaltar o valor da democracia norte-americana. Esse fato comprometeu a exatidão histórica ao apresentar o revolucionário como um homem simples e iletrado que se torna líder graças à sua própria consciência, à capacidade de agitador, de amor pelo seu povo e desapego ao poder, o que não é de todo inverdade, ficando para o ambíguo personagem Fernando Aguirre a caracterização como agente comunista ou anarquista. Mesmo com a atenuação dos aspectos políticos que Steinbeck-Kazan tencionavam dar ao filme, subliminarmente prevalece essa intenção e “Viva Zapata!” resiste como filme de ção que mostra Zapata como homem que tem por filosofia e ideologia fazer o bem para seu povo.
Acima John Steinbeck e Elia Kazan; abaixo os irmãos
Eufemio e Emiliano Zapata e o corpo de Zapata.

Elia Kazan não havia ainda filmado um western e nem mesmo após “Viva Zapata!” ele voltaria a visitar o gênero. Ainda que não seja o que se pode chamar de faroeste puro, a este filme de Kazan (sem esquecer que 20 anos antes houve “Viva Villa!”), seguiram-se inúmeros westerns que tiveram a revolução mexicana como pano de fundo. Uma pena, porque, mesmo sendo conhecidas todas as dificuldades que cercaram “Viva Zapata!”, Kazan realizou um excelente filme, que somente não foi melhor porque confuso em alguns momentos dando a impressão que sequências foram suprimidas, como quando Zapata se torna ‘presidente’ do México, ou quando da passagem de Fernando Aguirre de amigo e mentor de Emiliano para o lado mexicano, com farda e tudo. O excesso de monólogos com tendência ideológica que tornou o filme muito discursivo poderia ser também evitado. E o final foi por demais apressado com Zapata mesmo sabendo que seria alvo de uma armadilha, comparece ao encontro com um general carranzista, onde seria assassinado. Porém o ritmo do filme se mantém durante suas quase duas horas, com sequências esplêndidamente filmadas, destacando-se o confronto tenso de Zapata com o ditador Porfírio Diaz, repetido mais tarde com Zapata e um camponês de nome Hernandez (Henry Silva); o cerco dos camponeses à condução de Zapata como prisioneiro; Zapata revelando-se analfabeto e implorando para aprender a ler; e finalmente Zapata fuzilado por dezenas de atiradores, dando o último suspiro ajoelhado com a cabeça sob o corpo crivado de balas de fuzil, sequência violenta que concentra toque poético.
O brutal assassinato de Emiliano Zapata

Esta biografia filmada por Kazan começa com Zapata se destacando de um grupo de camponeses que é recebido pelo presidente-ditador Porfírio Diaz (Fay Roope) que diante da coragem de Zapata em confrontar suas palavras, circula seu nome que está numa lista para posteriores medidas. Escondendo-se nas montanhas Zapata é encontrado por Fernando Aguirre (Joseph Wiseman), que se faz passar por escritor-jornalista mas que é, de fato, um agitador político sem bandeira definida. Zapata mantém uma relação amorosa com a linda Josefa (Jean Peters), cujo pai, Señor Espejo (Florenz Ames) rejeita Zapata como pretendente da filha por ele ser pobre. Envolvendo seus liderados camponeses em guerrilhas, ao Sul e com Pancho Villa (Alan Reed) fazendo o mesmo ao Norte, o México se vê envolto em disputas políticas e Diaz foge do país, retornando o exilado Francisco Madero (Harold Gordon), que se torna presidente. Madero chama Zapata e seu irmão Eufemio (Anthony Quinn) ao palácio e nomeia Emiliano general, o que faz com que o Señor Espejo o veja como homem de sucesso, permitindo o casamento do agora general com Josefa. Ao contrário de Pancho Villa que aceita benesses de Madero, Zapata renuncia a uma grande propriedade que Madero quer lhe presentear. Madero mostra-se um presidente fraco e logo é derrubado e morto pelo General Huerta (Frank Silvera), que também não resiste a um golpe que leva à presidência do país Venustiano Carranza. Um general preposto do novo presidente temendo novas guerrilhas decide por eliminar Zapata e em conluio com o agora governista Fernando Aguirre, o coronel Jesus Guajardo (Frank DeKova) chama Zapata para um local chamado Hacienda de San Juan, em Chinameca, município de Ayala, sob o pretexto de lhe entregar armas e munição pois estaria esse coronel contra as forças de Carranza. Durante o encontro Zapata é assassinado e Blanco, seu cavalo, escapa pelo portão aberto da hacienda fugindo para as montanhas.
Brando com o cavalo Blanco de Zapata;
Anthony Quinn com Lou Gilbert e com Joseph Wiseman;
abaixo Quinn, Brando, Gilbert e Harold Gordon.

Marlon Brando está excelente como Emiliano Zapata, ainda que sob uma maquiagem por demais carregada para transformá-lo em filho de camponês com indígena. Brando e Anthony Quinn, donos e enormes talentos interpretativos poderiam contracenar em mais sequências, mas os dois não se entenderam bem durante as filmagens. Quinn era mexicano nato e Brando se esforçando para parecer o que Quinn era naturalmente, daí o mal estar. Se existe alguém para representar um tipo intrigante em filmes, esse alguém é Joseph Wiseman, tão excelente quanto Brando e Quinn. Harold Gordon interpreta um irritantemente inseguro Madero, o que faz com que não se entenda ter sido ele um homem tão importante naquela etapa da revolução mexicana. Elia Kazan trouxe para compor o elenco coadjuvante de “Viva Zapata!” Lou Gilbert, Frank Silvera, Mildred Dunnock e Henry Silva, todos alunos do Actors Studio. Lou Gilbert interpreta Pablo que ao final é executado por Zapata cumprindo imperdoável ritual de traição. Jean Peters é o amor de Zapata. No elenco ainda numa ponta Larry Duran, que estaria com Brando em “A Face Oculta” (One-Eyed Jacks).
Marlon Brando e Jean Peters

Esqueça-se que Zapata sabia sim ler e escrever, que se vestia como um dandy mexicano quando jovem, que teve 15 filhos com diversas mulheres, que sua trajetória como líder camponês foi, como não poderia deixar de ser, romanticizada ao gosto de Hollywood e ainda todas as demais inverdades históricas. Lembre-se que mesmo atenuando o cunho ideológico de “Viva Zapata!”, Kazan acabou tendo de depor (e denunciar companheiros) no Comitê de Atividades Antiamericanas e que a caça às bruxas mudou em muito a proposta de Kazan-Steinbeck para o filme. Assim assistido, “Viva Zapata!” é um filme brilhante e que rendeu um Oscar de Ator Coadjuvante a Anthony Quinn, além da indicação de Brando para Melhor Ator, prêmio perdido para Gary Cooper por “Matar ou Morrer” (High Noon) e outras três indicações nas categorias de Melhor Roteiro, Direção de Arte e Melhor Música. “Viva Zapata!” é um western-biográfico coroado com a magnífica fotografia de Joseph MacDonald que sequer foi indicado, filme que permanece na lembrança de quem o assiste, assim como permanece até hoje, segundo diversos críticos, como a melhor película a abordar a revolução mexicana.
Reprodução da foto do encontro de Pancho Villa
(Alan Reed), com Zapata; Marlon Brando com
Anthony Quinn e com Joseph Wiseman

Anthony Quinn dançando com Margo

2 de outubro de 2024

CAÇADA HUMANA (FROM HELL TO TEXAS)

 


  Assim como John Ford e Henry King, Henry Hathaway era diretor contratado da 20th Century-Fox. Ford se desligou do estúdio mas Hathaway e King continuaram na Fox até praticamente o fim de suas longas carreiras como diretores. E como Ford e King, Henry Hathaway dirigiu para o estúdio todo tipo de filme, alguns deles westerns e que ótimos westerns, merecendo ser lembrados “O Correio do Inferno” (Rawhide), 1951, “Nevada Smith”, 1966, “Pôquer de Sangue” (5 Card Stud), 1968, “Os Filhos de Katie Elder” (The Sons of Katie Elder), 1965 e outros, entre estes três dos cinco segmentos de “A Conquista do Oeste”. Hathaway será sempre lembrado por “Bravura Indômita” (True Grit), 1969, que deu um Oscar a John Wayne, mas também inesquecível entre os westerns de Hathaway é “Fúria no Alasca” (North to Alaska), um western quase comédia com John Wayne. Nunca considerado para entrar no panteão do grandes diretores, Henry Hathaway brilhou na maior parte dos filmes que dirigiu e “Caçada Humana” (From Hell to Texas) comprova essa afirmação.

 


  O ator Don Murray era uma das apostas da Fox para ser um dos novos galã do estúdio nos anos 50, isto depois de passar vários anos atuando nas produções para a TV. E Murray não poderia ser lançado no cinema de maneira melhor pois foi contracenando com Marilyn Monroe em “Bus Sop” (Nunca Fui Santa), que ele se tornou conhecido do grande público. A imagem de Don Murray era invariavelmente a de homem íntegro e sua fisionomia expressava isso naturalmente. Alto e tranquilo, Don lembrava vagamente o jeito de Gary Cooper e não demorou para o público vê-lo em um western quando a Fox o escalou para uma produção de orçamento médio que foi “Caçada Humana”, que seria todo filmado em Alabama Hills e Lone Pine. Nesse western Don Murray interpreta Tod Lohman, um cowboy que acidentalmente em uma briga mata um dos filhos de Hunter Boyd (R.G. Armstrong), poderoso fazendeiro que reúne um bando armado para capturar ou mesmo matar Lohman. Durante a perseguição outro filho de Boyd é morto o que mais aumenta o seu desejo de vingança. Em sua fuga Lohman conhece Amos Bradley (Chill Wills) e Juanita (Diane Varsi), a filha adotiva de Amos, que o ajudam. Outros homens do grupo perseguidor vão morrendo em diferentes situações e quando só restam Hunter Boyd e seu filho Tom Boyd (Dennis Hopper), Lohman salva a vida de Tom e Hunter finalmente desiste de matar o desafeto que ele próprio criara, entendendo ser Lohman um homem de bem.

 

O perseguido (Don Murray) e os seus caçadores
Rodolfo Acosta, R.G. Armstrong e Dennis Hopper

  “Caçada Humana” gira em torno de uma implacável perseguição para que ocorra uma vingança. E Tod Lohman é um homem do Oeste, porém sem a rudeza de espírito pois não é um matador, ainda que tenha reagido e matado Hal Carmody (John Larch), braço direito de Hunter Boyd. A índole de Lohman é expressa quando ele sacrifica seu cavalo que havia levado um tiro de Tom Boyd, mas se recusa a matar um outro cavalo que teimava em acompanhá-lo, em sequência que não deixa dúvidas sobre seu caráter. Lohman está mais para um pacifista que atraí desgraças que levam a mortes em série, mesmo que ao reagir contra quem atira nele, procura sempre não atingir mortalmente o oponente. Cowboy tímido, tem vergonha de se despir diante de Juanita que o obriga a tomar banho por estar fedendo como um bode. Seu temperamento em muito é regrado pelo pedido de sua mãe para que procure fazer o bem sempre, pedido escrito em uma bíblia que ela deixou para ele antes de morrer e que ele carrega sempre consigo. Lohman procura de todas as formas evitar que seus problemas com Boyd envolva aqueles que o cercam e Hunter Boyd diz não entender porque todos gostam tanto do assassino de seu filho. Além de Amos Bradley, também o comerciante itinerante Jake Leffertfinger (Jay C. Flippen), o barmen da cidade de Pueblo e um religioso protegem o pseudo assassino a quem Juanita vê como o homem ideal para ela amar.

 

Chill Wills, o pai feliz já imaginando ter conseguido
um marido (Murray) para a filha (Diane Varsi);
Jay C. Flippen com Don Murray;
Diane não contém o desejo por Murray.

  Em “Paixão dos Fortes” (My Darling Clementine), Old Man Clanton (Walter Brennan) jura vingança ao ver um de seus filhos ser morto, o que gera uma vingança familiar, assim como ocorre em “Estigma da crueldade” (The Bravados) e em “Nevada Smith”. Nesses westerns há bandidos envolvidos, o que não ocorre em “Caçada Humana”, o que o torna um faroeste diferente. O que não falta, no entanto neste filme de Hathaway é a tensão que está presente durante todos os 100 minutos de sua duração. Diversos confrontos havendo até mesmo uma perseguição de comanches à carroça do velho Leffertfinger, na qual Tod Lohman tem seu momento de John Wayne /Yakima Canutt andando sobre os six black horses que puxam a carroça. Ao final desse ataque, quando escapam dos índios graças à sabedoria do experiente comerciante, Leffertfinger diz a única frase engraçada num western sério: “Acho que o uísque que vendi para esses comanches não era de boa qualidade”. O roteiro tenta dar uma leveza quando a família de Amos entra em cena, com sua alegre esposa rodeada por seis filhas e a señora Amos Bradley é eficiente não só na arte de trazer filhas ao mundo, mas também consegue extrair três balas do corpo do marido. O momento culminante de “Caçada Humana” ocorre em seu final quando Lohman, ao invés de atirar em Tom Boyd, que está com o corpo em chamas, salta sobre ele conseguindo apagar o fogo que começava a queimar inteiramente o filho de Hunter Boyd. Momento não só culminante mas também emocionante e que demonstra definitivamente o tipo de homem que era o cowboy perseguido. Só assim para o pai sedento por vingança enxergar a verdade.

 

Chill Wills com a esposa e a prole feminina;
Margo, com inacreditável habilidade cirúrgica.

  Western de orçamento médio, “Caçada Humana” merecia muito maior publicidade e seria mais lembrado se o par central fosse composto por grandes nomes do cinema, o que não era exatamente os casos de Don Murray e Diane Varsi. Murray está bem como o cowboy quase justiçado por quem decide ser a lei, capturando, julgando e condenando um homem. Diane tenta aparecer masculinizada no início do filme, ela que é toda delicadeza. Porém o destaque fica mesmo para o excelente grupo de coadjuvantes, a começar por R.G. Armstrong, desta vez distante do tipo neurótico-psicótico que costumava interpretar e mais uma vez em excelente atuação. Chill Wills e Jay C. Flippen não ficam atrás e completam o trio das melhores interpretações. Dennis Hopper ainda não havia aperfeiçoado o homem mau que demonstraria no cinema no futuro e tanto Rodolfo Acosta quanto John Larch têm poucas oportunidades. A cópia utilizada para esta resenha é de uma gravação do antigo canal Telecine Classic, com imagem sofrível, mas que em nada diminui a excelência de “Caçada Humana”.

 

A impressionante sequência em que Don Murray
salva a vida de Dennis Hopper; o implacável
R.G. Armstrong finalmente se penitencia.


Don Murray como Tod Lohman