21 de março de 2020

A LEI DO REVÓLVER (STRANGER AT MY DOOR), A OBRA-PRIMA DE WILLIAM WITNEY


William K. Everson, um dos mais brilhantes autores sobre o gênero western, foi talvez o primeiro crítico a perceber que “A Lei do Revólver” é uma pequena obra-prima. Os faroestes dirigidos por William Witney são, de modo geral, superiores aos westerns de pequeno orçamento, sempre filmes para complementar programas duplos. A maior parte desses westerns são rotulados como ‘de rotina’ e ignorados pela crítica. As principais enciclopédias sobre faroestes, como as escritas por Phil Hardy, Les Adams/Buck Rainey e Herb Fagen, ignoram “A Lei do Revólver”, muito provavelmente porque os autores não chegaram a assisti-lo e se o fizeram, estranhamente não perceberam a qualidade do filme de William Witney. Produzido pela Republic Pictures, estúdio no qual Witney brilhou intensamente não só nos seriados mas também nos westerns-B, a história guarda algumas semelhanças com “Os Brutos Também Amam” (Shane) e com “Raquel e o Estranho” (Rachel and the Stranger), ambos westerns da década de 50. Escrito e roteirizado por Barry Shipman, autor que produziu muitas histórias para filmes e seriados de William Witney, a trama de “A Lei do Revólver” consegue ser ao mesmo tempo simples, complexa e conter uma carga erótica rara nos westerns. Tudo desenvolvido com tensão durante todos os 85 minutos de duração.
À direita o escritor-roteirista Barry Shipan e William Witney ainda jovem.


Skip Homeier (acima) e
Macdonald Carey
O fora-da-lei e a fé de um pastor - Clay Anderson (Skip Homeier) é o líder de uma quadrilha que assalta um banco na pequena cidade de West Bridge. O bando se dispersa mas o cavalo de Clay machuca a pata numa queda e o bandido se refugia no rancho do pastor Hollis Jarret (Macdonald Carey). Jarret tem um filho pequeno chamado Dodie (Stephen Wootton) com quem Clay faz amizade. Dodie é filho do primeiro casamento do pastor, cuja esposa faleceu e ele agora está casado com Peg Jarret (Patricia Medina), moça muito mais jovem que o pastor. Clay a princípio pensa que ela é filha de Jarret e acreditando que Peg seja uma mulher volúvel se insinua junto a ela, que a princípio hesita mas depois o repele. Jarret descobre que foi o estranho quem assaltou o banco e percebe também o interesse dele por sua mulher, mas se dispõe a reabilitar o bandido contrariando a vontade de Peg que insiste para que o marido o mande embora. Jarret compra um cavalo indomável que tenta amansar e com isso provar a Clay que as naturezas humana ou animal podem ser mudadas com a fé. O xerife John Tatum (Louis Jean Heydt) chega ao rancho de Jarret e troca tiros com Clay, quando um dos tiros disparados pelo xerife acerta Dodie. Clay poderia se aproveitar para fugir mas acreditando que Dodie tenha morrido decide matar o xerife a quem persegue e com quem trava luta corporal, recebendo um tiro mortal do homem da lei. Afinal Jarret conseguiu fazer com que Clay mudasse ainda que isso o levasse à morte.

Skip Homeier (acima) e Macdonald Carey
A salvação é um revólver e um cavalo - “A Lei do Revólver” é um estudo sobre a possibilidade de um homem desalmado poder se regenerar e desenvolver seu lado bom ainda que ele próprio não acredite nisso e nem creia que haja algo de bom em si mesmo. Clay Anderson é mau, insensível e lascivo. Ao ver a esposa do pastor de imediato se sente atraído por ela e passa desejá-la sofregamente. Peg por sua vez lança olhares dúbios a Clay, olhares que podem conter ingenuidade ou provocação. Witney na direção dos atores e o roteiro são esplêndidos ao criar a dúvida no espectador e o comportamento de Clay se justifica por ser ele quem é. Insidiosamente o bandido lembra à jovem esposa que seu marido não é homem para ela, assim como a vida que ela leva não é o sua jovialidade e beleza merecem. Podendo ir embora Clay prefere ficar apostando que cedo ou tarde Peg cederá ao seu assédio. O pequeno Dodie admira o estranho e não esconde isso de seu pai, um homem simples que não porta uma arma. Peg, por sua vez, ao perceber o perigo a que está exposta, implora ao marido para que este mande Clay embora do rancho, mas o pastor tem uma quase obsessão, ainda que o estranho demonstre sua filosofia de vida repetindo sua frase preferida: “Para mim a salvação é um revólver limpo e um bom cavalo”.

Patricia Medina; Patricia Medina e Skip Homeier

'Lúcifer'
Lúcifer e a redenção de Clay - A tolerância de Jarret diante da conduta do malfeitor é explicada com sua frase “os caminhos de Deus são misteriosos” e porque obstinadamente ele crê na conversão de Clay. E acredita que isso faz parte de sua missão como pregador da palavra de Deus, unindo suas palavras à sua atitude. Mesclam-se então, magnificamente, erotismo e santimônia, amalgamados pela alegoria representada por Lúcifer, o furioso corcel negro adquirido por Jarret. O pastor mesmo sabedor que o animal tem comportamento endemoniado vê nele o exemplo que Clay precisa para se regenerar. Cético, o bandido aconselha que o cavalo seja morto e mesmo Peg se arma para tirar a vida do animal que, indomável, quando enfurecido ameaça a todos. Após inúmeras tentativas de domar Lúcifer e ao precisar dele para perseguir Clay, a fé do pastor lhe dá forças para subjugar o cavalo, montá-lo e alcançar o bandido. Clay e Lúcifer são iguais para a convicção religiosa do pastor Jarret.

Macdonald Carey

Patricia Medina
As marcas de William Witney - Um western com tal trama se escora mais em diálogos graves e incomuns que nas ações típicas a um faroeste. E é bastante conhecido o lema de William Witney como diretor de filmes de ação na Republic Pictures: “Em cenário internos, luta; em campo aberto, perseguição” (In a door, into a fight; out a door, into a chase). A luta interior é travada dentro da casa do rancho confrontando a fé e a virtuosidade contra a maldade e a licenciosidade. Quando as tomadas transcorrem externamente é hora de Witney mostrar seu excepcional domínio de sequências de ação. As tentativas de domar Lúcifer sendo que em uma delas o animal parece estar tomado pelo tinhoso, a quem representa, são antológicas e vale lembrar que o diretor entendia e muito de cavalos. Além disso estava ali Slim Pickens, campeão de rodeios para a necessária assessoria. Para completar “A Lei do Revólver” tem sequências magistrais filmadas habilmente por Bud Tackery, cinegrafista de tantos e tantos seriados e westerns dirigidos por Witney. Uma delas é a perseguição tripla carroça, cavalo e cavalo (Lúcifer) que provoca aquela saudosa vibração que os emocionantes ‘cliffhangers’ provocavam nas crianças e adolescentes que não perdiam um só capítulo dos inesquecíveis seriados da Republic.

Patricia Medina e Stephen Wootton; Slim Pickens

Macdonald Carey
Uma gema produzida na ‘Ala da Pobreza’ - O elenco deste western é composto por atores que nunca alcançaram o nível mais alto de astros embora fossem bons como Macdonald Carey e Skip Homeier, a quem chamavam de ‘Lee Marvin dos pobres1. A bela inglesa Patricia Medina (mãe espanhola), que encantou os espectadores com sua presença morena em tantas aventuras capa-e-espadas, está bem como a provocante esposa. Slim Pickens, que era então contratado da Republic, tem um papel pequeno e não levaria ninguém a imaginar que faria tão brilhante carreira como coadjuvante de grandes filmes. “A Lei do Revólver” é um daqueles filmes B que nos permite imaginar como seria se tivesse orçamento e tratamento de grande produção, em cores e atores famosos. Mas aí o diretor não seria William Witney e um dos méritos deste western reside justamente em ser perfeito justamente por ter sido produzido na Poverty Row de Hollywood.

Skip Homeier 
Pôster de "A Lei do Revólver" que mais parece divulgar um
drama policial que um western.

18 de março de 2020

ELES PASSARAM POR AQUI (FOUR FACES WEST) – JOEL McCREA, UM NOBRE BANDIDO



Acima E.M. Rhodes; abaixo Alfred E. Green;
Harry Sherman e William Boyd
Joel McCrea foi, sem dúvida, um dos grandes cowboys do cinema ele que durante muitos anos interpretou galãs de estrelas como Claudette Colbert, Barbara Stanwyck, Merle Oberon, Jean Arthur, Miriam Hopkins, Joan Bennett, Sylvia Sidney e Veronica Lake, entre outras, em dramas e policiais, até se decidir exclusivamente por atuar em faroestes. De meados da década de 40 até protagonizar ao lado de Randolph Scott em 1962 a obra-prima “Pistoleiros do Entardecer” (Ride the High Country), seu último filme notável, McCrea brilhou intensamente no gênero western e “Eles Passaram por Aqui” está entre seus melhores trabalhos. Dirigido por Alfred E. Green, a partir de uma história de Eugene Manlove Rhodes, autor que, como poucos, conhecia o Velho Oeste, este filme foi produzido por Harry Sherman (o produtor da série Hopalong Cassidy) e distribuído pela United Artists. Este é um western insólito especialmente por não conter duelos, por nenhum tiro ser disparado, não ocorrer troca de socos e, a rigor, por não ter nem mocinhos e nem bandidos, mas sim seres humanos todos decentes. O mais nobre deles é justamente protagonizado por Joel McCrea, ator que era a perfeita personificação da dignidade. “Paso por Aqui” é o título original do filme e também do livro de Rhodes que foi escrito em 1926, faroeste que guarda ressonância com os westerns de William S. Hart, muitos deles com o personagem principal se redimindo de erros cometidos.


Acima John Parrish e Joel McCrea;
abaixo Ethan Laidlaw e Charles Bickford
Um assalto praticado um homem bom - A pequena cidade de Santa Maria, no Sul do Novo México, contrata o famoso homem da lei Pat Garrett (Charles Bickford), a quem recebe com solenidade no mesmo momento em que o banco local está sendo assaltado. O assalto é praticado por Ross McEwen (Joel McCrea) que, estranhamente, quer apenas dois mil dólares, nada mais que isso, fazendo questão de assinar um recibo indicando que reembolsaria o banco futuramente. Esse valor roubado é para pagar a hipoteca da fazenda do pai de McEwen. Pat Garrett tem um nome a zelar e sai à procura do assaltante que desconhece a identidade. O assaltante foge em um trem para Alamogordo e na viagem conhece a enfermeira Fay Hollister (Frances Dee) que chegou do Leste para trabalhar no Novo México. No trem está também o mexicano Monte Marques (Joseph Calleia) que percebe que McEwen é um fugitivo e que uma patrulha está em seu encalço. McEwen consegue ganhar uma soma de dinheiro num jogo de pôquer e restitui os dois mil dólares ao banco, prosseguindo em sua fuga. Tanto Fay quanto Marques ajudam McEwen que, agora a cavalo, chega até um rancho onde uma família de mexicanos contraiu difteria e está à beira da morte. McEwen ao invés de continuar fugindo se detém e salva os mexicanos, o que permite que Garrett o alcance e o prenda. O xerife descobre a verdade sobre McEwen e assegura interceder por ele no seu julgamento reduzindo ao máximo sua pena. Fay, por sua vez, promete esperar por McEwen quando ele ganhar a liberdade e voltar a ser um homem livre.

Acima Francis Dee e Joel McCrea;
abaixo Clem Fuller, Francis Dee e McCrea
Prêmio exemplar - Ross McEwen não é um bandido, mas as circunstâncias fazem com que ele roube um banco e com que o próprio banqueiro (John Parrish) estranhe o comportamento do ladrão, educado e sem a violência normal dos foras-da-lei. Mas ao obrigar o banqueiro a acompanhá-lo e quando distante de Santa Maria o deixa sem as botas e sem o cavalo, desperta a ira do refém que, ao se ver livre, institui um prêmio pela captura de McEwen, prêmio no valor de três mil dólares, maior que o produto do roubo. Garrett então diz uma frase marcante: “O alto valor do prêmio é para que os ladrões não voltem a roubar”. Porém o recibo que McEwen escreveu e assinou (como Jefferson Davis) demonstra sua intenção de devolver o dinheiro. Pat Garrett é também mostrado como um homem da lei íntegro e avisa que não quer que o foragido seja alvejado pelas costas, algo bastante comum quando se é ‘procurado vivo ou morto’. A enfermeira Fay Hollister pressente que McEwen seja um homem correto e mesmo ao descobrir o que ele praticou, deixa seu sentimento falar mais forte ficando ao seu lado. E por fim, a quarta face do título original é a do mexicano Monte Marques.

Acima Joseph Calleia;
abaixo Martin Garralaga
Respeito pelos mexicanos - Hollywood costumeiramente fazia dos mexicanos (e latinos em geral) tipos caricaturais, quando não bandidos da pior índole. “O Tesouro de Sierra Madre” (1948) chegou a ser proibido no México por essa razão: estigmatizar negativamente a figura do mexicano. “Eles Passaram por Aqui” apresenta o mexicano Monte Marques, desde sua entrada em cena, como alguém fadado a espertezas e traições, levando o espectador a esperar dele a clássica vileza. Marques olha sempre traiçoeiramente de soslaio, ri cinicamente e a deslealdade é iminente. Ao contrário disso, Monte Marques é igualmente um homem honrado e que ama sua terra, seus patrícios e conhece e se orgulha de suas tradições. Ele ajuda desinteressadamente McEwen de todas as maneiras pois percebe ser o estranho merecedor de sua confiança, comprovada quando McEwen salva um pobre mexicano, esposa e filhos da morte certa sacrificando sua própria liberdade. Houve sim, outros westerns mostrando mexicanos de modo simpático, mas Monte Marques está entre os personagens mexicanos que mais respeito mereceram do cinema norte-americano.

Francis Dee; Joel McCrea e Francis Dee

Joel McCrea
O Autêntico Velho Oeste - À falta da ação típica do gênero, sobra em “Eles Passaram por Aqui” sequências que provêm da familiaridade de Eugene Manlove Rhodes com o Velho Oeste, ele que nasceu e cresceu no Novo México. Uma dessas sequências é McEwen ser picado por uma serpente e ele mesmo extrair o veneno. Necessitando de uma montaria, McEwen doma um touro e sobre seu lombo faz uma longa travessia no deserto, momento em que Joel McCrea exibe sua habilidade como cowboy autêntico que era. Ao encontrar o casal de mexicanos e dois filhos à beira da morte, McEwen retira a pólvora de suas balas produzindo enxofre com o qual reanima as crianças desfalecidas. Por fim, as inscrições na enorme rocha indicando nomes registrados indicando que ‘Paso por Aqui’, o que deu origem à história. Estranhamente, E.M. Rhodes foi um autor muitas vezes levado ao cinema nos tempos em que o cinema não era ainda falado. Entre 1923 e 1948, ano da produção deste western, nunca mais esse autor teve outra de suas histórias aproveitadas em filmes. Que não se pense porém que, por não haver tiroteios e lutas, “Eles Passaram por Aqui” seja um western que não envolve o espectador. A força de sua história e a boa direção de Green se incumbiram disso.

Joel McCrea e Francis Dee; Francis Dee

Joel McCrea
Joel McCrea talhado com dignidade - Joel McCrea atuou pela terceira e última vez ao lado de Frances Dee, com quem foi casado por 57 anos, num dos casamentos mais felizes e duradouros de Hollywood e que só terminou com a morte de McCrea em 1990. Frances Dee sobreviveu ao marido por 14 anos, vindo a falecer em 2004, aos 94 anos de idade. A bonita e boa atriz tem ótimo desempenho, inclusive mostrando que é uma perfeita amazona montando admiravelmente, mas o filme é de Joel McCrea num papel talhado para ele propiciando bons momentos dramáticos, o que raramente pode demonstrar nos tantos faroestes que fez na fase final de sua carreira. O italiano Joseph Calleia como o mexicano Monte Marques tortura o espectador que aguarda o momento em que vai enganar o herói, o que nunca acontece, criando um suspense à parte dentro do filme. Charles Bickford contido como um Pat Garrett maduro e justo. No elenco ainda em papeis menores Martin Garralaga, William Conrad (aos 28 anos) e Dan White, como assistente de Pat Garrett. Dan White é um daqueles rostos que vimos em dezenas de filmes (“Rio Vermelho”, “Duelo ao Sol”), quase sempre faroestes, sem sabermos o seu nome. E para quem acha que Joey Starrett (Brandon De Wilde) foi o menino mais chato dos westerns, precisa conhecer George McDonald, o garoto que perturba a vida de Ross Ewen...

Pôster de "Eles Passaram por Aqui"
Produção de médio orçamento - A bela história de E. M. Rhodes teve a direção sensível de Alfred E. Green e ainda esplêndida fotografia em preto e branco de Russell Harlan. Um dos roteiristas é Teddi Sherman, filha do produtor Harry Sherman. A riqueza de detalhes permite imaginar o quanto o livro de Rhodes teria a oferecer e que não foi aproveitado por ser “Eles Passaram por Aqui” uma produção de médio orçamento, com 89 minutos de duração. No ano seguinte Joel McCrea estrelaria o clássico “Golpe de Misericórdia”, de Raoul Walsh, ao qual o western de Alfred E. Green não fica muito a dever. “Eles Passaram por Aqui” tem o título nacional alternativo de “Procurado Vivo ou Morto”, tendo sido chamado em Portugal como “A Face da Dúvida”. Esta cópia foi gentilmente cedida pelo cinéfilo e colecionador taubateano Sebá Santos.

À esquerda Charles Bickford, William Conrad e Dan White;
à direita Joseph Calleia, Charles Bickford, Dan White e Joel McCrea


1 de março de 2020

AS PORTAS DO INFERNO (HELL’S HINGES) – O MELHOR WESTERN DO PRIMEIRO GRANDE COWBOY DO CINEMA



Produzido por Thomas H. Ince e filmado nos meses de setembro e outubro de 1915, “As Portas do Inferno” é unanimemente considerado o melhor dos westerns estrelados por William S. Hart. Consta dos créditos, como diretor, o nome do alemão Charles Swickard, mas a direção de fato foi de William S. Hart, cabendo a Swickard a assistência de direção. Tendo estreado no cinema em filmes de dois rolos somente em 1914 (antes havia participado de alguns ‘shorts’), aos 50 anos de idade Hart, que era novaiorquino de nascimento, se identificou inteiramente com o gênero western. Tornou-se então o maior astro daqueles filmes que retratavam um Velho Oeste que há poucos anos havia sofrido a profunda transição para um tempo mais moderno. Pode-se afirmar que William Surrey Hart estava para o faroeste nos primórdios do cinema assim como Chaplin estava para a comédia, tamanha era sua popularidade. Em suas duas primeiras incursões no faroeste, Hart com sua cara de poucos amigos, raros sorrisos e 1,88m de altura, interpretou vilões, passando depois a ser herói nos filmes seguintes. C. Gardner Sullivan escreveu a história e o roteiro original de “Hell’s Hinges”, filme com 64 minutos de duração e que no Brasil recebeu o título de “As Portas do Inferno”, sendo, no entanto também conhecido como “Terra do Inferno” e “Dobradiças do Inferno”. Nas fotos à direita William S. Hart e Thomas H. Ince.


A cidade que virou um inferno - O padre Robert Henley (Jack Standing) é designado para a cidade de Placer Center, lugar mais conhecido como ‘Hell’s Hinges’ devido à violência que lá campeia. Ainda jovem e com tendências licenciosas, o padre acredita que encontrará muitas mulheres para exercitar seu lado libertino. Henley viaja acompanhado da irmã Faith (Clara Williams) que, ao contrário dele, é virtuosa. Chegando a Hell’s Hinges, Henley desperta a preocupação de Silk Miller (Alfred Hollingsworth), dono do saloon local e que acredita que o padre poderá com sua pregação afastar os frequentadores do saloon. Miller então pede a Blaze Tracy (William S. Hart), temido pistoleiro, que force o padre a sair da cidade, mas o que ocorre é que Tracy se encanta com Faith e passa a protegê-la e também a seu irmão. Miller no entanto percebe a fraqueza do padre Henley e faz com que a saloon girl Dolly (Louise Glaum) o embebede, o seduza e o desmoralize. Henley é alvejado e ferido pelos capangas de Silk Miller e Blaze Tracy cavalga até o povoado vizinho buscar um médico para socorrer o padre Henley. Enquanto isso o povo de Hell’s Hinges é incitado a incendiar a igreja que é defendida por alguns poucos fiéis. Quando Tracy retorna encontra a igreja foi destruída pelo fogo nela ateado e o padre Henley morto. Indignado Tracy se revolta, mata Miller e seus homens e queima o que restou da cidade, começando pelo saloon. Tracy e Faith olham a cidade em cinzas e partem juntos para algum local onde possam começar uma nova vida.

William S. Hart
A fúria do pistoleiro - Tornou-se recorrente nos faroestes estrelados por William S. Hart os seus personagens passarem de foras-da-lei para homens íntegros e defensores dos oprimidos. Some-se a esse aspecto os temas moralistas, a religião sempre presente e uma mulher bonita com bom coração para ajudar na conversão do herói, ingredientes que agradavam as plateias. O diferencial de “As Portas do Inferno” é a violência exacerbada, a fúria que se apossa do pistoleiro convertido e a vingança cruel que ele executa. Quase 60 anos depois Clint Eastwood como o ‘Stranger’, incendeia a cidade de Lago em “O Estranho Sem Nome” (High Plains Drifter), certamente influenciado pelo filme de William S. Hart. A figura de Hart impressiona bastante, não só pelo seu porte, mas pela sinceridade que transmite. O cinema de Hart é austero, sem lugar para comicidade e seu personagem nada elegante no trajar tenta se aproximar o mais possível daquilo que era o Velho Oeste. O realismo incutido em seus westerns atingiu o ápice em “As Portas do Inferno” com os cenários sendo queimados e com isso criando a desejada atmosfera de horror.

Jack Standing
Realismo chocante - Hell’s Hinges é mostrada como uma cidade turbulenta onde fala mais alto a lei do revólver. Tiroteios acontecem e o saloon é o local onde todos vão se embebedar e divertir com as prostitutas. O refúgio da igreja comporta poucos fiéis, incapazes de conter a violência dos valentões, alguns deles a soldo do homem mau da cidade, Silk Miller. Paradoxalmente a igreja, sempre símbolo da paz e da generosidade, é mostrada como passível de ter entre seus evangelizadores um homem inepto e, mais que isso, dissoluto mesmo. Isto num faroeste dos primórdios do cinema mais que surpreender, é mesmo chocante e é outra prova do realismo com que William S. Hart dava a seus filmes.

Louise Glaum; Louise Glaum e Jack Standing

William S. Hart
Hart, um bom ator - As interpretações, como não poderia deixar de ser são teatrais, exagerando nos olhares e gestos, padrão daqueles tempos. William S. Hart se distancia desses excessos e é convincente como o pistoleiro redimido. “As Portas do Inferno” marcou a estreia no cinema de John Gilbert, que viria a ser na década seguinte o maior galã do cinema mudo, fazendo quase figuração como um dos homens de Silk Miller. O fã atento vai reconhecer também Jean Hersholt e ainda Bob Kortman, vilão em quase 300 filmes, a maior parte faroestes, com sua fisionomia assustadora. O cavalo de William S. Hart era ‘Fritz’ e neste filme tem pouco destaque e o melhor momento é quando o mocinho salta de uma elevação caindo sobre a sela e saindo a galope.

William S. Hart e Alfred Hollingsorth
Reconhecimento 80 anos depois - Filmado em Inceville, a cidade cenográfica criada por Thomas H. Ince, “As Portas do Inferno” teve o merecido reconhecimento muitas décadas depois de seu lançamento. Quando exibido num circuito de arte em 1994, o crítico do ‘Chicago Tribune’ afirmou ser este o mais importante western até o aparecimento de “No Tempo das Diligências” (Stagecoach), o célebre filme dirigido por John Ford em 1939. Este western de Willaim S. Hart foi selecionado, ainda em 1994 pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos para ser preservado pela sua importância cultural, histórica e estética. Esta excelente cópia foi fornecida ao blog Westerncinemania pelo cinéfilo e colecionador Sebá Santos.

Clara Williams; William S. Hart e Clara Williams