Archimedes Lombardi é uma personalidade
bastante conhecida no ambiente cinematográfico paulistano no qual mantém, de
longa data, laços de amizade com atores, diretores e escritores. Archimedes é o
presidente da Associação Brasileira de Colecionadores de Filmes em 16mm e há
décadas promove semanalmente sessões que exibem filmes raros de sua coleção. Os
frequentadores da Biblioteca Municipal ‘Roberto Santos’, no bairro do Ipiranga
em São Paulo, são os felizardos que assistem aos filmes projetados pelo
Archimedes ao som do barulhinho mágico e nostálgico de um antigo projetor. Quem
conhece Archimedes sabe que sua coleção, assim como seu gosto pessoal é o mais
eclético possível, indo dos faroestes aos filmes nacionais. Quem priva da
amizade de Archimedes Lombardi sabe também que escutará saborosas histórias
sobre gente do cinema. Mas o que poucos sabem porque nunca foi contado, é que esse
cinéfilo por pouco não se tornou ator, numa história que merece ser lembrada.
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A famosa Rua do Triunfo, em São Paulo. |
A
lendária Rua do Triumpho - O cinema nacional conheceu nos anos
60 talvez seu mais criativo momento, começando a década ganhando a Palma de
Ouro em Cannes, com “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte. Os anos 60
viram surgir Glauber Rocha e toda a geração do Cinema Novo e do Cinema
Underground (udigrud, como se dizia). E havia também o cinema feito por aqueles
que se reuniam numa região atípica de São Paulo.
Nessa região compreendida pelas Estações da Luz, Sorocabana e a antiga
Rodoviária, funcionava também a zona do meretrício paulistano, daí o apelido de ‘Boca
do Lixo Paulistana’ dado à área compreendida por algumas ruas. Havia quem chamasse o local de 'Quadrilátero do Amor'. A Rua do Triumpho era onde se concentravam
as distribuidoras e os principais escritórios das produtoras e o pessoal ligado
ao cinema. Para muitos, porém, o verdadeiro escritório eram o ‘Bar Soberano’ ou
o ‘Bar do Ferreira’, do outro lado da rua. O cinema ali projetado e produzido foi chamado de 'Cinema da Boca'. E foi lá que Archimedes Lombardi
iniciou sua grande aventura cinematográfica.
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Milton Ribeiro em figurinha do álbum 'Ídolos da Tela' e como cangaceiro. |
A
amizade com Milton Ribeiro - Nascido na pequena cidade de Santo
Anastácio, no extremo Oeste de São Paulo, cidade próxima de Presidente
Prudente, Archimedes aos 18 anos de idade se mudou para São Paulo. Na capital
paulista Archimedes empregou-se como gráfico, profissão que já exercia em Santo
Anastácio, onde não perdia nenhuma sessão no único cinema local. São Paulo,
então conhecida como ‘A cidade que mais
cresce no mundo’, possuía mais de uma centena de cinemas e Archimedes já havia
entrado em muitos deles para ver filmes de seus ídolos. O moço de Santo
Anastácio frequentava assiduamente os cinemas do bairro da Colina Histórica, o
Ipiranga, onde residia. Mas Archimedes gostava também do luxo e conforto dos
cinemas da Cinelândia Paulistana, no centro da cidade. O cinema que mais o
impressionava era o Cine República, com sua gigantesca tela de 250 m2,
considerada a mais larga do mundo. Apaixonado por faroestes, Archimedes foi num
sábado ao Cine República que exibia a reprise de “Um Certo Capitão Lockhart”,
filme que ainda não havia assistido. Após a sessão, Archimedes saiu do cinema e
atravessou a famosa Praça da República quando avistou Milton Ribeiro, ator de
quem era fã desde que assistira “O Cangaceiro”, lá em Santo Anastácio.
Archimedes não teve dúvidas e se aproximou do ator, cumprimentando-o. Milton
ficou surpreso quando o rapaz vestido com terno e gravata tirou do bolso uma
carteira e de tirou de dentro dela algumas figurinhas do álbum “Ídolos da
Tela”. Arquimedes mostrou os cromos de seus atores preferidos: Gary Cooper, Amedeo
Nazzari, John Wayne, Eliana e a figurinha dele, Milton Ribeiro.
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Jornal da semana em que o Cine República reprisou "Um Certo Capitão Lockhart". |
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Acima o 'Rei da Boca' Polo Galante; abaixo Carlão Reichenbach. |
Archimedes
descobre o Cinema da Boca – Milton Ribeiro convidou Archimedes
para tomar um refrigerante no Restaurante Salada Paulista, na Avenida Ipiranga,
e percebeu o desejo daquele rapaz de olhos azuis de conhecer o pessoal que
fazia cinema. Milton pediu a Archimedes que se encontrasse com ele na semana
seguinte quando o levou à Rua do Triumpho, mais precisamente ao ‘Bar Soberano’.
Milton era muito querido e conhecido de todos, apresentando o jovem Archimedes
a figurões do ‘Cinema da Boca’ como Oswaldo Massaini, José Mojica Marins, o ‘Zé
do Caixão’ e Antonio Polo Galante. Este último tinha o apelido de ‘Rei da Boca’.
Archimedes se emocionou quando foi apresentado a Carlos Miranda, o Vigilante
Rodoviário, tão ídolo para ele quanto o próprio Milton Ribeiro. Archimedes foi
também apresentado a pessoas de quem ele nunca tinha ouvido falar como Carlos
Bierrenbach, que todos chamavam de ‘Carlão’, um diretor chamado Ody Fraga e um
outro de nome esquisito, um tal Ozualdo Candeias. Com 1,80m de altura e
expressão de homem mau acentuada por seus olhos claros, Archimedes foi logo
sondado para ser ator recebendo promessas de participações em futuros projetos.
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Acima Ozualdo Candeias e abaixo seu clássico "A Margem", cujo cenário é o Rio Tietê. |
O
convite de Ozualdo Candeias - Mesmo sem ter ainda dirigido nenhum
filme, Ozualdo Candeias era uma das personalidades mais destacadas do ‘Bar
Soberano’ e falava a todos do projeto de seu primeiro filme que se chamaria “A
Margem”. Candeias já tinha tudo pronto para iniciar seu filme, faltando apenas
completar o elenco de apoio, sendo que um dos papéis menores ele reservara
justamente para Archimedes Lombardi. Convidado por Candeias, que prometeu lhe pagar
cinco mil cruzeiros pelo trabalho de um dia, Archimedes viu na proposta uma
oportunidade de se tornar conhecido pois havia no ar a certeza que Candeias
faria um filme marcante. Archimedes perguntou a Candeias qual seria seu papel e
pediu ao diretor uma sinopse do roteiro para estudar a composição do seu
personagem. Candeias acalmou o ansioso Archimedes dizendo que ele participaria
de uma única sequência, no início do filme e que no próprio dia da filmagem lhe
explicaria o que fazer em cena. Ozualdo Candeias pediu ainda a Archimedes para
ele estar na quarta-feira seguinte na Rua Conselheiro Nébias, num prédio onde
funcionavam conjuntos de escritórios pois ali seria rodada a sequência.
Archimedes comemorou o ‘contrato’ tomando uma Seven-Up no ‘Bar Soberano’ com o
amigo Milton Ribeiro, enquanto este tomava uma Brahma. O famoso ator, batendo
nas costas de Archimedes Lombardi, dizia a todos que era o padrinho artístico
do moço de Santo Anastácio.
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A atriz Lucy Rangel com quem Archimedes Lombardi deveria contracenar. |
A
sequência do estupro - Em meados dos anos 60, a maioria dos
jovens de São Paulo havia aderido à contracultura, com muito rock e até mesmo o
uso de drogas como maconha e anfetaminas. Começava-se a falar num tal de LSD
que ninguém sabia direito o que era. Mas Archimedes Lombardi fazia a linha do
rapaz ‘quadrado’, influenciado que era pela igreja que frequentava bastante na
época. No dia aprazado, às nove horas da manhã, Archimedes estava no endereço
dado por Candeias, vestindo terno e gravata, como o diretor lhe pedira.
Candeias então explicou a sequência a Arquimedes que deveria simular que estava
trabalhando, sozinho, numa sala de escritório. Pela porta aberta da sala
entraria uma vendedora de café (a atriz Lucy Rangel) que lhe serviria um
cafezinho. Archimedes deveria parar de teclar a Remington e olhar de forma
lânguida e fixa para a moça do café, por quem tinha forte atração. Levantando-se,
Archimedes fecharia a porta por dentro e agarraria Lucy Rangel, tentando
beijá-la na boca e no pescoço. Lucy procuraria escapar mas o forte Archimedes a
dominaria, colocando-a sobre a mesa e tentaria estuprá-la. A câmara de Candeias
iria fechar no rosto da moça, finalizando a sequência. Após ouvir toda a
orientação do diretor, Archimedes disse a ele que não poderia fazer aquela cena
pois suas convicções religiosas não permitiriam. O incrédulo Candeias viu seu
ator pedir licença, se despedir e se retirar do prédio da Rua Conselheiro
Nébias.
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Publicidade de "As Libertinas" e abaixo José Mojica Marins em "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver". |
O
assunto do momento no ‘Bar Soberano’ - Esse fato esdrúxulo tornou-se o
grande assunto do ‘Bar Soberano’, com cada um contando a história à sua maneira.
Em algumas versões dizia-se que Archimedes tentara uma vez fazer a cena, mas no
momento de agarrar e levantar a saia de Lucy Rangel começara a chorar.
Passou-se mais de um mês sem que Archimedes retornasse ao ‘Bar Soberano’ e
quando por lá apareceu, um tanto envergonhado, cada um dos frequentadores,
jocosamente, tinha uma proposta de trabalho para Archimedes. ‘Carlão’ queria
Archimedes em seu filme de estreia “As Libertinas” e ‘Zé do Caixão’ convidou
Archimedes para atuar em “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver”. Até o discreto
Walter Hugo Khouri falou a Archimedes que tinha um papel para ele em “Corpo
Ardente”, seu próximo filme. Objetivo mesmo foi Polo Galante que disse a
Archimedes: “Você como ator vai dar um ótimo gráfico!” Em seguida Galante encomendou
a Archimedes alguns impressos para sua produtora.
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Roberto Duval (acima) e Átila Iório. |
Homenzarrão
de voz suave e melíflua - Archimedes seguiu o
sábio conselho de Antônio Polo Galante e decidiu então abandonar sua carreira
de ator dedicando-se apenas ao ramo gráfico. Dentro de pouco tempo diversas
empresas como a Embrafilmes, a Polifilmes, a Cinedistri e outras encomendavam
trabalhos gráficos a Archimedes. “A Margem” tornou-se num clássico do cinema
brasileiro e Candeias um dos mais prestigiados diretores do 'Cinema da Boca'.
Archimedes que se tornara empresário do ramo gráfico atendeu às produtoras por
mais de 20 anos, fazendo novos amigos como Sérgio Reis, David Cardoso e outros.
O caso de amor de Archimedes com o cinema dura até hoje, quase 50 anos depois
da malfadada experiência como ator, o que foi uma pena. Com seu corpanzil
incompatível com sua voz suave e melíflua, certamente Archimedes Lombardi
estaria hoje entre os grandes homens maus do cinema nacional, ao lado de Átila
Iório, Roberto Duval e claro, seu ídolo e amigo Milton Ribeiro,
o eterno Capitão Galdino Ferreira.
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Archimedes Lombardi com os amigos Anselmo Duarte, Milton Gonçalves, Antonio Leão e Carlos Miranda, o Vigilante Rodoviário. |
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Archimedes em versão cowboy e assistindo a um de seus westerns favoritos. |
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Archimedes e Antônio Leão visitando Carlos Miranda em sua casa em Águas da Prata; abaixo Archimedes em foto publicada no jornal Folha de S. Paulo em reportagem de página; Archimedes e um dos muitos prêmios já recebido por sua dedicação ao cinema. |
E o amigo Archimedes continua até hoje sendo um ótimo gráfico !! A carreira de ator foi muito curta ! Abraço !!
ResponderExcluirOlá, Darci!
ResponderExcluirMuito interessante esse trecho da história do Archimedes! É muito difícil alguém ter a coragem que ele teve, mas eu sinceramente admiro esse tipo cada dia mais raro de atitude. Cada vez mais as pessoas acham que o importante é ser celebridade, sem se importar com os meios. Creio que o melhor é se sentir realmente bem fazendo o que se gosta e com alguma sorte obter reconhecimento e notoriedade pelas qualidades. Também tenho apreço pela ideia das exibições públicas de filmes raros que ele promove. Tenho quase nada, guardadas as proporções, penso nesse tipo de coisa.
Ah, os meus parabéns pelas tantas visitas do Westerncinemania. É um blog obrigatório para os cinéfilos.
Abraço!
Olá, Vinicius - Já disse e repito, elogio seu é meio assim como uma medalha. Archimedes é uma pessoa única e sua simplicidade é emocionante. E as pessoas citadas como Carlão Bierrenbach, Anselmo Duarte, Sergio Reis, Carlos Miranda e outras sempre demonstraram uma enorme consideração com o Archimedes, apesar de ele não ter seguido a carreira de ator. O colecionador Arquimedes é responsável por encontrar raridades antes que ela virem vassoura. Falo dos filmes em 16mm. - Um abraço do Darci
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