9 de novembro de 2024

TERRA SAGRADA (THE TALL TEXAN)

 

        Encontrar uma valiosa pepita de ouro é motivo de alegria e este western é como achar uma pequena pedra preciosa após garimpar na aridez artística que é a maioria dos faroestes de baixo orçamento, procura que pode resultar em agradáveis surpresas. “Terra Sagrada” (The Tall Texan), 1953, é um desses casos. Certo que os nomes de Lee J. Cobb e Marie Windsor formam uma boa recomendação e o filme ser dirigido pelo quase desconhecido Elmo Williams desperta curiosidade. “Matar ou Morrer” (High Noon), 1952, dispensa comentários e fãs do gênero o reputam como um dos melhores westerns de todos os tempos, sendo do conhecimento dos cinéfilos que esse clássico, depois de pronto, não agradou ao produtor Stanley Kramer quando da exibição privada. Coube então ao editor Elmo Williams fazer nova edição dando ao filme outra dinâmica. O trabalho de Williams foi premiado em 1953 com o Oscar de Melhor Edição e nesse mesmo ano ele decidiu se aventurar pela direção. A Lippert Production financiou “The Tall Texan” que foi rodado inteiramente no Novo México em oito dias e, claro, teve a edição feita pelo próprio Elmo Williams. Além de Lee J. Cobb, estão no elenco Luther Adler e Lloyd Bridges, atores que aceitaram receber baixos salários em razão de estarem semidesempregados sob investigação do HUAC, o comitê de atividades antiamericanas, suspeitos de simpatia pelo comunismo. Lloyd Bridges ainda saboreava o enorme sucesso alcançado por “Matar ou Morrer”, no qual tivera destacada participação e Lee J. Cobb, um ano depois, entraria para a galeria dos maiores vilões do cinema por sua impressionante atuação em “Sindicato de Ladrões” (On the Waterfront).

 

        Um carroção com seis pessoas a bordo passa pelo lugarejo de nome Gila e se dirige ao sudeste dos Estados Unidos quando encontram um índio com uma pepita de ouro. O índio indica que a pedra veio de uma região habitada pelos nativos ‘membraños’, o que desperta o interesse de todos os viajantes. São eles: Laura Thompson (Marie Windsor) e o marido Jerome Niblett (Dean Train), o capitão navegador Theodore Bess (Lee J. Cobb) e o xerife Chadborune (Samuel Herrick). O xerife leva algemado Ben Trask (Lloyd Bridges), acusado de ter assassinado o próprio irmão e que será entregue às autoridades de El Paso para ser julgado. Carney (Syd Saylor) é o cocheiro do carroção e como os demais concorda em se desviar até o território dos índios membraños. No caminho são atacados por comanches e Jerome é morto, mas mesmo assim, obcecados pela possibilidade de encontrar ouro, prosseguem na viagem, quando encontram o comerciante ambulante Josh Tinnen (Luther Adler), que também é tomado pela cobiça. Os índios membraños não impedem a passagem do brancos por seu território, mas tomam-lhes as armas e Ben Trask, que é o único a falar o idioma dos nativos avisa que não devem entrar no cemitério dos membraños, local sagrado para eles e onde se encontra o veio principal de ouro. Porém a ambição já havia dominado inteiramente o grupo, exceto Ben Trask e os homens, um a um, vão morrendo sob as flechas indígenas. Somente Ben Trask e Laura conseguem escapar.

O grupo na desconfortável viagem: Lloyd Bridges, Dean Train, Marie Windsor
e Samuel Herrick; abaixo Lloyd Bridges e Lee J. Cobb

         Desde “Ouro e Maldição” (Greed), 1924, passando por “O Tesouro de Sierra Madre”, (1948) e “Escravos da Ambição” (Lust for Gold), 1949, Hollywood produziu filmes sobre a cobiça provocada pelo ouro e haveria ainda “O Ouro de Mackenna” (Mackenna’s Gold), 1969. “Terra Sagrada” retoma o tema e em seus 84 minutos de duração mostra que a ganância é capaz de dominar o ser humano expondo-o mesmo ao risco de morte. Do grupo de seis pessoas apenas o suposto fora-da-lei Ben Trask não se deixa tomar pela cobiça uma vez que seu intuito é provar que é inocente da acusação que o levaria a El Paso. Laura Thompson é, dentre o grupo, a mais ávida por enriquecer, razão maior de sua vida e ao se envolver amorosamente com Ben Trask, muda seu procedimento. A história de “Terra Sagrada” permite que o casal sobreviva, ele por sua índole e Laura por se redimir e perceber que o amor é um bem mais valioso que a riqueza, tudo sem a pieguice característica de Hollywood. Para um western, “Terra Sagrada” tem pouca ação pois o que mais interessa é o estudo psicológico de cada um dos personagens e a transformação pela qual cada um passa: a cupidez do comerciante Josh Tinnen e do simplório Carney; o xerife hesitante entre enriquecer e cumprir seu trabalho de conduzir o prisioneiro; o capitão Theodore, de passado obscuro, que assedia Laura e no clímax do confronto com os índios age altruisticamente pois sabe que não terá chance de ter ouro e nem o amor de Laura.

Marie Windsor com Lee J. Cobb e com Sud Saylor;
Samuel Herrick e Lloyd Bridges

        O carroção com diferentes personalidades que se revelam através da viagem lembra “No Tempo das Diligências” (Stagecoach), 1939, não faltando sequer o fora-da-lei (Ben Trask) que como Ringo Kid se apaixona por Dallas naquela obra-prima de John Ford. E se Laura Thompson não é uma adorável prostituta como Dallas, seu temperamento forte se impõe aos homens do grupo, algo pouco comum aos westerns. “Terra Sagrada” é um daqueles filmes que comprova que um grande orçamento não é suficiente para se realizar um bom filme e com isso criou a expectativa (não confirmada) que Elmo Williams entraria para o rol dos melhores diretores. Não há um único momento de desinteresse neste western sombrio com ótimos diálogos que devem ser creditados a Elizabeth Reinhardt pois o próprio Elmo Williams afirmou que ao mostrar o roteiro original aos atores, numa sexta-feira, todos o acharam insípido. O roteiro foi enviado a Elizabeth Reinhardt que adicionou diálogos que modificaram esplendidamente, o roteiro, devolvido na segunda-feira quando se iniciaram as filmagens. Exemplar é a frase de Laura Thompson que diz: “Ninguém deveria dar ordens a qualquer pessoa ao seu redor, ao menos que seja o dono dele, mas penso que a guerra (de secessão) resolveu essa questão”, ou quando a mesma Laura afirma que mesmo sendo mulher faz questão absoluta de ser ouvida nas decisões daquele grupo. E há a ótima sequência do ataque comanche ao carroção, a surra que o capitão Thedore dá em Josh Tinnen, surra aplicada com uma cascavel morta, e o ataque final dos índios em meio às rochas, tudo editado economicamente, no que William era mestre. Some-se a isso a surpreendente ótima atuação de Lloyd Bridges e do contido Lee J. Cobb, enquanto Luther Adler não perde o hábito de tentar roubar todas as cenas. Mas quem domina o filme é a excelente Marie Windsor, belissimamente fotografada e exalando sensualidade em meio àquele grupo de homens cegos pela cobiça.

Acima Luther Adler, Syd Saylor, Lee J. Cobb, Samuel Herrick e
Lloyd Bridges; no centro Luther Adler e Lee J. Cobb;
abaixo Marie Windsor e Lloyd Bridges

Acime L. J. Cobb, Marie Windsor e Lloyd Bridges;
Lloyd Bridges e Marie Windsor

O produtor Robert L. Lippert à esquerda;
Elmo Williams e o Oscar recebido por "Matar ou Morrer"


6 de novembro de 2024

CROOKED RIVER (RIO TORTO)

        Nos estertores dos B-Westerns, ainda havia produtores que investiam naqueles filmes de reduzido orçamento e destinados a um público menos exigente formado principalmente por crianças, adolescentes e adultos nostálgicos. Um deles foi Robert L. Lippert que no ano de 1950 contratou o diretor Thomas Carr, uma equipe de técnicos e reuniu um grupo de atores que, sempre em Iverson Ranch, filmaram seis pequenos westerns no tempo recorde de quatro semanas. Isso mesmo. Em um mês foram produzidos seis B-Westerns, sendo que o último deles teve o título “Crooked River”, possivelmente aqui exibido como “Rio Torto”. Como os elencos eram os mesmos em todos esses faroestes, o mocinho era sempre James ‘Shamrock’ Ellison, acompanhado por Russell ‘Lucky’ Hayden. Tanto Ellison como Hayden haviam sido, em diferentes períodos, sidekicks de Hopalong Cassidy. E em toda esta série a mocinha é Betty Adams, que mais tarde mudaria seu nome para Julia Adams e depois para o definitivo Julie Adams. Antes de passar para a história do cinema como a inesquecível moça de maiô branco que nada com sensualidade capaz de fazer até o monstro da lagoa negra se apaixonar pelo erotismo com que ela dava braçadas, Julie atuou em alguns westerns produzidos na Poverty Row, até chegar aos faroestes ‘A’ como “E O Sangue Semeou a Terra” (Bend of the River) e “Bando de Renegados” (The Lawless Breed), ambos de 1952 e “Sangue por Sangue” (The Man from the Alamo), 1953, respectivamente ao lado de James Stewart, Rock Hudson e Glenn Ford.

 

        Em “Crooked River” os pais de Jimmy Shamrock Ellison decidem ir para o Sudoeste e no caminho o carroção que os transportava é atacado por quatro bandidos e o casal é morto. Kent (John Cason), um dos bandidos rouba o anel do dedo do pai de Shamrock (George Chesebro) e quando Shamrock ouve tiros e encontra seus pais sem vida decide seguir a trilha que o leva até um esconderijo, uma casa nas montanhas. Nesse local mora Russ Lucky (Russell Hayden) e sua irmã Ann Hayden (Betty/Julie Adams). Lucky é o mentor da quadrilha e abriga os salteadores a contragosto da irmã. Shamrock consegue entrar na casa-esconderijo e convence Lucky a desistir de se envolver com foras da leis. Os bandidos então passam a agir sob as ordens de Deke Gentry (George J. Lewis) que tem sob seu comando uma pequena tropa de malfeitores. Shamrock reúne, com o auxílio do xerife (Raymond Hatton) e Deacon (Fuzzy Knight), um grupo de auxiliares que se defrontam com o bando de Gentry. O que decide a pequena batalha é o uso de uma metralhadora que acaba nas mãos de Shamrock e que com ela liquida o bando de Gentry.

James 'Shamrock' Ellison; Betty (Julie) Adams

         Assim como Julie Adams, James Ellison atuou em filmes importantes e foi ‘Buffalo Bill Cody’ em “Jornadas Heróicas” (The Plainsman), 1936, com Gary Cooper e no terror clássico “A Morta Viva” (I Walked with a Zombie). Contracenou também com a nossa Carmen Miranda em “Entre a Loura e a Morena” (The Gang’s All Here) e diante desses títulos “Crooked River” fica ainda menor. Não se pode esquecer, porém, que outros cowboys famosos de séries de B-Westerns como Johnny Mack Brown, Charles Starrett e Allan ‘Rocky’ Lane também fizeram parte dos elencos de grandes estúdios antes de verem suas cavalgadas e troca de tiros serem exibidos somente nas matinês. James Ellison é convincente como o herói e Julie Adams desde cedo chamava a atenção por sua delicada beleza que não escondia o talento de atriz que possuía. Juntos e com um roteiro que é interessante até se tornar incoerente com a repentina aparição de bandos numerosos que se confrontam, fugindo da história principal. E na falta de outro tipo de identificação os cavaleiros do grupo do lado do bem usam uma bandana branca na cabeça. E justamente devido a essa virada do roteiro é que “Crooked River” fica acima da média dos B-Westerns com a excelente sequência de batalha.

Betty (Julie) Adams; Russell 'Lucky' Hayden

        Na primeira parte há uma subtrama que é o interesse do bandido Kent que assedia e tenta violentar Ann, só não o conseguindo porque providencialmente aparece Shamrock. Russ Lucky passa parte do filme cego quando Kent esfrega uma espécie de soda em seus olhos e mesmo assim Lucky trava uma luta mortal contra o bandido. E chega a ser bizarra a presença de uma metralhadora Gatling, ainda a manivela, perfeitamente manejada por Shamrock. Imagina-se o quanto a garotada deve ter vibrado nos cineminhas de bairros e do interior ao assistir o mocinho colocar os bandidos para correr varrendo a planície com os tiros da metralhadora. Como não podia deixar de ser, o filme faz uso de muitas sequências de arquivo especialmente quando Ellison, que demonstra notória dificuldade para montar seu cavalo, é substituído por cenas de Bob Steele em um antigo western. A produção não fez a menor cerimônia em utilizar essas sequências de arquivo mesmo com Bob Steele tendo 1,60m de altura e Ellison 1,88m e claramente se percebe que o chapéu de Steele é quase duas vezes maior que o de Shamrock. Como diretor, atores principais (inclusive Julie Adams) e coadjuvantes foram os mesmos nos seis filmes da série, assistir “Crooked River” possibilita ter uma idéia de como foi a série toda. E este western tem apenas 52 minutos de duração, ou seja, menos de uma hora de boa diversão.

John Cason e Betty Adams
Acima 'Shamrock' Ellison com a Gatling;
abaixo o grupo de cavaleiros da bandana branca

 


4 de novembro de 2024

VIVA MARIA! (Viva Maria!)

 

         Se houve “Viva Villa!” (1930), “Viva Zapata!” (1952) e até “Viva Cisco Kid!” (1940), por que não “Viva Maria!”, colocando mulheres como líderes de movimento revolucionário? Foi o que imaginaram Louis Malle e Jean-Claude Carrière ao escrever em parceria um roteiro que tem como pano de fundo uma revolução em um certo país da América Central, muito parecido com o México. A estranheza do projeto se deve à filmografia anterior e posterior de Malle, sempre realizando filmes sérios (exceto por “Zazie no Metrô”) e também de Carrière que se tornaria constante colaborador de Luís Buñuel, inclusive no maior êxito de público do espanhol que foi “A Bela da Tarde”. Se alguém dissesse que Malle e Carrière abordariam um filme sobre revolução certamente não seria uma comédia e que até pode ser entendido como sendo do gênero western, igual aos três ‘Vivas’ acima citados e aos muitos westerns-spaghetti-zapata. Um dos mais deliciosos capa-e-espada já feitos foi “O Pirata Sangrento” (The Crimson Pirate), 1952, estrelado por Burt Lancaster, também sobre uma revolução e que se tornou exemplo clássico de escapismo no cinema. “Viva Maria!” poderia então ser classificado como western-escapismo uma vez que revolução sempre foi uma coisa séria, a não ser que seja olhada da maneira que Malle e Carrière pensaram para este filme. Sem esquecer que “Viva Maria!” se enquadra ainda na categoria de musical pois as duas heroínas cantam e dançam para alegria dos espectadores.

 


  Maria Fitzgerald O’Malley (Brigitte Bardot) desde criança ajudava o pai irlandês a explodir locais em nome de alguma causa. Foi assim em Dublin em 1891, em Londres em 1894 e até em Gibraltar em 1901. Numa dessas ações o pai de Maria é morto quando explodia uma ponte, agora em outro continente. Maria cresceu fazendo o que o pai lhe ensinara, sempre em defesa dos oprimidos que era o que mais havia no Novo Mundo. Fugindo das polícias que não lhe davam sossego, Maria se vê em meio a uma troupe circense-vaudeville itinerante que ruma para um país cuja capital é San Miguel. Faz parte do grupo de acrobatas, atiradores de facas e mágicos a cantora-dançarina Maria (Jeanne Moreau), francesa que adota a nova Maria como parceira e as duas passam a ser a atração maior da caravana. Nas andanças por San Miguel assistem aos maus tratos a que são submetidos os peões locais e o sangue irlandês de Maria O’Malley faz com que ela defenda um pobre camponês atirando contra o capataz de Rodriguez (Carlos Lópes Monteczuma), poderoso explorador dos peões. Maria francesa se enamora de Flores (George Hamilton), um líder revolucionário que é baleado e que, antes de falecer, a faz prometer que continuaria sua luta. Rodriguez e seus homens são incapazes de deter as duas Marias que tem a ajuda de toda a troupe e mais dos camponeses oprimidos que as elegem como líderes. Rodriguez pede ajuda ao ditador de San Miguel (José Ángel Espinosa) mas as forças reacionárias são vencidas e após a vitória Maria e Maria retornam a Paris agora encenando novos números que lembram suas aventuras em San Miguel.

 

Maria Bardot e Maria Moreau

  Westerns-comédia sempre existiram sendo que o ponto alto foi atingido por Mel Brooks com seu “Banzé no Oeste” (Blazing Saddles), 1974. Na primeira fase de sua carreira Woody Allen filmou duas comédias, de rebelião e guerra, em diferentes países: “Bananas” (1971) e “A Última Noite de Boris Grushenko” (1974), todos filmes posteriores a “Viva Maria!” que é de 1965. Se este filme de Louis Malle não possui o admirável nonsense típico de Brooks e Allen, até porque as duas protagonistas nunca foram atrizes exatamente engraçadas, é o roteiro quem cria situações divertidas, algumas poucas beirando o absurdo configurando a intenção escapista do filme. “Viva Maria!” se divide em duas partes distintas, sendo a primeira um autêntico musical com canções de George Delerue recebendo letras deliciosas de Malle e Jean-Claude Carrière, sequências em que Bardot e Moreau se mostram afinadas e sensuais, vestidas por modelos criados por Pierre Cardin. A lamentar que a sequência do acidental strip-tease no palco mostrasse tão pouco de Maria e Maria, apenas o que era então permitido. Música e dança dão o tom de musical nessa parte inicial, assim como se viu em “Ardida como Pimenta” (Calamity Jane), 1953, pois na primeira parte de “Viva Maria!” há pouca comicidade. Ao se envolverem em confusões em San Miguel é que “Viva Maria!” se torna filme de ação com toda sorte de zombaria ainda que com menor participação das duas Marias, mas com um roteiro que leva a perguntar onde teriam Malle e Carrière ido buscar inspiração para a interminável série de gags, senão assistindo a comédias e mais comédias, desde as Comedy Capers até chegar aos Três Patetas.

 

Centro direita Brigitte, George Hamilton e Jeanne

  Além de muita música, dança, tiros e explosões, “Viva Maria!” tem espaço para um romance entre Flores e Maria (Moreau) o qual é truncado subitamente com a morte do revolucionário galã, não sem antes acontecer a desconfortável relação dos dois dentro de uma cela, o que não desperta a sensualidade pretendida e possível. Para isso ninguém melhor que Jeanne Moreau. Fica evidente o ciúme de Maria (Bardot) ao perceber a parceira apaixonada, sentimento que se bem desenvolvido daria ainda mais sabor a um filme com forte pitada de feminismo. Não poderia faltar num roteiro de Jean-Claude Carrière o aspecto anticlerical com a ácida crítica à igreja na figura do Padre Superior (Francisco Regueira). A igreja é inicialmente mostrada como submissa ao poderoso senhor das terras e ao ditador de San Miguel e posteriormente o religioso avocando para si o direito de punir as duas revolucionárias que se tornam importantes demais representando uma ameaça para a própria igreja. Padres se vestem como se fossem membros de uma seita odiosa que lembra a Ku Klux Klan não faltando sequer a cãmara de tortura medieval para extrair uma confisão de Maria e Maria. A irreverência se completa quando o Padre Superior literalmente perde a cabeça após uma granada explodir na touca de seu hábito, isto depois de tentar se aproximar dos vencedores, nova estocada no clericlarismo. Se a primeira parte é um encanto visual e musical, a segunda une o surreal com o cômico em brilhante escapismo.

 

George Hamilton e Jeanne Moreau;
Brigitte e Jeanne com Francisco Regueira;
Francisco Regueira como o Padre Superior e sem a cabeça...

  Reunir as duas mais festejadas atrizes francesas foi uma feliz ideia pois a química entre Bardot e Moreau é perfeita. Brigitte mais coquette e Moreau com seu misterioso magnetismo. Somente Paul Newman e Robert Redford como a dupla de bandidos que acabam naAmérica do Sul viriam a formar dupla assim harmoniosa em “Butch Cassidy” (1969). Na disputa surda que as duas atrizes travam em “Viva Maria!”, La Moreau sai vencedora o que foi comprovado quando ambas competiram ao prêmio Bafta de Melhor atriz de 1965 e Jeanne saiu vencedora. Segundo consta quem interpretaria o líder Flores seria Alain Delon que teria desistido com as filmagens já em andamento. George Hamilton teve sua participação bastante reduzida e não compromete, ele que surpreenderia como ‘Don Diego Vega’ (El Zorro”) na engraçada comédia-paródia “As Duas Faces do Zorro” (The Gay Blade), de 1981. Os destaques entre os coadjuvantes ficam com Carlos López Monteczuma (Rodriguez) e Francisco Regueira, o torpe e cruel Padre Superior. A belíssima fotografia de Henri Decaë completa “Viva Maria!”, excelente diversão injustamente subestimada na filmografia de Louis Malle.

 

Paulette Dubost, Brigitte, Jeanne, Claudio Brooks e Poldo Bendandi;
abaixo José Ángel Espinosa e Carlos Lópes Moctezuma


A maravilhosa Jeanne Moreau; BB e La Moreau no trem 'El Libertador'

26 de outubro de 2024

UM HOMEM SOLITÁRIO (A Man Alone)

 


  Certos westerns como “Um Homem Solitário” (A Man Alone), são raramente lembrados, embora se encaixem na categoria de ‘clássicos do gênero’ e sendo um exemplo desse tipo de subestimação. Primeiro filme dirigido por Ray Milland e curiosamente rodado em 1955, mesmo ano de “O Mensageiro do Diabo” (The Night of the Hunter), único filme dirigido pelo também inglês Charles Laughton, com a diferença que este último é reverenciado como obra-prima. Atuar em faroestes não era uma novidade para Ray Milland que já havia participado de “Califórnia” (California) em 1947, “O Vale da Ambição” (Cooper Canyon) de 1950, e “O Último Baluarte” (Bugles in the Afternoon) de 1952. Tendo feito uma brilhante carreira como ator em Hollywood, aos 50 anos de idade Milland decidiu se aventurar na direção e justamente em um faroeste, produzido pela Republic Pictures. Esse estúdio, mais conhecido pela economia com que produzia séries de B-westerns e seriados para as matinês, estava já há alguns anos produzindo filmes de melhor qualidade. Pelo estúdio de Herbert J. Yates passaram nesse período John Ford, Orson Welles, Nicholas Ray, Lewis Milestone, John Wayne, Joan Crawford, Robert Mitchum, Maureen O’Hara e outros grandes nomes do cinema e foi Yates quem deu a Ray Milland a oportunidade de se tornar diretor. Ou melhor, diretor-ator como neste “Um Homem Solitário” (A Man Alone) seguido por outros filmes que igualmente ele viria a dirigir e estrelar. Como ator Milland atuara com destaque em alguns clássicos do filme-noir e fez de “Um Homem Solitário” um autêntico western-noir.


 

  Vindo do Texas, o pistoleiro Wes Steele (Ray Milland) cavalga pelo deserto do Arizona quando seu cavalo quebra uma perna e é sacrificado por Steele que, após extenuante caminhada se depara com uma diligência que fora assaltada e todos seus ocupantes, inclusive uma menina, foram mortos. Steele solta os cavalos porque sabe que eles conhecem o caminho para a cidade mais próxima e seguindo os animais chega à cidade de Mesa, onde é tomado como o responsável pelo assalto à diligência e por isso alvejado pelo delegado que erra o tiro e acaba morto por Steele que foge pela cidade escura e se esconde no Banco de Mesa. Há uma reunião no banco e de onde está escondido Steele ouve um desentendimento entre os dois donos do banco sobre o assalto à diligência e um dos banqueiros acaba morto com tiros pelas costas. Testemunha também desse assassinato, Steele sai do banco e se esconde na adega de uma residência que é a casa de Gil Corrigan (Ward Bond), o xerife de Mesa, cuja filha Nadine (Mary Murphy) descobre e protege Steele. O xerife Corrigan está acamado por ter contraido febre amarela e cumpre quarentena em seu quarto. Recuperado, Corrigan percebe a presença de Steele na casa e o algema, sendo pressionado pelo moradores de Mesa a enforcar o pretenso assassino. Quem lidera a turba local é Clanton (Lee Van Cleef), capanga de Stanley que é o responsável pelo assalto à diligência e pelo assassinato testemunhado por Steele no Banco de Mesa. Para Stanley veio a calhar a presença de Steele na cidade pois assim nenhuma suspeita dos crimes praticados recaíria sobre ele e sobre os pistoleiros sob suas ordens. Nadine descobre que seu pai recebia dinheiro para proteger Stanley e discute com seu pai. O xerife fica sabendo da trama para incriminar Steele e o ajuda a fugir, o que leva a população a tentar enforcar o xerife que é salvo por Steele que termina por matar os pistoleiros de Stanley, que é preso pelo xerife Corrigan. Ao final Steele decide permanecer em Mesa, ficando com Nadine que por ele se apaixonara.

 

Ray Milland (Wes Steele) no deserto do Arizona;
Ward Bond e Mary Murphy

  Embora inusitado pelos quase dez minutos sem diálogos em seu início, “Um Homem Solitário” conta uma história comum a muitos westerns que é a de alguém injustamente acusado de assassinato e que luta para provar sua inocência. Mas Milland desenvolve com precisão o roteiro criativo e intrincado utilizando técnicas próprias de dramas noir, tanto na iluminação quanto na complexidade dos personagens principais. Tendo filmado em boa parte sequências noturnas, o que poderia ser ruim para um western, Milland dá ao filme a atmosfera de mistério com a corrupção e violência presentes, como se a pequena cidade de Mesa fosse um microcosmo social. Mesmo em seu final aparentemente feliz, Wes Steele diz que permanecerá em Mesa na companhia de Nadine dizendo que “nenhum lugar é melhor ou pior que aquela cidade”, fatalismo típico das personagens do filme noir. O pessimismo é constante como quando o xerife Gil Corrigan diz a Wes Steele que não quer que sua filha se case com alguém sem maior expectativa de vida, frase que poderia ser escrita por Raymond Chandler ou Dashiel Hammett. Após dois dias em Mesa, Wes Steele diz que Mesa “é uma cidade podre, com muitas pessoas podres nela vivendo”. Ray Milland deve ter exigido bastante do cinegrafista Lionel Lindon para obter as imagens sombrias que pretendia, para as quais Lindon demonstrou competência, ele que receberia um Oscar pela fotografia do luminoso “A Volta ao Mundo em 80 Dias” e uma indicação por seu trabalho em “Quero Viver!”, produções respectivamente de 1956 e 1958.

 

Ward Bond e Mary Murphy;
abaixo Raymond Burr e Lee Van Cleef

  Este filme poderia ser chamado de “Um Homem Azarado” porque Wes Steele é daquelas pessoas que atraem a má sorte e por pouco ele não acaba pendurado em uma árvore, vítima das maquinações de Stanley proeminente cidadão de Mesa. Mesmo sendo banqueiro, Stanley usa seus capangas para praticar assaltos que lhe rendam mais dinheiro, aliciando as autoridades locais como o xerife Corrigan e seu delegado (Alan Hale Jr.). E não poderia Wes Steele ter escolhido lugar pior para se esconder que a própria casa de um xerife desonesto, mas então ocorre a primeira reviravolta na história quando a filha de Corrigan se sente atraída pelo forasteiro invasor de sua casa. Mais tarde o próprio xerife decide que deveria se voltar contra o poderoso Stanley, no que ao final é acompanhado por um dos pistoleiros a serviço de Stanley. Além do xerife e de Wes Steele, há também a abordagem psicológica de Nadine Corrigan, jovem cujo pai faz dela uma sonhadora que se guarda para um improvável casamento e que se revolta contra o autoritarismo patriarcal. Mary Murphy com os cabelos tingidos de louro e que em nada lembra o caso de Marlon Brando em “O Selvagem” fica feliz ao final com a permanência de Wes Steele ao seu lado em Mesa. O que não significa exatamente um final feliz uma vez que o xerife Corrigan sabe que terá contas a ajustar com a Justiça por encobrir as práticas criminosas de Stanley. Western sóbrio, tem um único momento de descontração ao ser apresentado o retrato falado de Wes Steele, inteiramente diferente da fisionomia de Ray Milland.

 

Ward Bond e Ray Milland; no centro Mary Murphy e Milland;
Lee Van Cleef e o retrato falado de Wes Steele

  “Um Homem Solitário” possui alguns longos diálogos (exceto por seu início) e há poucas sequências de ação, estas ocorrendo nos momentos adequados num filme de crescente tensão. Os pontos altos deste western são as sequências em que Wes Steele narra sua atribulada trajetória de vida que o fez aderir às armas até chegar a Mesa e, principalmente a tomada de consciência do xerife Corrigan, com Ward Bond em um de seus grandes momentos no cinema, justificando para a filha a razão que o fez trilhar o mau caminho mesmo carregando uma estrela no peito. Ray Milland, por mais que se esforce, parece pouco confortável como cowboy e é impossível não notar que sua camisa permanece impecável mesmo após sua longa cavalgada pelo deserto, depois das tantas perseguições que sofre e da luta brutal contra Raymond Burr. Se não convence como homem do Oeste, Milland transmite a sinceridade e a desesperança com que Wes Steele tenta mostrar sua verdadeira índole. Mary Murphy é uma atriz de limitados recursos dramáticos ao passo que Raymond Burr é sempre impressionante. O quase iniciante Lee Van Cleef e mesmo Burr são menos aproveitados do que poderiam ser. Certamente o escasso reconhecimento obtido por este magnífico western se deva a ter Ray Milland como astro principal vivendo um cowboy, o que é uma injustiça pois “Um Homem Solitário” é um dos melhores faroestes de uma década repleta de grandes filmes do gênero.


Ray Milland como Wes Steele, o homem solitário

20 de outubro de 2024

O JUIZ ENFORCADOR (LAW OF THE LAWLESS)

  


    A.C. Lyles foi um produtor que teve uma estrela na Calçada da Fama de Hollywood e nada mais merecido para quem produziu uma série de 13 westerns, todos com pequeno orçamento, filmados em sempre menos que 15 dias e com elencos recheados de veteranos esquecidos pelos estúdios. Lyles começou no cinema na Paramount, ainda nos anos 20 e ao invés de se aposentar depois de 40 anos de trabalho nos escritórios do estúdio decidiu se tornar produtor. O primeiro filme da série foi “O Juiz Enforcador” (Law of the Lawless), com elenco formado por uma dúzia de artistas que viram cessar seus dias de fama, elenco encabeçado por Dale Robertson e Yvonne De Carlo. Os westerns B da Poverty Row produzidos às dezenas nos anos 30, 40 e início dos anos 50, com John Wayne, Roy Rogers, Rocky Lane, Bill Elliott, Charles Starrett, Tim Holt e outros tinham cronogramas de filmagens com no máximo seis dias, utilizavam muitas sequências de arquivo, seus enredos pouco se diferenciavam uns dos outros e duração por volta de 60 minutos. Esses pequenos westerns exibidos nas matinês foram substituídos por séries melhor produzidas e estreladas por Audie Murphy, Randolph Scott, Rory Calhoun, George Montgomery, Guy Madison e o próprio Dale Robertson, quase todos com hora e meia de duração. Já os westerns da série de Lyles tinham todos 80 minutos ou pouco mais, eram filmados em cores e produção bem cuidada como “O Juiz Enforcador”. Este western B é uma grata surpresa para os fãs de faroestes, comparável mesmo aos melhores da série de Randolph Scott.

 


    Na cadeia de Kansas City o preso Pete Stone (John Agar) aguarda para ser julgado e seu poderoso pai ‘Big’ Tom Stone (Barton MacLane) se movimenta para que o filho saia livre do julgamento. Para isso contrata Rand MacDonald (Kent Taylor) o melhor advogado do Kansas e que jamais perdeu uma causa. Big Stone sabe que está para chegar à cidade o juiz Clem Rogers (Dale Robertson), conhecido como ‘The Hanging Judge’ (juiz enforcador) devido a mandar para a forca assassinos que ele tem que julgar. Big Stone contrata, além do advogado, o pistoleiro Joe Rile (Bruce Cabot) para matar Clem Rogers, isto além de outros pistoleiros que chegam à cidade porque têm contas a acertar com o juiz por discordar de suas sentenças. Clem Rogers decidiu estudar Direito e se tornar juiz depois que seu pai foi morto em um duelo, justamente com Joe Rile. Pete Stone será julgado por ter matado num suposto duelo um vaqueiro cuja esposa mantinha um caso com Pete e é certo que será condenado à morte pois Clem Rogers entende que a única maneira de acabar com a prática dos duelos é condenando quem deles participa e sobrevive. Antes do julgamento o juiz sofre um atentado por parte do grupo de pistoleiros, que são liquidados. Clem recebe apoio da garota de saloon Ellie Irish (Yvonne De Carlo) e conta ainda com a imparcial promotoria no tribunal que será feita pelo xerife Ed Tanner (William Bendix). Ao final do julgamento Pete Stone é condenado à forca, Joe Rile desiste de assassinar Clem Rogers que parte de Kansas City para cumprir sua missão de exterminar com os duelos e consequentemente novas condenações.

 

Dale Robertson (acima); Dale com John Agar

    A história de “O Juiz Enforcador” é de autoria de Steve Fisher, que também escreveu histórias para diversos westerns da série produzida por A.C. Lyles, série toda distribuída pela Paramount. William Claxton dirigiu conduzindo este western que prende o espectador do princípio ao fim, mesmo com poucos momentos de ação e tendo dois quintos do filme passados dentro de uma sala do tribunal. Muito da qualidade de “O Juiz Enforcador” se deve às interpretações dos veteranos atores que, em cada sequência, demonstram o quanto eram bons e mereciam continuar a ser melhor aproveitados. Porém o destaque deste filme fica mesmo com o roteiro que discute temas inusitados, especialmente a filosofia do juiz, ideal que ajudou a civilizar o Velho Oeste. Nos duelos quem sobrevivia era o vencedor, imune a qualquer acusação, o que o livrava de acertar contas com a justiça mas não de vir a ser perseguido por alguém que se julgava mais rápido, como em “O Matador” (The Gunfighter), 1950, de Henry King. Ou ainda da ira de familiares ou amigos do morto em duelo, todos em busca de vingança. O Juiz Clem Rogers discorre sobre o que acontece com a família de quem é morto em duelo, viúva e filhos privados do pai e que encontram dificuldade para sobreviver. Essa teoria correta de acabar com os duelos tão comuns só poderia mesmo ser concebida com a ajuda da Justiça, como mostra “O Juiz Enforcador”.

 

Lon Chaney Jr. e Yvonne De Carlo;
Barton MacLane e William Bendix

    Detém-se ainda o roteiro na discussão do preconceito contra as saloon girls, sinônimo de meretrizes, como foi chamada Ellie Irish pelo advogado de defesa, na tentativa de ter seu depoimento no julgamento desacreditado em contraponto ao testemunho de uma esposa leviana mas vista com respeito pela cidade. É ainda o juiz enforcador Clem Rogers quem demonstra que a viúva Ellie, cujo marido foi morto em duelo, não teve alternativa para sobreviver senão trabalhar num saloon para cantar, dançar entretendo os frequentadores. Esse arraigado preconceito, infelizmente, sobreviveu ao Velho Oeste, diferentemente dos duelos. E o filme de William Claxton aborda aspectos psicológicos como o do jovem assistente de xerife querendo demonstrar coragem e competência, e sempre obstado pelo veterano homem da lei; ou ainda o cansado pistoleiro de aluguel que odeia o poderoso que o paga para matar mas aceita o trabalho para poder se aposentar e ter um final de vida tranquilo. Sua consciência o leva a alterar todos os planos, inclusive o ambicionado caminho para a paz que quer encontrar.

 

Yvonne De Carlo; Bruce Cabot

    A longa sequência do julgamento excelentemente conduzida chega a ser emocionante como nos melhores filmes de tribunal, com reviravoltas pelas falas do promotor rebatidas pelo advogado de defesa, mais as testemunhas e, por fim, com a orientação do juiz para o corpo de jurados julgar. Toda essa sequência, sem ação, apenas com as falas dos personagens, leva a pensar como, em tão poucos dias de filmagem, o diretor Claxton extraiu as ótimas performances para as quais seriam necessário muitos ensaios. Os destaques do elenco são Barton MacLane, Bruce Cabot, Richard Arlen e Lon Chaney Jr., este como um brutamontes a serviço do ricaço Big Stone. John Agar fica abaixo dos citados. A excelente Yvonne De Carlo enche a tela com sua beleza e exuberância, enquanto a Dale Robertson falta maior expressividade, mesmo considerando que um juiz deve ser alguém contido no comportamento. Ainda no elenco em pequenos papeis Don ‘Red’ Barry, Jody McCrea (filho de Joel McCrea), Rod Lauren e um bastante jovem Roy Jenson. Dale Robertson substituiu Rory Calhoun, inicialmente escalado como Clem Rogers porque Calhoun adoeceu quando “Law of the Lawless” teve início. Robertson havia deixado a série de TV “Tales of Wells Fargo”, que estrelou por seis temporadas. E Yvonne De Carlo a seguir passaria a viver a adorável ‘Lily Monster’ na série de TV “Os Monstros”. “O Juiz Enforcador” é considerado o melhor dos 13 westerns que A.C. Lyles produziu entre 1964 e 1968. Imperdível também para rever a pleiade de veteranos.

 

Sequências do julgamento: acima Kent Taylor; Barton
MacLane e Laurel Goodwin; no centro Barton
MacLane e John Agar; John Agar e Dale
Robertson; abaixo o final do julgamento.

Dale Robertson como o juiz enforcador em ação;
Dale surpreendido no banho por Yvonne De Carlo


15 de outubro de 2024

QUANDO EXPLODE A VINGANÇA (Giù la Testa/A Fistful of Dynamite/Duck, you Sucker)

 


  Sergio Leone é uma quase unanimidade quando se trata de westerns e o ‘quase’ é em razão do último faroeste que dirigiu que foi “Quando Explode a Vingança” (Giu la Testa/A Fistful of Dynamite/Duck, you Sucker), 1972. Com a Trilogia dos Dólares, seguida por “Era uma Vez no Oeste” (C’Era una Volta il West), Leone atingiu o panteão dos grandes diretores do gênero, ao lado de Ford, Hawks, Mann, Peckinpah e Sturges. Sucesso de crítica e público, esses quatro westerns abriram as portas (e os cofres) dos maiores estúdios e produtores possibilitando a ele voos mais altos e, por que não, uma nova trilogia, muito mais ambiciosa que a bem sucedida ‘dos Dólares’. E esta segunda trilogia imaginada por Leone já havia sido iniciada justamente com “Era uma Vez no Oeste”, e seria seguida por “Era uma Vez a Revolução” e fechada ainda mais pretensiosamente com “Era uma Vez na América”, sendo que com este último filme Leone atingiu, 12 anos mais tarde, o ápice de sua carreira como diretor. O que era para ser chamado “Era uma Vez a Revolução” começou de forma acidentada desde o início do projeto, com o roteiro feito por Luciano Vincenzoni, Sergio Donati e o próprio Sergio Leone, gerando diversos desentendimentos, a começar pelo título que foi alterado para “Giù la Testa”,.

 


  O roteiro foi gestado durante muito tempo até ser considerado ideal e pronto para ser filmado, mas por outro diretor porque a essa altura Leone desistira de dirigir “Giu la Testa”, que no Brasil seria chamado de “Quando Explode a Vingança”. A United Artists, que iria produzir o filme, indicou Peter Bogdanovich para dirigi-lo, isto apesar de Bogdanovich ter, até então, dirigido somente um filme, que foi “Na Mira da Morte” (Target) e ser mais conhecido pelo documentário “Directed by John Ford” que fez entrevistando longamente o veterano diretor que era avesso a entrevistas. A parceria Leone-Bogdanovich tinha tudo para não dar certo, o que só a diretoria da United Artists não percebeu, e em menos de um mês o norte-americano abandonou o projeto. Nos planos de Leone estava Eli Wallach que chegou a um acordo verbal com Leone para atuar nesse novo filme, ficando com um dos dois principais papéis, porém a United Artists tinha Rod Steiger sobre contrato com o ator devendo um filme ao estúdio. Steiger vinha de premiada atuação em “No Calor da Noite” (In the Heat of the Night), pela qual recebeu um Oscar de Melhor Ator e a United Artists contratou James Coburn para completar a dupla de principais intérpretes do filme que seria dirigido por Giancarlo Santi. Quando Coburn e Steiger souberam que o diretor não seria o muito afamado criador de “Era uma Vez no Oeste”, se recusaram a atuar dirigidos por outro diretor que não fosse Leone e este não teve alternativa a não ser assumir a direção de “Giù la Testa”. E com certa alegria porque desde que vira James Coburn como o lacônico cowboy que duela atirando uma faca no oponente (Robert J. Wilke) em “Sete Homens e um Destino” (The Magnificent Seven), 1960, Leone nunca o esquecera. Tanto que Coburn era o nome preferido pelo diretor para interpretar o taciturno ‘Blondie’ em “Por um Punhado de Dólares” (Per un Pugno di Dollari). Como a pedida de Coburn havia sido alta demais, o pouco conhecido Clint Eastwood aceitou a oferta e depois do encontro com Leone se tornou ídolo mundial. Por outro lado Leone sabia bem que trabalhar com Steiger não seria tarefa fácil, conhecido que era por ser ator tão incontrolável quando Marlon Brando, aliás seu ex-colega de Actors’ Studio. Pouco tempo antes Rod Steiger acabara de abandonar as filmagens de “Guerra e Paz” em que interpretava Napoleão Bonaparte, por não se entender com o diretor russo Serguei Bondartchuk.

 

Acima James Coburn com Robert J. Wilke;
no centro Coburn atirando sua faca;
Rod Steiger em "No Calor da Noite".

  “Quando Explode a Vingança” se passa em 1913, já em plena revolução mexicana e começa com o bandido Juan Miranda (Rod Steiger) e sua enorme família de salteadores de estrada em ação dominando uma diligência que transporta um grupo de burgueses. Concretizado o assalto, Miranda vê chegar Sean Mallory (James Coburn) pilotando uma motocicleta. Mallory é perito no uso de explosivos e Miranda percebe que ele pode ser útil ao seu intento de, com seu bando familiar, assaltar o banco de Mesa Verde. Mallory trabalha para uma empresa mineradora alemã e após relutar, aceita a parceria com Miranda, trabalho muito mais rendoso que explodir rochas no deserto. O assalto ao banco é bem sucedido, mas o que Miranda não sabia é que todo dinheiro havia sido transferido para a Cidade do México e que o local, fortemente guarnecido por guardas armados, havia sido transformado em cadeia onde se encontravam 150 presos políticos. Involuntariamente Miranda os liberta e se torna herói para os revoltosos que o carregam nos ombros, ao mesmo tempo que passa a ser considerado líder revolucionário. Mallory, um irlandês que pertencera ao Exército Republicano Irlandês (IRA) e fugira para o México para escapar de ser preso pelos ingleses, nutre simpatia pela causa revolucionária mexicana pois vê semelhanças com o que acontece em seu país e termina por se envolver com a revolução, o mesmo ocorrendo com Miranda que vê toda sua família ser vítima das forças do governador mexicano. Perseguidos como terroristas, Miranda e Mallory seguem praticando vários atos que causam baixas às forças governistas, a maior delas quando dinamitam um trem que transporta um batalhão inteiro, evento em que Mallory morre, encerrando a parceria com Miranda.

 

Sean Mallory com sua motocicleta Indian;
Juan Miranda e família, no centro;
Abaixo Mallory carregado de dinamite

  O título original “Giù la Testa” significa ‘abaixe a cabeça’ e nos Estados Unidos recebeu o título “Duck, you Sucker” (Abaixe-se, Idiota). Já na Inglaterra “Giù la Testa” foi chamado de “A Fistful of Dynamite” (Um Punhado de Dinamite), título muito mais adequado que o brasileiro “Quando Explode a Vingança” (ou o de Portugal que foi “Aguenta-te, Canalha!”) e isto porque a história não gira em torno de nenhuma vingança e porque o que não falta neste filme são explosões. Mas que não se pense que Leone dirigiu mais um daqueles muitos filmes em que o destaque fica para os cansativos efeitos visuais e os ensurdecedores efeitos sonoros. O roteiro é bem concebido narrando como o humilde mexicano Juan Miranda (Rod Steiger) , homem que não se interessa pela revolução que está por todos os lados no México, aos poucos é tomado pela consciência política, isto ao passo que o politizado irlandês Sean Mallory (James Coburn), ex-ativista do IRA, tenta fugir de seu passado mas, assim como Miranda, é envolvido pelos acontecimentos. Entre uma explosão e outra, sempre providenciadas por Mallory e entre as centenas de tiros das metralhadoras do irlandês e de Miranda, nos quais são mortos incontáveis soldados do exército governista, “Quando Explode a Vingança” ressalta o quadro cruel de uma revolução com execuções por toda parte e mostra a amizade que brota entre os inicialmente desafetos Mallory e Miranda. Em sua primeira parte, o tom imprimido se aproxima da comicidade nas disputas entre os dois antepondo a violência de Miranda com o cinismo de Mallory que lembra que pode refazer o mapa do local com seu domínio da nitroglicerina e da dinamite. E é nesse início do filme que Leone narra sua visão social.

 

Sean Mallory e Juan Miranda

  No interior da luxuosa diligência assaltada por Miranda e sua família, encontra-se um grupo de burgueses. O condutor da diligência, por puro sadismo permite que Juan Miranda entre na diligência para empestear o perfumado ambiente onde estão acomodados, em caríssimas poltronas de couro, quatro homens exalando arrogância, um deles um padre e mais uma mulher tão ou mais soberba que os quatro homens. Ao ver Miranda todos demonstram impiedosamente o desprezo que nutrem por quem é pobre, para eles seres que em nada se diferenciam dos animais. Miranda aceita os insultos, até concordando com as ofensas que lhe imputam. Quando a presunçosa senhora fala ela diz que ‘essa espécie de gente deve viver na promiscuidade, todos num só quarto, como ratos, machos e fêmeas amontoados e quando a luz se apaga, desaparecem as inibições e é a vez de tocar mães, filhas, irmãs, sem distinção’. Ela diz isso enquanto seus lábios chupam sensualmente uma cereja e seus olhos brilham lubricamente, o que não passa despercebido por Miranda. A diligência estaciona num posto abandonado, onde a aguarda a família de Miranda que mata o condutor e o segurança. Um dos quatro homens tenta puxar uma arma e é morto por um dos filhos de Juan que ordena que os demais homens se dispam, ficando nus, inclusive o padre (cuja fisionomia lembra o Papa Pio XII). Miranda encaminha a mulher para um local afastado não para estuprá-la pois ele percebeu o quanto ela era uma mulher carente por sexo. Ela sem opor maior resistência aceita o contato carnal com Miranda que a satisfaz. Leone fecha a câmara nos olhos da afetada burguesa e com isso expressa mais que se mostrasse o coito mais explicitamente. Luís Buñuel não faria melhor.

 

Maria Monti como a burguesa satisfeita por Juan Miranda;
abaixo parte dos passageiros da luxuosa diligência

  A parceria entre o mexicano e o irlandês se consolida, apesar das diferenças entre os dois. Juan diz que a pátria para ele é só a sua família e que só luta por ela e por mais ninguém. Mesmo não politizado, Miranda sabe que os teóricos das revoluções não vão à luta, deixando isso para o povo que ao final de uma revolução continuará sofrendo da mesma forma. Para o mexicano, o modo de corrigir as desigualdades sociais é assaltando os que possuem riqueza. Mallory que quer se afastar das questões sociais, cinicamente diz que que a única ideologia que existe é a da dinamite, mas carrega consigo “O Patriotismo”, livro de autoria do russo Bakunin. Em flashbacks Mallory surge como jovem em seus tempos como ativista do Exército Republicano Irlandês, quando foi traído por Sean Nolan (David Warbeck), um amigo inseparável, que Mallory mata no momento em que, denunciado por Nolan sob tortura, estava para ser preso, matando também dois policiais que estão com Nolan. Mallory fugiu então para o México, mas o passado o atormenta, recorrendo ao álcool para esquecer. Ardilosamente Miranda consegue fazer com que o irlandês conceba assaltar o banco de Mesa Verde, sonho antigo do simplório bandido mexicano. Sean Mallory com Juan Miranda e a família deste chegam a Mesa Verde, onde o banco havia se transformado em cadeia e, lembrando “Tempos Modernos” (Modern Times) de Chaplin, Miranda se torna um constrangido herói revolucionário. A dupla passa a integrar uma célula revolucionária dirigida pelo Dr. Villegas (Romulo Valli) e a amizade entre ‘Juan e John’, ou ‘Johnny e Johnny’, como os dois costumam se tratar, leva Mallory a salvar o amigo que está diante de um pelotão de fuzilamento após ser capturado e ter toda sua família assassinada, ou seja, ver que está sozinho no mundo, exceto pelo parceiro irlandês.

 

O banco de Mesa Verde sendo dinamitado;
Juan Miranda se tornando herói;
Sean Mallory ainda na Irlanda

  Lembrado pelas muitas explosões, “Quando Explode a Vingança” tem seu trepidante epílogo durante a tentativa de fuga de Miranda e Mallory que tencionam sair do México, em direção aos Estados Unidos, num trem que conduz, além do governador Jaime (Franco Graziosi), o coronel Gunther Ruiz (Antoine Saint-John), incansável perseguidor da dupla. Miranda vinga-se do governador, a quem considera responsável pela morte de toda sua família, matando-o. O ataque ao trem é determinado pelo Dr. Villegas que, preso e também sob tortura, denuncia todo o comando da célula revolucionária. Lembrando seu passado, Mallory escolhe o Dr. Villegas para juntos colidirem uma locomotiva contra o trem que leva o coronel Gunther e sua tropa. Villegas comete suicídio durante a colisão e o trem é destruído, não sem antes o coronel Gunther escapar do trem em chamas e atirar contra Mallory. Miranda então dispara sua metralhadora contra o coronel e quando busca socorro para o amigo ferido vê à distância que Mallory provoca uma proposital explosão na qual sucumbe. Sergio Leone era admirador de “Pierrot Le Fou” (O Demônio das Onze Horas), de Jean-Luc Godard, a quem presta homenagem com a morte de Mallory. “Quando Explode a Vingança” se encerra com o amargurado Juan Miranda desaparecendo sob o título “Duck, you Sucker”.

 

Mallory e Miranda em ação;
abaixo execução em massa de revolucionários

  Conscientemente ou não, Sergio Leone criou o personagem ‘Juan Miranda’ como seu alter-ego. Através do bandido mexicano Leone tencionou mostrar o que pensava da política e, por que não, dos tantos spaghetti-zapata filmados por diretores socialistas como Damiano Damiani e Sergio Corbucci. Em todos os spaghetti-zapata desses diretores emergiam heróis revolucionários, enquanto em “Quando Explode a Vingança” nem Miranda e nem Mallory almejam heroismo ou liderança. São somente envolvidos pelas circunstâncias e nessa revolução perdem a vida (Mallory) e a família (Miranda) corroborando o que o mexicano dissera sobre o povo nesses eventos que se tornam históricos. Os excessivos maneirismos de Rod Steiger como Juan Miranda não deixam de retratar o próprio comportamento de Leone como diretor, maneirismos que quase sempre resultam em magníficas sequências, muitas delas antológicas mesmo, como quando Miranda assiste a um fuzilamento de revolucionários pela fresta que fez num dos muitos cartazes do governador Jaime, cujos olhos passam a ser os olhos de Juan Miranda. Porém a técnica leonesca de intermináveis close-ups torna o filme arrastado, além de alongá-lo em demasia, mais ainda com os flashbacks românticos na Irlanda em camera lenta, com Mallory e Nolan dividindo uma namorada a la “Jules et Jim” e “Butch Cassidy”. Leone pagou muitos de seus pecados (se é que os tinha), dirigindo Rod Steiger. Para cada sequência Steiger se exercitava através do ‘Método’ aprendido no Actors’s Studio, o que quase levou Leone à loucura. Tanto que em certo momento diretor e ator se indispuseram de tal forma que Leone não mais falava com Steiger, usando um assistente para se comunicar com ele. Ao contrário, com James Coburn imperou a paz e a amizade, até porque Coburn em uma entrevista relatou que Leone lhe dissera: “Rod Steiger parece querer engolir a lente da câmera. Seja você mesmo James, tranquilo e natural pois assim são os melhores atores”. O overacting de Steiger é compensado pelo estilo descontraído de Coburn. Romulo Valli tem o terceiro personagem importante na história e faz bem o enigmático médico revolucionário. Antoine Saint-James não consegue a expressividade necessária para um coronel inclemente, assim como Franco Graziosi, o governador. Essas escolhas erradas chamam a atenção porque Leone era mestre em encontrar tipos carismáticos perfeitos e marcantes.

 

Acima Rod Steiger e James Coburn em pose publicitária;
o cartaz com o governador e os olhos de Miranda,
o Dr. Villegas; coronel Gunther Ruiz;
abaixo Mallory, Nolan e a namorada na Irlanda

  “Quando Explode a Vingança” teve uma dispendiosa produção que rendeu excelente bilheteria na Itália, boas bilheterias na Europa em geral mas não foi bem quando lançado nos Estados Unidos, apesar dos nomes de Rod Steiger e James Coburn. Diante do volume de dinheiro gasto, o filme deixou a desejar como na sequência do choque dos trens com uma mal disfarçada miniaturização. Desta vez a cinematografia ficou a cargo de Giuseppe Ruzzolini, substituindo o ótimo Tonino Delli Colli, preferido de Leone, para quem faria a excepcional fotografia de “Era uma Vez na América”. O belíssimo tema principal da trilha musical de “Quando Explode a Vingança” é ouvido em boa parte do filme, trilha infelizmente completada por composições menos inspiradas de Ennio Morricone, uma delas o tema de Sean que melhor ficaria em algum western farsesco. Sergio Leone não chega a decepcionar com “Quando Explode a Vingança”, longe disso, mas esta aventura épica deixa saudade dos westerns que ele havia feito antes e mais ainda daquele que seria seu último filme: “Era uma Vez na América”.


Sergio Leone; abaixo Leone, Steiger e Coburn

8 de outubro de 2024

VIVA ZAPATA!

Elia Kazan era já uma celebridade no meio artístico quando trocou o teatro pelo cinema. Fundador do Actors Studio, Kazan causou impacto com “A Streetcar Named Desire”, na Broadway, dirigindo um jovem chamado Marlon Brando. Depois de alguns filmes com profundo cunho social, Kazan se interessou por um projeto sobre o revolucionário mexicano Emiliano Zapata, projeto descartado pela MGM por seu evidente caráter político. Quem também se interessou por esse planejamento foi John Steinbeck, autor de “Vinhas da Ira” que tanto havia incomodado autoridades que viram no livro e no filme de John Ford um viés comunista. Steinbeck começou a trabalhar no roteiro baseando-se no livro “The Unconquerable Zapata”, escrito por Edgcumb Pinchon em 1941, autor cujos textos haviam servido de base para o roteiro de “Viva Villa!”, filme de 1934, também sobre a revolução mexicana. Chegava então o final da década de 40 e tanto Steinbeck quanto Kazan estavam entre os alvos do Macarthismo que caçava cada vez mais impiedosamente os ‘vermelhos’ do ambiente cultural norte-americano, em especial o meio cinematográfico. Ambos, Kazan e Steinbeck mergulharam em tudo que dizia respeito aos acontecimentos políticos ocorridos no México nas duas primeiras décadas daquele século, com Kazan visitando povoados por onde Zapata passara, definindo mesmo onde seriam as locações em solo mexicano. Esbarrou, no entanto, numa determinação do governo daquele país que, ao receber o roteiro para aprovação, proibiu a filmagem em território mexicano, para não se repetir o que fora feito em outras produções de Hollywood nas quais o povo mexicano era mostrado quase ao ponto da idiotia. Quem também olhava o projeto com desconfiança era o chefão da Fox, Darryl F. Zanuck, que não cessava de palpitar sobre o filme, inclusive impondo o elenco que ele considerava ideal: Zanuck queria Tyrone Power, como Zapata e Jack Palance como Eufemio Zapata. Kazan, cujo conceito estava nas alturas bateu o pé e venceu a parada tendo seu indicado e protegido Marlon Brando como protagonista. “Um Bonde Chamado Desejo” ainda não havia sido lançado nos cinemas mas Brando estava a caminho de se firmar como o principal astro de Hollywood. Tanto que tirou o sono de Zanuck ao exigir cem mil dólares para assinar o contrato para atuar no filme. Zannuck cedeu mais uma vez, porém o big boss da Fox venceu Kazan que queria Julie Harris para o principal papel feminino, que acabou nas mãos da novata Jean Peters que ainda não se tornara a senhora Howard Hughes. Quando Marlon Brando deixou de interpretar Stanley Kowalski em “Um Bonde Chamado Desejo” nos palcos, quem o substituiu foi Anthony Quinn, que Kazan escolheu para ser Eufemio Zapata, o irmão de Emiliano.
Marlon Brando era já conhecido por seu perfeccionismo levado aos extremos, o que demonstrara em sua estréia no cinema como o soldado paraplégico em “Espíritos Indômitos” (The Men), 1950. Para viver Emiliano Zapata, Brando não deixou por menos e quis saber tudo sobre o personagem e mesmo sobre o comportamento dos camponeses mexicanos, não abrindo mão de adotar um sotaque o mais próximo possível de como seria o de Zapata. As filmagens tiveram lugar no Texas, próximo à fronteira, que a produção conseguiu transformar num autêntico pedaço rural do México. Kazan instruiu o cinegrafista Joe MacDonald para conseguir imagens parecidas com aquelas que o russo Sergei M. Eisenstein realizara para o lendário “Que Viva México!”, em 1932. Sob a mira do HUAC (Comitê de Atividades Antiamericanas) e com o senador Joseph McCarthy atemorizando toda Hollywood, John Steinbeck e Elia Kazan entenderam que o filme teria que suavizar a tendência política da luta de Zapata sem esquecer de ressaltar o valor da democracia norte-americana. Esse fato comprometeu a exatidão histórica ao apresentar o revolucionário como um homem simples e iletrado que se torna líder graças à sua própria consciência, à capacidade de agitador, de amor pelo seu povo e desapego ao poder, o que não é de todo inverdade, ficando para o ambíguo personagem Fernando Aguirre a caracterização como agente comunista ou anarquista. Mesmo com a atenuação dos aspectos políticos que Steinbeck-Kazan tencionavam dar ao filme, subliminarmente prevalece essa intenção e “Viva Zapata!” resiste como filme de ção que mostra Zapata como homem que tem por filosofia e ideologia fazer o bem para seu povo.
Acima John Steinbeck e Elia Kazan; abaixo os irmãos
Eufemio e Emiliano Zapata e o corpo de Zapata.

Elia Kazan não havia ainda filmado um western e nem mesmo após “Viva Zapata!” ele voltaria a visitar o gênero. Ainda que não seja o que se pode chamar de faroeste puro, a este filme de Kazan (sem esquecer que 20 anos antes houve “Viva Villa!”), seguiram-se inúmeros westerns que tiveram a revolução mexicana como pano de fundo. Uma pena, porque, mesmo sendo conhecidas todas as dificuldades que cercaram “Viva Zapata!”, Kazan realizou um excelente filme, que somente não foi melhor porque confuso em alguns momentos dando a impressão que sequências foram suprimidas, como quando Zapata se torna ‘presidente’ do México, ou quando da passagem de Fernando Aguirre de amigo e mentor de Emiliano para o lado mexicano, com farda e tudo. O excesso de monólogos com tendência ideológica que tornou o filme muito discursivo poderia ser também evitado. E o final foi por demais apressado com Zapata mesmo sabendo que seria alvo de uma armadilha, comparece ao encontro com um general carranzista, onde seria assassinado. Porém o ritmo do filme se mantém durante suas quase duas horas, com sequências esplêndidamente filmadas, destacando-se o confronto tenso de Zapata com o ditador Porfírio Diaz, repetido mais tarde com Zapata e um camponês de nome Hernandez (Henry Silva); o cerco dos camponeses à condução de Zapata como prisioneiro; Zapata revelando-se analfabeto e implorando para aprender a ler; e finalmente Zapata fuzilado por dezenas de atiradores, dando o último suspiro ajoelhado com a cabeça sob o corpo crivado de balas de fuzil, sequência violenta que concentra toque poético.
O brutal assassinato de Emiliano Zapata

Esta biografia filmada por Kazan começa com Zapata se destacando de um grupo de camponeses que é recebido pelo presidente-ditador Porfírio Diaz (Fay Roope) que diante da coragem de Zapata em confrontar suas palavras, circula seu nome que está numa lista para posteriores medidas. Escondendo-se nas montanhas Zapata é encontrado por Fernando Aguirre (Joseph Wiseman), que se faz passar por escritor-jornalista mas que é, de fato, um agitador político sem bandeira definida. Zapata mantém uma relação amorosa com a linda Josefa (Jean Peters), cujo pai, Señor Espejo (Florenz Ames) rejeita Zapata como pretendente da filha por ele ser pobre. Envolvendo seus liderados camponeses em guerrilhas, ao Sul e com Pancho Villa (Alan Reed) fazendo o mesmo ao Norte, o México se vê envolto em disputas políticas e Diaz foge do país, retornando o exilado Francisco Madero (Harold Gordon), que se torna presidente. Madero chama Zapata e seu irmão Eufemio (Anthony Quinn) ao palácio e nomeia Emiliano general, o que faz com que o Señor Espejo o veja como homem de sucesso, permitindo o casamento do agora general com Josefa. Ao contrário de Pancho Villa que aceita benesses de Madero, Zapata renuncia a uma grande propriedade que Madero quer lhe presentear. Madero mostra-se um presidente fraco e logo é derrubado e morto pelo General Huerta (Frank Silvera), que também não resiste a um golpe que leva à presidência do país Venustiano Carranza. Um general preposto do novo presidente temendo novas guerrilhas decide por eliminar Zapata e em conluio com o agora governista Fernando Aguirre, o coronel Jesus Guajardo (Frank DeKova) chama Zapata para um local chamado Hacienda de San Juan, em Chinameca, município de Ayala, sob o pretexto de lhe entregar armas e munição pois estaria esse coronel contra as forças de Carranza. Durante o encontro Zapata é assassinado e Blanco, seu cavalo, escapa pelo portão aberto da hacienda fugindo para as montanhas.
Brando com o cavalo Blanco de Zapata;
Anthony Quinn com Lou Gilbert e com Joseph Wiseman;
abaixo Quinn, Brando, Gilbert e Harold Gordon.

Marlon Brando está excelente como Emiliano Zapata, ainda que sob uma maquiagem por demais carregada para transformá-lo em filho de camponês com indígena. Brando e Anthony Quinn, donos e enormes talentos interpretativos poderiam contracenar em mais sequências, mas os dois não se entenderam bem durante as filmagens. Quinn era mexicano nato e Brando se esforçando para parecer o que Quinn era naturalmente, daí o mal estar. Se existe alguém para representar um tipo intrigante em filmes, esse alguém é Joseph Wiseman, tão excelente quanto Brando e Quinn. Harold Gordon interpreta um irritantemente inseguro Madero, o que faz com que não se entenda ter sido ele um homem tão importante naquela etapa da revolução mexicana. Elia Kazan trouxe para compor o elenco coadjuvante de “Viva Zapata!” Lou Gilbert, Frank Silvera, Mildred Dunnock e Henry Silva, todos alunos do Actors Studio. Lou Gilbert interpreta Pablo que ao final é executado por Zapata cumprindo imperdoável ritual de traição. Jean Peters é o amor de Zapata. No elenco ainda numa ponta Larry Duran, que estaria com Brando em “A Face Oculta” (One-Eyed Jacks).
Marlon Brando e Jean Peters

Esqueça-se que Zapata sabia sim ler e escrever, que se vestia como um dandy mexicano quando jovem, que teve 15 filhos com diversas mulheres, que sua trajetória como líder camponês foi, como não poderia deixar de ser, romanticizada ao gosto de Hollywood e ainda todas as demais inverdades históricas. Lembre-se que mesmo atenuando o cunho ideológico de “Viva Zapata!”, Kazan acabou tendo de depor (e denunciar companheiros) no Comitê de Atividades Antiamericanas e que a caça às bruxas mudou em muito a proposta de Kazan-Steinbeck para o filme. Assim assistido, “Viva Zapata!” é um filme brilhante e que rendeu um Oscar de Ator Coadjuvante a Anthony Quinn, além da indicação de Brando para Melhor Ator, prêmio perdido para Gary Cooper por “Matar ou Morrer” (High Noon) e outras três indicações nas categorias de Melhor Roteiro, Direção de Arte e Melhor Música. “Viva Zapata!” é um western-biográfico coroado com a magnífica fotografia de Joseph MacDonald que sequer foi indicado, filme que permanece na lembrança de quem o assiste, assim como permanece até hoje, segundo diversos críticos, como a melhor película a abordar a revolução mexicana.
Reprodução da foto do encontro de Pancho Villa
(Alan Reed), com Zapata; Marlon Brando com
Anthony Quinn e com Joseph Wiseman

Anthony Quinn dançando com Margo