24 de março de 2019

A HORA DA PISTOLA (HOUR OF THE GUN) – JOHN STURGES REVISITA O OK CORRAL


Stuart N. Lake e seu livro;
abaixo John Sturges e Edward Anhalt

Ao lado de Anthony Mann, John Sturges foi o mais importante diretor de westerns dos anos 50. Começou a década com o bom “A Fera do Forte Bravo” (Escape from Fort Bravo), seguido pelo igualmente bom “Punido pelo Próprio Sangue” (Backlash). A Paramount e Hal B. Wallis apostaram alto em “Sem Lei e Sem Alma” (Gunfight at the OK Corral), reunindo elenco estelar e bem cuidada produção que agradou em cheio aos fãs do gênero que lotaram os cinemas para vê-lo. Com “Duelo na Cidade Fantasma” (The Law and Jake Wade) Sturges manteve o padrão de qualidade de seus westerns. Veio então o clássico “Duelo de Titãs” (Last Train from Gun Hill), seguido por aquele que se tornaria um marco no gênero, “Sete Homens e um Destino” (The Magnificent Seven). Nos anos 60 John Sturges decepcionou público e crítica com “Os Três Sargentos” (Sergeant 3) e “Nas Trilhas das Aventuras” (The Hallelulah Trail), este último seu mais retumbante fracasso entre os faroestes que dirigiu. Foi então que o diretor, certamente motivado pela onda revisionista da nova década, decidiu se redimir da forma ficcional com que mostrou a figura de Wyatt Earp interpretada por Burt Lancaster. Sturges gostou da abordagem feita pelo escritor-roteirista Edward Anhalt na qual o mais lendário homem da lei do Velho Oeste é bastante diferente do personagem reinventado por Stuart N. Lake no livro “Frontier Marshal” e idealizado por John Ford ou mesmo do altruísta marshal de “Sem Lei e Sem Alma”. Outra diferença na história escrita por Anhalt é que ela se inicia após o duelo do Curral OK, o qual serve de ponto de partida para este western. O cenário da Tombstone de 1881 foi erigido em Torreón, no México, para onde Sturges levou a equipe, e liderando o elenco, três atores do porte de James Garner, Jason Robards e Robert Ryan.


James Garner
Sede de vingança - Nesta versão os irmãos Earp, com a ajuda do jogador Doc Holliday (Jason Robards), se defrontam com pistoleiros contratados pelo rancheiro Ike Clanton (Robert Ryan). No confronto ocorrido no ‘Curral OK’, três participantes, todos do lado de Clanton são mortos e, acusados de assassinato, Wyatt Earp (James Garner) e Doc Holliday são inocentados. Inconformado Clanton ordena atentados contra os Earps e Virgil e Morgan são baleados, sendo que este último acaba morto. Wyatt Earp, que é Delegado Federal (marshal), ao contrário do xerife de Tombstone e seus ajudantes, é insubornável, o que atrapalha os negócios escusos de Clanton. Após a morte de Morgan Earp, o determinado Wyatt busca a vingança, liquidando um a um os capangas do rancheiro corruptor. Clanton foge para o México e embora a jurisdição de Wyatt como Delegado Federal o impeça de agir fora de seu país, ele consuma sua vingança no país vizinho matando Ike Clanton.

O verdadeiro Wyatt Earp
Ainda preservando a lenda - Primeiro a literatura, por obra (culpa) exclusiva do escritor Stuart N. Lake, elevou Wyatt Earp à condição de lenda nacional, mitificando sua personalidade, para o que ele próprio colaborou com seus controversos depoimentos a esse autor. O cinema já existia e Wyatt, no final da vida, dava entrevistas narrando como abatia bandidos em seu tempo de homem da lei. O nome ‘Wyatt Earp’ significava lucro certo e Hollywood também deu sua enorme contribuição para que esse ‘homem da lei’ fosse mostrado como um nobre norte-americano que mais que nenhum outro ajudou a domar o Oeste Selvagem. Os movimentos sociais dos anos 60 e a contracultura levaram autores e mesmo o cinema à busca das verdades dos fatos. Contrariando a famosa frase de John Ford ‘Print the legend’, Custer, Jesse James, Wild Bill Hickok e outros personagens do Velho Oeste passaram da condição de heróis para a de homens comuns quando não de assassinos frios ou neuróticos. “A Hora da Pistola” não chega a deslustrar inteiramente a biografia de Wyatt Earp, mas o apresenta como um homem para quem a lei pouco importa diante de seu ímpeto pela vingança do irmão morto e do outro que ficara aleijado. Perseverante no seu intento, Wyatt não é contido pelo surpreendentemente sensato Doc Holliday, cujos conselhos Wyatt ignora na sua sede de retaliação.

James Garner
Enfoque mais real - No início de “A Hora da Pistola” uma legenda informa que o filme é baseado em fatos reais da forma como eles aconteceram. Tal aviso prepara o espectador para o choque de conhecer um Wyatt Earp diferente daqueles que o cinema e a TV até então haviam mostrado. Randolph Scott (“A Lei da Fronteira”/Frontier Marshal), Henry Fonda (“Paixão dos Fortes”/My Darling Clementine), Joel McCrea (“Choque de Ódios”/Wichita), Burt Lancaster (“Sem Lei e Sem Alma”/Gunfight at the OK Corral), no cinema e Hugh O’Brian (“Wyatt Earp”/The Life and Legend of Wyatt Earp) em uma série para a televisão, todos personificaram Wyatt Earp da maneira como Hollywood gostava de fazer, ou seja, heroicamente, sempre visando o potencial financeiro daquele personagem. Embora ninguém invista em produções cinematográficas apenas para revelar a verdade dos fatos, mas sim como forma de ganhar dinheiro, John Sturges (também produtor) e Edward Anhalt arriscaram-se na mudança de enfoque e o público não se interessou em ver James Garner como um homem disposto a tudo para consumar sua vingança. Mais ainda porque Garner foge do tipo bem humorado, irônico e justo que o consagrou no cinema e na TV.

James Garner e Jason Robards
Sadismo e angústia - À parte a questão biográfica, “A Hora da Pistola” não agrada inteiramente como western porque falta a ele a inspiração que Sturges esbanjou em trabalhos anteriores. Wyatt Earp e Doc Holliday mais humanos que destemidos resultou em seres menos expressivos e mais angustiados. Para um western com 100 minutos de duração e com intenção de ressaltar o aspecto psicológico dos personagens principais, até que há bastante ação. Pena que nenhuma delas chegue a emocionar visualmente. Na sequência mais bem desenvolvida, quando Wyatt mata Andy Warshaw (Steve Ihnat), Sturges salienta o sadismo do marshal que descarrega desnecessariamente seu revólver no oponente. Lucien Ballard foi o responsável pela cinematografia, ele que se revelou um mestre no uso da câmera lenta em “Meu Ódio Será Sua Herança” (The Wild Bunch), recurso que o cinema já utilizava com sucesso, como em “Uma Rajada de Balas” (Bonnie & Clyde), de Arthur Penn e filmado também em 1967. Muito teria ganho este western de John Sturges com esse recurso que, acredito, não tenha sido utilizado porque poderia comprometer a intenção primeira do filme que era ser mais revelador que mero espetáculo visual.

James Garner
Wyatt Earp sem esposa ou amante - Nenhuma referência é feita em “A Hora da Pistola” às mulheres da vida de Wyatt Earp, assim como omite-se Katie ‘Big Nose’ Elder, que viveu com Doc Holliday. Por ocasião do evento do ‘Curral OK’, Wyatt estava casado e tinha como amante uma mulher que fora amante do xerife de Tombstone, John Behan, que neste filme tem o nome de Jimmy Bryan (Bill Fletcher). As únicas presenças femininas no filme são as curtíssimas sequências em que aparecem a esposa de Virgil Earp ao lado dele deixando Tombstone e a bela Charlene Holt que, à noite, acorda o marido para ver o que se passa na rua. Em uma única sequência Doc Holliday é acometido por um acesso de tosse indicativo da tuberculose que o mataria. E nenhuma menção é feita à sua formação como dentista, de onde se originou o apelido ‘Doc’. É de Doc a melhor frase do filme, quando ele diz ao enfermeiro que cuida dele e bebe tanto quanto ele: “Eu não beberia isso se eu fosse você”, num momento de puro sarcasmo.

Jason Robards
Jason Robards, o melhor do elenco - James Garner está bem como o pragmático Wyatt Earp, sobrepujado pela excelente interpretação de Jason Robards. É interessante o fato que o personagem tísico, beberrão, jogador incorrigível que foi Doc Holliday tenha sempre proporcionado ótimas interpretações como foram os casos de Victor Mature, Kirk Douglas, Val Kilmer e Stacy Keach respectivamente em “Paixão dos Fortes”, “Tombstone, a Justiça Está Chegando” e “O Massacre de Pistoleiros” (Doc). Robert Ryan aparece pouco e pouco se destaca, ele que como ninguém sabia interpretar homens maus. Entre os muitos atores do elenco aparece o jovem Jon Voight como ‘Curly Bill Brocius’ em sua estreia no cinema aos 29 anos de idade. John Williams compôs muito boa trilha sonora evidenciando uma diversidade de sons incidentais e renunciando ao uso insistente de um tema principal.

Jon Voight e Robert Ryan

Jason Robards e John Sturges
Um ‘Sturges’ menor - John Sturges voltaria aos faroestes com “Joe Kidd” em 1972, fechando sua filmografia western com “Valdez, o Mestiço” (Valdez il Mezzosangue), de 1973. Muitos críticos consideram “A Hora da Pistola” uma brilhante realização, certamente satisfeitos em não ver impressa a lenda que por décadas persistiu no cinem e sim trazer à tona, pelo menos parcialmente, os fatos senão verídicos, ao menos mais próximos da realidade. Cinematografi-camente, porém, o resultado fica distante de seus melhores filmes, mais precisamente de seus melhores westerns.