Nenhum outro epitáfio poderia ser mais
apropriado a John Wayne que seu código de honra expresso pelo personagem John
Bernard Books em “O Último Pistoleiro” (The Shootist): “Ninguém me engana, ninguém me insulta, ninguém bota a mão em mim; não
faço essas coisas com outras pessoas e exijo delas o mesmo”. Não só a
partir dessa epígrafe, mas e principalmente pelas tristes semelhanças entre o
filme de Don Siegel com o final de vida de John Wayne, este seu derradeiro
trabalho no cinema se tornou a mais perfeita, sincera e condoída homenagem que
um ator poderia receber. E se o western de Siegel é amargo e doloroso, não o é
menos admirável ao mostrar o crepúsculo de um tempo que criou homens lendários
que o cinema ajudou a mitificar.
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James Stewart e John Wayne |
A
morte do pistoleiro - J.B. Books (John Wayne) chega a
Carson City (Nevada) para se consultar com o Dr. Hostetler (James Stewart),
médico que há tempos lhe salvara a vida após um tiroteio. Books se queixa de
fortíssimas dores na vértebra lombar e após ser examinado o diagnóstico indica
que ele tem poucas semanas de vida, seis, se tanto. Muito famoso pelos mais de
30 homens que matou em confrontos, o pistoleiro Books chegou incógnito a Carson
City e é orientado pelo médico a se instalar na pensão da viúva Bond Rogers
(Lauren Bacall) à espera da morte. Inicialmente Books esconde sua verdadeira
identidade, mas logo toda cidade toma conhecimento da sua presença. O jogador
Pulford (Hugh O’Brian), o estourado Cobb (Bill McKinney) e o rancheiro Sweeney
(Richard Boone) se interessam por desafiar Books, os dois primeiros pela fama
que eventualmente irão obter ao matar Books. Já Sweeney tem motivos pessoais
pois seu irmão foi uma das vítimas de Books. O pistoleiro adoecido pede ao
jovem Gillom (Ron Howard), filho da senhora Rogers, que avise aos três homens
que os encontrará, com hora marcada, no Metropolitan Saloon. Inicialmente Books
enfrenta e mata Cobb; no instante seguinte é alvejado por Sweeney, a quem
também mata; Pulford consegue ferir Books porém tem a mesma sorte dos outros
dois desafiantes. Ferido mas vitorioso Books é vítima do bartender do saloon que
o alveja mortalmente para, em seguida, com a própria arma de Books, Gillon matar
o traiçoeiro bartender.
Crepúsculo
de um tempo - “O Matador” (The Gunfighter), 1950, foi o primeiro
western a mostrar o lado obscuro e perverso acarretado pela fama de um
pistoleiro. Outros filmes foram feitos na esteira desse clássico de Henry King,
destacando-se “Gatilho Relâmpago” (The Fastest Gun Alive), de Russell Rouse, de
1956). Nos anos 60 Sam Peckinpah deu forma ao que se convencionou chamar de
‘faroestes crepusculares’, com “Pistoleiros do Entardecer” (Ride the High
Country), de 1962, “Meu Ódio Será Sua Herança” (The Wild Bunch), de 1969, e “A
Morte não Manda Recado” (The Ballad of Cable Hogue), de 1970. Escrito em 1974
por Glendon Swarthout e lançado em 1975, o livro “The Shootist”, junta esses
dois temas ao contar a história do pistoleiro que em seus últimos dias de vida
quer apenas morrer em paz porque como o próprio personagem diz “minha morte é assunto que me pertence”.
John Wayne, melhor que qualquer outro ator personificou o íntegro, destemido e
aparentemente indestrutível homem do Oeste norte-americano. E é Wayne, através
de John Bernard Books quem lembra à ex-amante Serepta (Sheree North) que “todos nós temos o nosso próprio tempo”.
O Velho Oeste, os pistoleiros e mesmo John Wayne tiveram seu próprio tempo e
Don Siegel, poética e brilhantemente, fez esse registro em “O Último
Pistoleiro”.
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John Wayne à esquerda com Lauren Bacall e à direita com Sheree North. |
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John Carradine |
Abutres
humanos - O roteiro divide o filme em oito dias e em cada um deles
mais se acentua o drama de J.B. Books, atormentado pela saúde que se esvai. O
primeiro vidro de láudano (linimento à base de ópio e álcool) dado pelo dr.
Hostetler acabou e, desiludido, Books desiste de repetir outro vidro. Em seus
últimos dias o velho homem do oeste é assediado por oportunistas que tentam
tirar proveito de sua morte: o jornalista que pretende escrever sobre sua vida
acrescentando detalhes inverossímeis; o agente funerário que lhe promete um
enterro de primeira mas que quer mesmo é fazer um espetáculo circense com o
cadáver de Books; o barbeiro que não lhe
cobra pelo corte de cabelo mas que recolhe os fios cortados do chão sentindo-se
tentado a vendê-los após a morte do pistoleiro. Pior que todos é a presença de
Serepta, mulher que um dia Books amou e que ressurge em sua vida pedindo-lhe
que se case com ela, forma legal da interesseira mulher se apoderar dos
direitos sobre suas valiosas memórias. Cobb, Pulford e Sweeney não são menos desprezíveis
que essas biltres, com a diferença que o que lhes interessa é a notoriedade de
haver matado J.B. Books.
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Acima John Wayne com Sheree North e com Harry Morgan; abaixo Wayne com Rick Lenz e à direita Alfred Dennis. |
‘Até um touro morre’ –
O destino tornou os últimos dias de J.B. Books mais amenos com seu encontro com
a viúva Bond Rogers, com quem o pistoleiro mantém uma platônica amizade. O
filho de Bond admira Books de quem recebe em poucos dias de convívio talvez lição
de vida maior que a deixada por seu pai falecido há um ano. Uma das magistrais
sequências de “O Último Pistoleiro” é quando Gillom Rogers, após matar o
bartender, deixa o Metropolitan Saloon: havia entrado um jovem adolescente e
quem sai do local do tiroteio é um homem, duro no olhar e no caminhar em
direção à sua vida que parece começar ali. Simplesmente primorosas são todas as
sequências entre Books e a viúva Rogers, pela delicadeza dos contatos nunca
físicos, mas de alma, ela que se compadece daquele homem rude que está cada vez
mais próximo da morte. Igualmente magníficos são os diálogos entre Books e o
dr. Hostetler, este direto, falando sem rodeios do mal incurável do amigo que
veio de longe para lhe procurar. “Você
disse para mim que eu era forte como um touro...”, questiona Books, que
ouve a resposta seca do clínico: “Até um
touro morre”.
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John Wayne e James Stewart |
Books
como John Wayne – Siegel, que sempre primou pela
economia de tomadas e diálogos, desenvolve “O Último Pistoleiro” de forma
lenta, mas jamais arrastada. O clímax passado dentro do saloon, mesmo com cinco
mortes, é rápido e emocionante, com direito a um singular momento dos tempos de
Wayne na Monogram, Mascot e Republic, quando Books vê a movimentação de Pulford
refletida em um copo no balcão. E num tempo em que Sam Peckinpah levava a
extremos a violência com banhos de sangue, Books encontra a morte ao receber
dois disparos de grosso calibre, o máximo que Siegel se permitiu para se
aproximar da tendência daqueles dias. Contraponto a esse momento são as imagens
iniciais em preto e branco com um pseudo J.B. Books sendo mais rápido que
adversários em sequências extraídas de “Rio Vermelho” (Red River), “Caminhos
Ásperos” (Hondo), “Onde Começa o Inferno” (Rio Bravo) e “El Dorado”. Esse
incrível achado, com John Wayne em fases diferentes de sua carreira, reforça
inequivocamente a intenção de confundir o fictício John Bernard Books com o
real John Wayne.
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Nos clips exibidos no início do filme, em preto e e branco, John Wayne aparece respectivamente nos filmes "Rio Vermelho" (Red River), "Caminhos Ásperos" (Hondo), ""Onde Começa o Inferno" (Rio Bravo) e "El Dorado". |
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Ron Howard |
Personagem
sublime – No livro de Glendon Swarthout o pistoleiro J.B. Books é
um homem sem escrúpulos, capaz de atirar, pelas costas, nas nádegas de um
desafeto. Grosseiro, sua linguagem é sempre blasfema e poucas frases suas não
contém impropérios. John Wayne exigiu que o personagem fosse substancialmente
alterado para que sua imagem permanecesse a mesma cultivada nas mais de duas
centenas de filmes. Gillom Rogers, o personagem de Ron Howard, é no livro “The
Shootist” um jovem a um passo de se tornar fora-da-lei e sua admiração por J.B.
Books advém justamente da falta de princípios do pistoleiro. No tiroteio no
saloon é Gillom quem atira em Books pelas costas matando-o para saborear a
reputação de ter liquidado o célebre pistoleiro. Essa alteração também foi
imposta por Wayne que entendeu ser Gillom Rogers um exemplo negativo para os
jovens norte-americanos. Paul Newman era a primeira opção para interpretar J.B.
Books, que no livro tem 51 anos de idade (o personagem de Wayne tem 58 anos).
Com Newman, que certamente não pediria para alterar o texto original, “O Último
Pistoleiro” seria um filme diferente. E a diferença é que nem Newman, nem
ninguém é John Wayne, e o Duke com seu carisma único criou um dos personagens
mais sublimes de todos os westerns.
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A morte de John Wayne. |
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Lauren Bacall |
Bacall
fenomenal – Normalmente menosprezado como ator, John Wayne demonstrou
inúmeras vezes o quanto os críticos lhe foram injustos. Afinal lhe deram um
Oscar com sabor de consolação por uma interpretação menor, um canyon distante de Ethan Edwards
(“Rastros de Ódio”/The Searchers) ou de Tom Dunson (“Rio Vermelho”/Red River).
Em seu derradeiro trabalho no cinema Wayne tem atuação extraordinária compondo
um personagem que enternece e que, assistido após sua morte em 1979, provoca um
nó na garganta mesmo àqueles espectadores menos sensíveis. Lauren Bacall em seu
segundo filme com John Wayne faz jus ao apelido ‘Bacall Fenomenal’ pois está
soberba como a mulher madura que se compadece do pistoleiro. Incrivelmente
sincera tira qualquer dúvida quanto a ter sido ótima atriz. Ron Howard
excelente como o jovem que se deixa influenciar por Books. James Stewart
perfeito como o médico acuado pela atroz revelação a ser feita. Uma falha deste
filme de Don Siegel é não ter delineado melhor os três personagens que se
defrontam com Books. Hugh O’Brian ainda tem oportunidade de relembrar os tempos
de Wyatt Earp usando traje igual, enquanto Richard Boone é um talento dos
maiores para fazer pouco mais que uma modesta participação especial. Bill
McKinney, morto por Wayne, iguala-se a Robert Duvall, também morto em westerns
pelo Duke e por Clint Eastwood. Apesar de pequenas, muito boas as participações
de Sheree North, Scatman Crothers e Harry Morgan, enquanto John Carradine com paletó
da época, colete e cartola é o mais perfeito agente funerário do cinema.
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Lauren Bacall com John Wayne |
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John Wayne |
Despedida
do grande cowboy – Em sua bela filmografia, “Estrela de
Fogo” (Flaming Star) destacava-se como o melhor dos westerns que Don Siegel
havia dirigido, entendendo-se que “O Estranho que Nós amamos” (The Beguiled)
não seja exatamente um faroeste. Com “O Último Pistoleiro” Siegel realizou um
dos grandes filmes do gênero dos anos 70 e um dos cinco melhores westerns
estrelado por John Wayne, excetuadas as obras-primas dirigidas por John Ford.
Filmado parcialmente em Carson City, cidade que ainda mantinha prédios da
virada do século XIX para o século XX, “O Último Pistoleiro” conta com
excelente cinematografia de Bruce Surtees e eficiente mas discreta trilha
sonora musical composta por Elmer Bernstein, de quem sempre se espera o mesmo
brilho e inspiração da clássica trilha de “Sete Homens e Um Destino” (The
Magnificent Seven). “O Último Pistoleiro” foi o adeus triste e melancólico de
John Wayne, num western comovente e digno do maior cowboy do cinema que foi
John Wayne.
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John Wayne e Ron Howard |
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Bill McKinney e John Wayne (McKinney no espelho). |
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Richard Boone e John Wayne (Boone no espelho). |
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Hugh O'Brian e John Wayne (O'Brian no espelho). |
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John Wayne |
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A cidade de Carson City como se fosse 1901, já com postes de eletricidade, bonde com tração animal; na foto à direita Carson City recriada em Burbank. |
Desde a infância assistia faroeste com meu pai. Sou fã do gênero e este é sem dúvida um dos melhores faroestes que já assisti. E o grande John Wayne como sempre um grande ator. Emocinante despedida.
ResponderExcluirQue final épico, o filme, a versão do cinema na minha opinião foi a melhor que a história do livro, o final foi poético e emocionante! Obrigado pela matéria! John Wayne é singular! Dizem que ninguém é insubstituível, não é verdade...Jonh Wayne é a prova do contrário!!!
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