Tela de abertura da versão exibida no lançamento de "Paixão dos Fortes"; Ford em plena direção. |
John Ford
costumava dizer que sua atividade como cineasta era apenas ‘a job of work’, ou
seja, um trabalho como outro qualquer. Essa frase respondia também àqueles que
consideravam muitos de seus filmes obras-primas cinematográficas e em número
tão grande que não havia como escapar de considerá-lo um mestre, quando não um
gênio. “It’s only a job of work”
repetia invariavelmente o diretor de “Vinhas da Ira”, isto quando estava de bom
humor pois o normal era desconsiderar o jornalista e encerrar a entrevista se a
pergunta fosse ligeiramente complexa. Imagina-se o quanto Ford deve ter se
divertido com o que escreveu Tag Gallagher sobre “My Darling Clementine”
(Paixão dos Fortes). Para Gallagher, esse western foi concebido como uma
metáfora à participação dos Estados Unidos nas duas Grande Guerras. Wyatt Earp
simbolizando os Estados Unidos apaziguou Dodge City (1.ª Grande Guerra); deu
uma lição a um índio rebelde e violento (representação dos nativos) e recusou
ser homem da lei em Tombstone (entrar na 2.ª Grande Guerra). Até que seu irmão
James Earp foi brutalmente morto (Pearl Arbor). Então Wyatt Earp se vê forçado
a lutar contra o bando liderado por Old Man Clanton (Hitler?) e mais uma vez impõe
a lei e a ordem a uma conturbada cidade que metaforicamente seria o mundo entre
1939-1945. Elocubrações como esta jamais passaram pela cabeça do grande
diretor. Mais ainda porque “Paixão dos Fortes” sequer era um projeto pessoal de
John Ford e sim mais um ‘job of work’ que Ford deveria fazer para encerrar seu
contrato com a 20th Century-Fox. O mesmo havia ocorrido com “Vinhas da Ira”,
baseado no livro de John Steinbeck, que também não era um projeto de Ford mas
que ele transformou no maravilhoso filme que enterneceu o mundo. E aí reside a
grandiosidade desse diretor, capaz de transformar ‘a job of work’ em ‘work of
art’ (obra de arte). Isso aconteceu com “Paixão dos Fortes”.
Acima Wyatt Earp com os Clantons; abaixo Morgan, Wyatt e Virgil. |
Earps versus Clantons - O roteiro
de “Paixão dos Fortes” indicava que esse filme seria mais uma versão para o
cinema do historicamente questionável livro de Stuart N. Lake “Wyatt Earp:
Frontier Marshal”, obra que é um primor de ausência de acurácia. Contrariando a
autenticidade dos fatos, os quatro irmãos Earp após deixar Dodge City
dedicam-se à criação de gado. Nas imediações de Tombstone o gado é roubado e
James Earp (Don Garner), mais jovem dos irmãos é morto pelos ladrões. Wyatt
Earp (Henry Fonda) torna-se o Marshal de Tombstone e seus irmãos Morgan (Ward
Bond) e Virgil (Tim Holt) passam a ser delegados. Retorna a Tombstone o médico
e jogador John ‘Doc’ Holliday (Victor Mature) que mantém um caso com a cantora
de saloon Chihuahua (Linda Darnell). Holliday sofre de tuberculose e por essa
razão a professora Clementine Carter (Cathy Downs), que também foi namorada de
Holliday, viaja a Tombstone para ajudá-lo. Os Earps descobrem que Old Man
Clanton (Walter Brennan) e seus quatro filhos são responsáveis pelo assassinato
de James Earp e pelo roubo do gado. Billy (John Ireland), um dos filhos de
Clanton é morto pelos Earps e Old Man Clanton vinga-se matando Virgil Earp. Desesperado
com a morte do filho, Clanton desafia Wyatt para um confronto no Curral OK.
Ajudados por Doc Holliday os Earps levam a melhor no embate matando todos os
Clantons. Holliday é mortalmente ferido no encontro. Wyatt Earp e seu irmão
Morgam partem de Tombstone depois do extermínio da família Clanton.
Os irmãos Earp: Wyatt (Henry Fonda), Morgan (Ward Bond), James (Don Garner) e Virgil (Tim Holt). |
Alan Mowbray como o ator shakesperiano; abaixo Wyatt Earp embelezado pelo barbeiro. |
A ‘Americana’ de John Ford - “Paixão
dos Fortes” é um faroeste cujo ponto principal deveria ser o célebre duelo
travado no Curral OK. No entanto John Ford com sutileza e com sequências de
enternecedor lirismo envolve o espectador fazendo-o acompanhar os passos de um
homem com os ideais de Lincoln e a nobreza de Tom Joad, personagens
interpretados pelo mesmo Henry Fonda em filmes de Ford (“A Mocidade de Lincoln”
e “Vinhas da Ira”). A chegada dos novos hábitos indicando o processo de
civilização do Velho Oeste foi o que Ford imprimiu a este western com pouca
ação mas denso em sentimentos e conflitos entre os personagens. O salão de
barbeiro com suas loções recendendo a madressilva; a troca das roupas de
vaqueiro pelos ternos com estilo importado do Leste; o
médico-pistoleiro-jogador que recita Shakespeare quando o ator esquece o texto;
a própria presença da companhia que apresentará uma peça clássica numa cidade
onde gente de bem se mistura a assassinos e ladrões de gado como os Clantons. A
culminância desses momentos incomuns a faroestes é o baile para comemorar a
construção da igreja, quando o ‘square dance’ é interrompido e Wyatt Earp tímida
e elegantemente dança com Clementine Carter. Mais que qualquer outro diretor,
Ford com muitos de seus filmes criou a denominada ‘Americana’, documentos
cinematográficos da história dos Estados Unidos. A simplicidade, idealismo e
poesia das imagens de “Paixão dos Fortes” fazem desse western um sublime
exemplo da ‘Americana’ de John Ford.
O erguimento da igreja em Tombstone foi comemorado com um baile, momento precioso de "Paixão dos Fortes". |
Doc (Mature) e Wyatt (Fonda), tentando se entender. |
Wyatt e Holliday, admiração mútua - Embora
não falte a “My Darling Clementine” o componente clássico da vingança, ele é
quase uma subtrama paralela às relações entre os amigos Wyatt Earp e Doc
Holliday e mais a provocante Chihuahua e a doce Clementine. Wyatt e Doc se
admiram mutuamente, ainda que Doc não se conforme com a perda do poder
conquistado em Tombstone. Wyatt é a lei que Doc desconhecia pela covardia dos
que aceitavam o distintivo de marshal da cidade. E menos ainda a prostituta
Chihuahua que mal consegue se insinuar junto ao novo e agora elegante homem da
lei. A chegada de Clementine a Tombstone piora as coisas pois Wyatt fica
fascinado com a professora, seus modos educados, sua elegância e tudo que ela
representa para aquele lugar. Os acessos de tosse de Doc Holliday não o
consomem tanto quanto ver Wyatt se fazer respeitar e ser admirado pela dona do
prostíbulo Kate Nelson (Jane Darwell), pelo diácono (Russell Simpson), pelo
prefeito (Roy Roberts) e mais que todos por Clementine. Apesar do antagonismo,
Doc se posta ao lado dos Earps no enfrentamento no OK Corral. Earp, por seu
lado, admira em Doc a cultura e o título de doutor, mais que a fama conquistada
com o revólver, nas mesas de jogo ou com as mulheres.
O vício de Doc Holliday e o comiserado Wyatt: extraordinária sequência. |
Wyatt Earp e Clementine Carter. |
Henry Fonda, como diz a canção - A razão
do título “My Darling Clementine” pode ser atribuída a tudo que Clementine
Carter representa, não só para Tombstone, mas para o próprio Wyatt. No entanto
o título mais adequado seria mesmo ‘Wyatt Earp’, isto pela soberba atuação de
Henry Fonda. Mesmo nos momentos em que a intenção seria fazer rir, Fonda
emociona com a serena sinceridade de seu personagem. Ao perceber que o amor
entrou em seu coração Fonda é comovente na timidez com que se aproxima e fala
com Clementine, que gosta ainda de Doc Holliday. Ao final, o beijo respeitoso e
a vaga promessa da volta condensa tudo de sublime que o filme mostrou ao longo
de 97 minutos. Entre dezenas de atuações esplêndidas na tela, o Wyatt Earp de
Henry Fonda permanece como um dos grandes momentos desse ator no cinema e
inesquecível no gênero western. Justíssimo o verso da canção “Esconderijo de
Heróis”, de Jorge Cavalcanti, que diz: ‘Henry
Fonda, admirável Wyatt Earp’.
O perfume espargido pelo barbeiro em Wyatt Earp no ar. |
Wyatt na campa do irmão James no Monument Valley; Doc Holliday e Clementine Carter. |
Composição de imagens clássicas - O amor de
John Ford pelo Monument Valley fez com que Tombstone fosse localizada nessa
região, um dos muitos erros de fato do roteiro. Para Ford o que interessava era
criar o retrato da simplicidade de um tempo e da vida daquelas pessoas, além, é
claro de contar uma bonita história de amor. Esqueça-se, ao assistir “Paixão
dos Fortes” das muitas críticas feitas às inverdades que o filme conta;
fique-se com a beleza da composição de imagens semiexpresionistas externas ou
dentro do ‘Oriental Saloon’. Em seu filme seguinte – “Domínio de Bárbaros” (The
Fugitive) – também com Henry Fonda, John Ford usaria à exaustão a influência
sofrida do estilo expressionsita de filmar. O Cinemascope ainda não havia sido
inventado mas Ford nos cria a magnífica ilusão de horizontalidade quando filma
o balcão do saloon onde transcorrem muitas das sequências do filme. O preto e
branco iluminado pelo cinegrafista Joseph MacDonald dá dramaticidade ímpar aos
rostos muitas vezes filmados em close. E o duelo do Curral OK que, de verdade,
durou apenas 30 segundos foi filmado de modo simples sem heróis invulneráveis
tão comuns ao cinema. Quem passar alguns anos sem assistir “Paixão dos Fortes”
certamente se lembrará de inúmeras sequências, mas não do duelo que, como foi
dito, é apenas parte da história, ainda que seja o desfecho da história.
John Ford em sua fase expressionista. |
Walter Brennan |
Criação de uma linhagem de vilões - Além do
excepcional desempenho de Henry Fonda, “Paixão dos Fortes” tem também o melhor
trabalho dramático de Victor Mature no cinema. Personificar Doc Holliday com o
físico de Mature seria um contrassenso, mas o ator de “Sansão e Dalila” não só
convence como também emociona. O mesmo pode ser dito de Linda Darnell que
sempre se destacou mais pela beleza que pelo talento dramático; Linda está
muito bem como a estrepitosa Chihuahua. Walter Brennan criou com seu ‘Old Man
Clanton’ uma linhagem de bandidos envelhecidos mas cruéis que o cinema nunca
cansou de exibir. O último deles Michael Gambon de “Pacto de Justiça” (Open
Range), western de Kevin Costner. Uma pena a quase inexpressividade de Cathy
Downs, num papel que poderia ser entregue à adorável Teresa Wright. O grande
elenco traz os ótimos Ward Bond e Tim Holt e ainda John Ireland em um de seus
primeiros filmes, sem falar na Ford Stock Company que desta vez conta com
Francis Ford, Jane Darwell, Russell Simpson, J. Farrell MacDonald e outros.
Os Earps: Ward Bond, Henry Fonda e Tim Holt; Bond e Holt. |
Darryl F. Zanuck, o homem poderoso da 20th Century-Fox. |
A little
help from Zanuck - “Paixão dos Fortes” é um dos grandes westerns do cinema, mas
deve-se registrar que a versão inicial de John Ford tinha aproximadamente 30
minutos a mais que a exibida os cinemas. Darryl Zanuck era o editor-mór da 20th
Century-Fox, ainda que sua função fosse a de diretor geral de produção. Zanuck
considerou insatisfatório o filme finalizado por John Ford e como o contrato com
o diretor permitia ao estúdio fazer modificações na película, Zanuck filmou
novas sequências e reeditou o filme, deixando de fora muito material filmado
por John Ford. Entre as modificações a principal delas foi o final em que Wyatt
Earp beija Clementine ao som de “My Darling Clementine”. O DVD lançado no
Brasil traz uma versão alternativa com 103 minutos de duração, apresentada como
a versão do diretor. Deve-se, por uma razão de honestidade, atribuir a Darryl
F. Zanuck, parte do sucesso do filme que custou dois milhões de dólares e
rendeu nas bilheterias quando de seu lançamento 4,5 milhões de dólares.
Inúmeros outros filmes sobre o tiroteio do Curral OK e sobre a vida de Wyatt
Earp seriam feitos, mas nenhum com o brilho e poesia de “Paixão dos Fortes”. Segundo
Ford um mero ‘job of work’...
A morte de Virgil Earp (Tim Holt), violenta para 1946. |
Doc Holliday tendo um acesso de tosse durante o showdown no OK Curral; Wyatt atirando, Morgan disparando no Old Man Clanton; Clanton na última foto. |
Pose para publicidade de Henry Fonda e Victor Mature. |
Wyatt Earp/Henry Fonda. |
É sempre bom reler matéria sobre "Paixão dos Fortes"
ResponderExcluirOi, Darci!
ResponderExcluirNossa... Tempo bom, quando na minha adolescência, lá no final doas anos 1980 e início dos 90, assisti várias vezes essa maravilha, legendada, na extinta sessão Cineclube, nas madrugadas de domingo pra segunda, na Rede Globo. Uma obra irretocável, onde até a impassividade de Cathy Downs, na minha opinião, é oportuna, pois transmite a imagem idealizada que Wyatt tem de Clementine, tão ressaltada desde o título até o antológico tema musical. Parafraseando Orson Welles: Genial! Genial! Genial!
Abraço.
Robson
Olá, Robson
ResponderExcluirPaixão dos Fortes foi um dos primeiros filmes que vi legendado na TV, onde tudo que passava era dublado. A Globo, nos anos 80, inventou uma sessão para surdos e passava, uma vez por semana, filmes legendados. Entre eles esse John Ford. Que maravilha para quem não havia visto ainda o filme com as vozes originais. Depois veio o VSH e melhorou tudo.
Abraços do Darci
Darci, ao ler esta minuciosa resenha percebi que você expôs, graças à tua grande percepção, quase todas as peculiaridades de Ford inseridas no filme. Esse texto é nada menos que um estudo mais que detalhado. Nem nos livros de cinema que tenho há tantas riquezas de detalhes sobre "My Darling Clementine" como aqui. Tenho o DVD duplo e sempre assisti a versão de Ford por ela ser mais longa que a alterada por Zanuck. Como você já comentou, nesta versão Wyatt não beija Clementine no final. Apenas a cumprimenta depois de conversar e vai embora. Da próxima vez que eu for rever, optarei pela versão mais curta, a que foi aos cinemas, de 96 minutos.
ResponderExcluirQuanto à Clementine de Cathy Downs, foi justamente seu jeito retraído, contido, delicado e respeitoso que conquistou Wyatt, o mesmo não aconteceu em relação a também bonita mas exibicionista Chihuahua. Para mim Cathy Downs atuou da forma que deveria ser, ou seja, de acordo com o que sua personagem exigia (ou nem exigia tanto).
Mais um trabalhinho de rotina de Ford rs...
Parabéns e um abraço!
Devo ter visto nos anos 90 em alguma madrugada na Globo, mas é certo que vi, e ou revi, em 2002, 2004, 2009, 2010 e hoje.
ResponderExcluirDelícia de faroeste! Ótima direção, elenco, edição e roteiro, mas a fotografia é uma piada... um verdadeiro deslumbre!
------- Histórico parcial na tv aberta -------
1976 – 18/06 – 6ª – 00:00 – GLOBO – CORUJA ESPECIAL
1977 – 06/08 – SÁBADO – 01:00 – GLOBO – CORUJA COLORIDA
1978 – 19/04 – 4ª – 00:15 – GLOBO – SESSÃO CORUJA (SP NÃO)
1983 – 19/09 – 2ª – 00:30 – GLOBO – SESSÃO CORUJA
1984 – 19/08 – DOMINGO – 00:20 – GLOBO – SESSÃO CORUJA
1985 – 19/11 – 3ª – 23:40 – GLOBO – CLASSE A
1986 – 02/05 – 6ª – 23:50 – GLOBO – CINECLUBE
1987 – 30/01 – 6ª – 01:25 – GLOBO – CORUJÃO 1
1988 – 29/02 – 2ª – 00:15 – GLOBO – CINECLUBE
1988 – 28/11 – 2ª – 00:00 – GLOBO – CINECLUBE
1989 – 22/05 – 2ª – 00:05 – GLOBO – CINECLUBE
1990 – 12/03 – 2ª – 00:00 – GLOBO – CINECLUBE
1991 – 30/06 – DOMINGO – 00:40 – GLOBO – CINECLUBE
1993 – 18/04 – DOMINGO – 01:15 – GLOBO – CINECLUBE
1996 – 15/07 – 2ª – 02:10 – GLOBO – CAMPEÕES DE BILHETERIA
1998 – 05/07 – DOMINGO – 03:40 – GLOBO – CORUJÃO 2
1999 – 09/11 – 3ª – 01:40 – GLOBO – CORUJÃO
2008 – 10/07 – 5ª – 03:10 – GLOBO – CORUJÃO